Divulgação Científica,

Seres sociais na era da solidão

Fundador da sociobiologia leva para as ciências debates centrais da filosofia e das religiões

01out2019 | Edição #27 out.2019

Meu sobrinho de cinco anos um dia apareceu com a pergunta: “Como a gente se formou se não existia nada antes?”. Achei que ele queria entender de onde vêm os bebês, mas ele emendou: “Como todo mundo começou?”. Pronto, pensei, começou a filosofia para o pequeno. Achei curioso ele expressar a mesma inquietação que eu tinha quando criança. Questionamentos como esse, que surgem tão precocemente, muitas vezes nos acompanham por toda a vida.

Na mesma época, eu estava lendo O sentido da existência humana, do biólogo americano Edward Osborne Wilson. Publicado nos Estados Unidos em 2014 e recentemente lançado no Brasil, o livro trata de questões como a do meu sobrinho e algumas variações, por exemplo: “A humanidade ocupa um lugar especial no universo?”.

Wilson é biólogo e professor emérito da Universidade Harvard. Com noventa anos recém-completados, segue contribuindo para a ciência de forma riquíssima e criativa. Escreveu mais de quarenta livros, além de centenas de artigos. E não se restringe apenas a discutir a diversidade e o comportamento de formigas, grupo de insetos sociais do qual é o maior especialista no mundo; trata igualmente da origem do comportamento social, da dinâmica dos ecossistemas e sua implicação na preservação da biodiversidade, além de colocar fundamentos filosóficos em discussão, aplicando-os ao avanço do conhecimento científico. Ainda que trabalhe temas difíceis, ele escolhe as palavras com o cuidado de um artesão, e o texto flui como uma conversa. Qualquer um de seus livros é um bom ponto de partida para quem quiser conhecê-lo — sua obra é viciante.

A filosofia e as religiões esmiúçam há séculos a razão da existência humana. A discussão segue até certo ponto, mas não há consensos. Partindo desse desconforto, Wilson entende que as especulações não devem ser deixadas exclusivamente a cargo das humanidades e da fé, que tratam da condição humana, mas que “não explicaram por que temos nossa natureza e não outra dentre um vasto número de naturezas concebíveis”. 

Acidentes que geram sentido

O termo “sentido”, que aparece já no título do livro, ganha aqui um significado diferente daquele mais usual, que sugere uma intenção. Para a ciência, diz Wilson, “a humanidade surgiu absolutamente por conta própria, por meio de uma série cumulativa de acontecimentos ao longo da evolução”. Em outras palavras, evoluímos ao longo de milhões de anos, dentre várias outras formas de vida, por um processo natural. “Os acidentes da história, não as intenções de um criador, geram o sentido”, defende o autor. “Não existe uma criação prévia, mas redes sobrepostas de causa e efeito físicos. O desenrolar da história obedece apenas às leis gerais do universo. Cada acontecimento é aleatório, mas modifica a probabilidade de futuros acontecimentos.” 

Wilson propõe uma espécie de parceria com o leitor, na qual ele apenas pede para ser o guia 

Nesse contexto, considerando a casualidade dos fatos e a necessária associação de causa e efeito, outras infinitas realidades teriam sido possíveis. No entanto, salienta o autor, os avanços tecnocientíficos colocaram, de certo modo, as rédeas da evolução da espécie humana em nossas mãos. Somos agora agentes do nosso futuro. 

Para avançar na busca pela origem do comportamento social humano, Wilson retoma a explicação (amplamente aceita) da “eussocialidade”, forma de organização social avançada. Ela é rara — ocorre em apenas vinte espécies, e isso se incluirmos a humana —, mas um grande sucesso ecológico: basta saber que as formigas e os cupins compõem mais da metade dos insetos no planeta. Ocorre quando “os integrantes de um grupo […] cooperam na criação dos jovens ao longo de várias gerações” e “também dividem o trabalho com base na renúncia de alguns integrantes de sua reprodução pessoal, ou pelo menos parte dela, para incrementar o sucesso reprodutivo (reprodução no decurso da vida) de outros integrantes”. 

