Divulgação Científica,
Um jeito de arrumar o mundo à nossa volta
Livro sobre museus de história natural em Portugal mostra obstinação em produzir trabalho científico de excelência
24out2021 | Edição #51A história natural como a conhecemos foi inventada por Aristóteles. Mas é uma ciência que sempre existiu, de uma forma ou de outra, em toda parte. Muito antes que Lineu inventasse, em meados do século 18, um sistema de classificação do reino vegetal, as pessoas já organizavam por conta própria as árvores, as flores, as plantas. Os inúmeros sistemas assim criados desde tempos imemoriais teriam, na maioria das vezes, um propósito utilitário, mas poderiam também ter outras funções. Toda classificação, no fundo, é um jeito de arrumar o mundo à nossa volta, de nos dizer que, apesar de tudo, ele tem uma regularidade.
A propensão taxonômica da espécie humana se espalha por todos os domínios da experiência, dos astros aos elementos químicos, dos fenômenos naturais aos sociais. Mas em nenhuma parte se mostra tão forte e tão profícua como quando voltada para os seres vivos. Com sua infinita variedade de formas, aspectos e cores, distribuídos pelos mais diferentes hábitats e climas, os animais e os vegetais praticamente convidam a imaginação a dispô-los em quadros, tabelas ou séries. Se com Lineu a história natural se tornou uma ciência, não é porque ele a tenha inventado, mas porque fixou, como ninguém o fizera antes, a natureza inteira num sistema. Aplicada aos animais por Cuvier e Lamarck, a taxonomia botânica do naturalista sueco chega à Origem das espécies como referência incontornável para os estudiosos da natureza.
Essa história é espelhada na fortuna da ciência natural em solo português, tal como contada no belo livro de Luís Miguel Ceríaco. Trabalho erudito e rigoroso mas escrito com leveza, interessará a todas as pessoas preocupadas com o estudo da zoologia e a conservação dos museus dedicados a ela. Desconfio que no Brasil esse público seja vasto, tendo em vista o estado precário em que muitas dessas instituições se encontram, por descaso do poder público e desinteresse da iniciativa privada.
Quando se visita Nova York ou alguma capital europeia, é um programa ir ao museu de história natural local. Com seus esqueletos de dinossauros, suas galerias da evolução, suas lojas de lembranças, esses museus às vezes dão a impressão de ser parques de diversão. Mas, por trás das aparências, encontram-se sólidas instituições de pesquisa, a grande maioria delas fundada no século 19 e, não raro, protagonista de importantes avanços científicos. As equipes desses museus são formadas pelo staff que lida com os turistas. Menos visíveis são os laboratórios de pesquisa e catalogação que pulsam por trás das coleções.
Quadro desolador
Os mesmos que a elas acodem no exterior raramente se interessam pelos museus similares que existem por aqui. É verdade que nenhum deles conta com os espaços ou os fundos de seus pares estrangeiros, sem mencionar as dificuldades de implementar, em nossas instituições públicas, esquemas de arrecadação que ajudem no sustento do museu. Com isso, as coleções, muitas delas valiosíssimas, mesmo quando exibidas são vistas por poucos. Se acrescentarmos a isso um desinteresse geral das camadas escolarizadas da população pela ciência, com destaque para as da “elite”, teremos um quadro desolador, no qual o catastrófico incêndio, que em 2018 consumiu boa parte das instalações do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, desponta como um evento pouco surpreendente.
Como mostra Ceríaco, essa situação está longe de ser prerrogativa brasileira. Um incêndio atingiu em 1978 o Museu Bocage em Lisboa, destruindo boa parte das coleções alojadas a partir de meados do século 18, quando a história natural, na esteira de Lineu e Buffon, se consolidou em Portugal como disciplina científica. E desde o início os “doutos”, como eram então chamados os cientistas, tiveram de se haver com os mais diferentes obstáculos, desde o descaso e a incompreensão dos poderes estabelecidos até as inevitáveis ocorrências políticas, como a invasão napoleônica, a transferência da família real para o Brasil e as guerras civis do século 19.
