Divulgação Científica,

A beleza dos números

Matemático premiado, Marcelo Viana reúne crônicas em que trata teoremas como conversa de bar e ajuda a popularizar a disciplina

28jun2024 - 11h23 • 28jun2024 - 12h43 | Edição #83
Marcelo Viana, matematico e Diretor presidente do IMPA. (Bel Pedrosa/Divulgação)

Logo no início de Em defesa de um matemático, um livrinho brilhante e provocador escrito em 1940 por G. H. Hardy (1877-1947), o autor inglês observa, com calculada mordacidade, que era uma experiência melancólica para um matemático profissional como ele se ver escrevendo sobre matemática. Para Hardy, “a função de um matemático é fazer algo, provar novos teoremas, contribuir para a matemática, e não falar sobre o que ele ou outros matemáticos fizeram.”

Nada poderia estar mais distante do sentimento experimentado por Marcelo Viana, também ele um matemático profissional, ao confeccionar os textos que viriam a formar o instigante e saboroso Histórias da matemática: da contagem dos dedos à inteligência artificial, que acaba de ser publicado pela Tinta-da-China Brasil. “Certamente não foi nem um pouco melancólico para mim escrever sobre matemática”, diz Viana numa conversa que tivemos em meados de junho. “Pelo contrário, foi um prazer e um privilégio imensos, já que a escrita desses textos me deu, entre outras coisas, a chance de conhecer muito melhor minha própria disciplina”.

Para o autor brasileiro, quem afirma que a matemática se resume a provar teoremas no fundo adota uma postura egocêntrica, onde o que mais importa é a sua relação pessoal com ela. “Eu compreendo a matemática como um exercício coletivo, pois se trata de um bem social, um bem da humanidade, e que, portanto, deve ser compartilhado com o maior número de pessoas possível”.

Foi com essa ideia na cabeça — e num contexto histórico propício — que, em maio de 2017, Viana começou a escrever colunas semanais na Folha de S.Paulo. Vivia-se à época o início do chamado biênio da matemática, quando o Brasil sediaria, pela primeira vez, dois dos eventos mais importantes e tradicionais da disciplina: em 2017, a Olimpíada Internacional de Matemática e, em 2018, o Congresso Internacional de Matemáticos — este, vale dizer, realizado apenas de quatro em quatro anos e até então inédito num país do hemisfério Sul.

“Havíamos preparado, em torno desses dois eventos, uma série de ações e atividades voltadas à popularização da matemática, e eu encarei a oportunidade de escrever na Folha como parte desse esforço”, diz. Mas essa atividade que Viana imaginava, inicialmente, exercer apenas enquanto durasse o biênio, com o tempo ganhou um novo sentido para ele e foi se prolongando, prolongando… até hoje. “No meio desse processo, eu, que na realidade sou um pesquisador, comecei a me questionar sobre a razão de estar fazendo aquilo. E só fui entender isso quando, numa conversa com uma colega, ela me disse: ‘Você escreve para que as pessoas se sintam bem com a matemática’. Na hora aquilo fez todo o sentido para mim. E esse passou a ser o meu norte”.

Histórias da matemática é o resultado (de parte) do desafio assumido há sete anos de traduzir semanalmente para o público geral as maravilhas da rainha das ciências, como a definiu o grande Carl Friedrich Gauss (1777-1855). “Eu me joguei de cabeça nisso, mas considerando que seria uma loucura, já que, dada a minha rotina, eu dificilmente conseguiria sustentar essa frequência por muito tempo.” Viana não exagera. Pesquisador renomado e premiado na área de sistemas dinâmicos, ele costuma ter a agenda cheia com aulas, palestras, orientandos, congressos pelo mundo e, claro, o laborioso e muitas vezes frustrante trabalho de tentar provar teoremas.