Contrapondo duas teorias concorrentes — a da seleção de parentesco (ou aptidão inclusiva) e a seleção natural (ou seleção multinível) —, O sentido da existência humana narra cronologicamente como pesquisadores do assunto, incluindo o próprio Wilson, participaram do desenvolvimento de cada uma delas. No relato, que inclui bastidores e sutis alfinetadas, fica claro o papel central do autor na criação da disciplina conhecida como sociobiologia (formulada em The insect societies, de 1971, e Sociobiology: The new synthesis, de 1975).

Antes disso, em 1955, o geneticista J.B.S Haldane publicou um trabalho que apresentava a seleção de parentesco a partir de um modelo matemático. Segundo a teoria, pelo altruísmo de alguns membros, integrantes do grupo obtêm mais benefícios individuais do que perdas nos genes transmitidos para a geração seguinte. Essa seria a chave para explicar a origem da eussocialidade: considerar a multiplicidade de interações positivas (o altruísmo e a cooperação entre elas) e negativas, como Richard Dawkins bem comunicou no livro O gene egoísta, de 1976 (publicado no Brasil em 2007 pela Companhia das Letras). 

Essa teoria do parentesco, que chegou a ser um dogma, foi defendida durante algum tempo por E. O. Wilson. Depois, ele enfrentou grande resistência ao contestá-la em parceria com os colegas de Harvard Martin Nowak e Corina Tarnita. A reação da comunidade científica ao trabalho que os três publicaram na revista Nature, em 2010, foi fortíssima: no ano seguinte, 137 biólogos publicaram um protesto na mesma revista e, em 2012, quando Wilson repetiu seus argumentos no livro A conquista social da Terra, o próprio Dawkins escreveu para a revista Prospect um artigo com o título “The descent of Edward Wilson — A new book on evolution by a great biologist makes a slew of mistakes” [O declínio de Edward Wilson — Um novo livro de um grande biólogo sobre a evolução comete uma série de erros]. Para Wilson, “Richard Dawkins reagiu com o fervor indignado de um crente”.

Sutileza radical

A seleção multinível oferece ao biólogo fundamentos para suas inferências sobre o comportamento humano. A diferença entre as duas teorias pode parecer sutil para os não cientistas, mas a aparente sutileza é, na verdade, radical. O gene é uma unidade de seleção evolutiva da teoria multinível — e não da teoria da aptidão inclusiva, ao contrário do que pode sugerir o título do conhecido livro de Richard Dawkins. 

O sentido da existência humana é o segundo volume de uma trilogia. Apesar de interligados, os títulos podem ser lidos de forma independente. O primeiro deles, A conquista social da Terra, aborda a questão “de onde viemos” e descreve os motivos pelos quais organizações eussociais se estabeleceram pouquíssimas vezes e tão tardiamente na história evolutiva dos seres vivos. O segundo, tratado aqui nesta resenha, faz a revisão daquilo que a ciência diz sobre nosso sistema sensorial — “surpreendentemente fraco” — e nosso raciocínio moral — “instável e conflitante” — e discute por que ambos são deficientes para os propósitos da humanidade moderna. Desse modo, a pergunta maior do livro acaba sendo “o que somos?”. 

A trilogia se encerra em Half Earth, que especula sobre o futuro: “Para onde vamos?”. Edward O. Wilson propõe a preservação de metade da cobertura vegetal do planeta para que a maioria das formas de vida existentes possam ser salvas da extinção (o projeto está disponível online em inglês, em half-earthproject.org). Esse conjunto de publicações pretende descrever como a espécie humana se tornou arquiteta e protagonista do chamado Antropoceno, gerando consequências que estão afetando todos os seres vivos numa escala de tempo geológica. O biólogo, por sinal, prefere chamar por outro nome esse período em que todas as espécies estão subordinadas à nossa: “Eremoceno”, a era da solidão.

Denso, O sentido da existência humana pode ser definido como uma obra filosófico-científica. Edward O. Wilson propõe uma espécie de parceria com o leitor, na qual ele apenas pede para ser o guia. E, assim, seduz com questões elegantes, convida para reflexões e trabalha com uma multiplicidade de dados. Tudo leva a pensar que a mensagem principal desse livro é que, ao nos conhecermos melhor, seremos capazes de definir qual papel desejamos ter na Terra enquanto espécie, e qual a responsabilidade de cada um individualmente no destino da humanidade e de todos os demais seres viventes. 

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Renata Moretti

Faz pós-doutorado na Harvard University.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.