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Mas os naturalistas não renunciaram à prerrogativa de elevar a ciência ao estado da arte. Acompanhando as discussões teóricas em outros países europeus, souberam tirar proveito do acesso, facilitado pelo império ultramarino português, a exemplares de seres vivos oriundos de diferentes partes do planeta. A partir de fins do século 18, tornam-se comuns as “viagens filosóficas”, como eram chamadas as expedições de coleta ao Brasil, a São Tomé, a Goa. No Brasil, a viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-92) representou uma espécie de culminação da prática naturalista colonial em solo brasileiro.
Ciência colonial
Essa circunstância, comum a outros países europeus com domínios imperiais, levou detratores mais recentes a ver na história natural uma ciência inerentemente colonial, maculada pela imposição de teorias e métodos a ambientes habitados por povos que teriam sua própria maneira de classificar e compreender o mundo. De fato, existe uma dimensão política que perpassa a história dessa ciência, desde os tempos de Aristóteles, que elaborou a História dos animais enquanto acompanhava Alexandre Magno em suas conquistas pela Ásia até as margens do Ganges. Mas, daí a afirmar que a história natural seria uma ciência inerentemente colonialista vai uma diferença considerável. Os naturalistas europeus que puseram os pés no Brasil colônia estavam, por certo, a serviço de um projeto de conquista e dominação. Trouxeram consigo um saber que ignorava os saberes locais, com os quais entraram em disputa. Inaugurou-se, assim, mais um capítulo na história da ciência inventada por Aristóteles e aperfeiçoada por Lineu. Nele, a ciência europeia mescla-se à ameríndia, que, por sua vez, a reconfigura.
A parte mais inspiradora do livro narra a reconstruçãoda ciência depois das catástrofes políticas
O mesmo vale para as interações entre Portugal e Brasil no plano das instituições científicas. Não me refiro aqui a colaborações institucionais, mas ao feitio português das instituições brasileiras. Penso, ainda, numa qualidade, a obstinação, que ou herdamos dos portugueses ou tivemos de aprender por conta própria, essa insistência em produzir um trabalho teórico, experimental e científico de alta excelência, malgrado as condições mais adversas. São abundantes, nas páginas de Ceríaco, os exemplos dessa virtude. Nesse sentido, a parte mais inspiradora do livro é a terceira, “Os anos de ouro da zoologia portuguesa”, que narra a reconstrução da ciência a partir de 1861, passadas as catástrofes políticas das décadas precedentes. Vemos então a ciência se reerguer, com novas feições, e firmar-se, de uma vez por todas, numa terra que havia séculos as vinha cultivando com dedicação.
No período a que Ceríaco se refere, a história natural podia contar com algumas inovações recentes, decisivas para o estudo dos animais, como a teoria da evolução de Darwin, a genética de Mendel, a fisiologia de Claude Bernard, a anatomia comparada de Owen, a embriologia de Von Baer. Mais segura de si, menos tateante, a ciência não perde seu caráter experimental e tampouco abandona as pretensões a organizar a natureza e, se possível, a encontrar o fio que conduz à percepção da ordem natural. No século 20, quando é absorvida pela biologia, a história natural preserva sua autonomia no espaço dos museus, que se tornam instituições investidas das mais diferentes cargas políticas e ideológicas, da propagação da antropologia racista à celebração do nacionalismo chauvinista.
Seria uma razão para relegar esses museus ao passado? Muitos começam a pensar que sim. Mas, com isso, talvez padeçam de uma ilusão similar à de Lineu, julgando encontrar, numa ordenação puramente nominal e descritiva, sujeita a toda sorte de revisão, um sistema fixo que descreve uma realidade objetiva. Um corretivo para lidar com essa miragem pode ser fornecido por aqueles países que nunca tiveram um museu de história natural digno desse nome.
Se quisermos ter uma ideia do que uma instituição como essa é capaz, em termos de incitação à reflexão crítica, basta evocar aqui as exibições permanentes do antigo Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, ou, na falta delas, visitar os espaços do Museu de Zoologia e do Museu de Arqueologia e Etnologia, ambos da Universidade de São Paulo, recentemente reabertos ao público. Transitando entre essas duas instituições, vemos fósseis de dinossauros e de grandes mamíferos extintos há milhões de anos, mas também artefatos de povos ameríndios produzidos há não mais que um punhado de milênios ou séculos. Organizados e dispostos segundo métodos europeus, esses objetos nos ensinam uma lição preciosa sobre a transitoriedade das formas de vida e a perpetuação do ciclo evolutivo que as engendra e as renova.
Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.
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