Literatura brasileira,
À sombra do vampiro
Nesses tempos em que tantos autores investem mais no Instagram do que no próprio texto, Dalton representava a resistência
01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janEmbora eu tenha nascido e vivido em Curitiba até o começo da idade adulta, só fui saber quem era Dalton Trevisan aos dezessete anos, quando caiu em minhas mãos uma edição de O vampiro de Curitiba. Nunca vou esquecer o impacto. Dalton me apresentava uma outra cidade, um submundo distante do bairro tradicional em que cresci. Acima de tudo, me apresentava uma outra literatura, também distante de tudo que eu já tinha lido.
Eram os anos 90, eu me preparava para prestar o vestibular e já queria ser escritora. Conhecer o personagem Nelsinho, um pobre diabo atormentado pelo desejo e conduzido por uma linguagem tão nossa — sua desgracida! — me fez pensar que eu também podia cantar o que havia de mais vulgar na nossa vulgar aldeia. E ainda alçar o sexo ao centro da narrativa: se Dalton podia ser despudorado, por que eu não poderia?
Deixei a fórmula de Bhaskara de lado para ler e reler esses e outros contos do autor. Meses depois, fui aprovada na Universidade Federal do Paraná e comecei a frequentar o mesmo quadrilátero que Dalton, já que ele morava a dois quarteirões da nossa reitoria e também comprava seus livros por ali, na adjunta Livraria do Chain.
Por essa época, o escritor já andava recluso. Nem sempre foi assim. Até os anos 70, Dalton teve uma vida social ativa, seja articulando o jornal Joaquim, frequentando bares na Boca Maldita ou cultivando amizades longe da “província”, com intelectuais como Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino.
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Disposição que foi diminuindo à medida que aumentava a sua fama e o assédio da imprensa, em situações que o desagradaram e foram provocando seu paulatino isolamento, como uma entrevista não autorizada em 1980 e a aproximação de um estudante que transformou, sem avisar, uma conversa dos dois em matéria de jornal em 1986 — indignado, Dalton deu a ele a alcunha de Chupim Crapuloso.
Em 1993, quando eu andava pela Livraria do Chain, Dalton já tinha se fechado de vez. Ainda assim, sempre que eu entrava ali, torcia para ver, entre as prateleiras, o seu rosto. Infelizmente, não tive essa sorte. Me formei e logo depois parti para São Paulo, levando na bagagem uns poucos livros. Entre eles, O vampiro de Curitiba.
Conterrâneos
Nem sempre um escritor percebe suas influências, especialmente quando o timbre de sua voz ainda está se formando. Eu não percebia, mas hoje entendo que, em diversos aspectos e momentos, segui os passos do meu conterrâneo.
Da mesma forma que ele procurava a pé os seus personagens pelo centro de Curitiba, passei a procurar os meus nas calçadas da rua Augusta, puxando papo com prostitutas e manicures, conversas que deram origem a alguns dos meus contos.
Anos depois, me batendo para acabar um romance, voltei novamente a buscar a inspiração a pé, andando de madrugada pelos hotéis de viração do centro de São Paulo, com certo medo mas me sentindo escoltada de um lado por João Antônio e de outro por Dalton, que ainda me mostrou ser possível encontrar humor até nas situações mais sombrias.
Claro que não fui só eu que bebi do vampiro. Vários conterrâneos da minha geração o fizeram, inclusive mais e melhor, como mostra o coloquialismo leite quente de Luiz Felipe Leprevost, a concisão elegante de Caetano W. Galindo e os contos e crônicas de Luís Henrique Pellanda, talvez o mais daltonesco de todos, retratando tão bem a melancólica metrópole e os desvalidos que Dalton já não poderá mais abraçar com suas palavras, ainda que ferinas.
Com o passar do tempo, fui me distanciando em todos os sentidos das minhas origens. Só tornei a pensar no autor quando voltei a viver em Curitiba e, desencaixotando aquele exemplar amarelo, me perguntei como seria lê-lo mais de vinte anos depois.
Hoje entendo que, em diversos aspectos e momentos, segui os passos do meu conterrâneo
A isso se seguiu a leitura de contos da Antologia pessoal e do recém-lançado e belíssimo O ciclista, ilustrado por Odilon Moraes, prova de que, embora não dirigidos ao público jovem, muitos de seus textos falam com qualquer idade — e seguem tão frescos e inovadores quando antes.
Novamente, me senti instigada a saber do vampiro. Por amigos próximos, descobri que, por conta de um assalto, ele já não morava mais na casa da Ubaldino do Amaral, tendo se mudado para um apartamento antigo e amplo perto da Biblioteca Pública. Que seguia reescrevendo e reorganizando obsessivamente seus contos (são mais de setecentos) e seus “caderninhos”. E que, apesar de estar perto dos cem anos, seguia muito lúcido.
Não seria a hora de botar um dos meus livros debaixo do braço e tentar uma aproximação, nem que fosse deixando um exemplar na portaria? Não tive tempo de decidir.
Saída de fininho
Na segunda-feira, 9 de dezembro, uma mensagem pipocou no meu celular: Dalton morreu. Na meia hora seguinte, nos diversos grupos de escritores de que faço parte, as mensagens abundavam. E se contradiziam. “Sei por familiares que ele morreu.” “É boato.” “Me garantiram que é verdade.” “Deve ser mais uma das peraltices do Dalton.”
Perto das dez da noite, a confirmação: um print screen do Serviço Funerário Municipal de Curitiba, anunciando que Dalton Jérson Trevisan seria sepultado na terça-feira, 10 de dezembro de 2024, no Crematório Vaticano. Parecia que o caso estava resolvido, já lamentávamos, já postávamos carinhas amarelas com lágrima pendendo do olho, mas alguns minutos depois, entramos na página e a informação não estava lá. Fui dormir irritada. Que disse-me-disse de mau gosto era aquele?
Pela manhã, ao pegar o celular, fui tomada pelo pesar da certeza. Levantei, andei até a janela. Em Curitiba, há dias chovia a cântaros. Era como se a maior personagem de Dalton, a cidade, lhe preparasse o cortejo. “A chuva dá de beber aos mortos”, ele diria.
Acredito que morreu saciado, o velho vampiro, com uma trajetória longa e muito coerente. Nesses tempos, em que tantos autores investem mais horas no Instagram do que no próprio texto, Dalton representava a resistência. Saiu de fininho, sem alarde, fiel ao personagem que criou para si. Como se quisesse nos lembrar, até no último suspiro, a sua máxima: mais vale o conto do que o contista.
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “À sombra do vampiro”
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