Há mais de trinta anos bate ponto no Instituto de Matemática Pura Aplicada, o Impa, uma instituição federal fundada na década de 50 no Rio de Janeiro e hoje um dos raros centros de excelência, em qualquer área do conhecimento, sediados no Brasil. Mais do que um pesquisador do Impa, Viana é, desde 2016, o diretor-geral do instituto, o que trouxe mais uma carga de obrigações e compromissos ao seu dia a dia. “E mesmo assim, nunca deixei de entregar um texto até hoje”, faz questão de frisar, orgulhoso.

Charadas e problemas

Baseado nas colunas escritas para a Folha, várias delas adaptadas, fundidas e aumentadas, Histórias da matemática se organiza essencialmente de forma cronológica, da Antiguidade ao século 21. A despeito disso, convém observar, não se trata de uma história da matemática, com suas pretensões totalizantes e miríade de detalhes, mas de um conjunto de histórias relacionadas à matemática. Os textos têm a forma de breves lições e são escritos em torno de algum tópico ou personagem da disciplina, no qual o autor introduz o seu desenvolvimento histórico até os dias atuais, define conceitos importantes para a compreensão da ideia, e aponta, quando existem, as aplicações obtidas. Ao longo da obra, Viana vai também propondo charadas e problemas — alguns mais simples, outros francamente trabalhosos — e convida o leitor a se debruçar sobre eles.

Muitos assuntos matemáticos são amarrados com habilidade a referências do dia a dia. Assim, uma crônica que começa discutindo a nomenclatura de determinado número impressionantemente grande, passa pela escolha do nome Google e termina numa breve história do infinito. Outra, sobre a célebre “Quadrilha” de Drummond, serve de exemplo para uma aplicação da teoria do emparelhamento. Já as obras viárias para as Olimpíadas de 2016 no Rio se tornam uma introdução para falar do Paradoxo de Braess e uma cena do documentário Edifício Master, de Eduardo Coutinho, enseja uma rica discussão sobre métodos estatísticos de votação popular.

A célebre ‘Quadrilha’ de Drummond, serve de exemplo para aplicação da teoria do emparelhamento

O livro ganha força pela maneira leve e entusiasmada com que o autor manuseia todos esses tópicos. A impressão é que ele está sentado ao nosso lado, puxando uma conversa e tentando explicar por que a matemática o fascina tanto. Bom contador de histórias, não se furta a também tratar de assuntos que, em certo sentido, podem ser considerados mais profundos e sofisticados. Questões metamatemáticas, como os teoremas sobre os limites da aritmética, dão as caras junto a outras que tangenciam a filosofia: a matemática é inventada ou descoberta? Como justificar a estranha capacidade dessa disciplina, tão apartada do mundo real, de explicar e prever o mundo à nossa volta? É uma mistura que faz bem ao livro.

Da mesma forma, o autor deixa patente, em diversos momentos, um fato que possivelmente soará intrigante para o leitor leigo. Apesar de todo o empenho para apresentar uma matemática contextualizada, útil e cotidiana, quando se trata da pesquisa acadêmica nada disso tem qualquer importância. A matemática
se basta. Constrói a sua esplêndida catedral de abstrações fora do tempo e do espaço, sem qualquer preocupação de servir a algo mais, mas tão somente baseada na compatibilidade e na beleza dos materiais empregados.

“A pesquisa matemática, de fato, tem uma dinâmica de desenvolvimento própria”, diz Viana. “Nós, da mesma forma que um pintor, nos encantamos com o que fazemos independentemente do significado que possa haver para o mundo lá fora. E para quem a pratica, a matemática é uma atividade artística também, com regras e exigências internas. Mas isso não quer dizer que ela seja apenas isso”. Assim, embora a coletânea seja uma obra introdutória, pelos temas que explora e pela forma que os explora, ela tanto convida o leitor iniciante a se aprofundar como leva o iniciado a repensar coisas que já sabe.

A impressão é que o autor está ao nosso lado, tentando explicar por que a matemática o fascina tanto

O paralelo entre a criação matemática e a artística não é gratuito. Com frequência, matemáticos se valem de um léxico estético para se referir ao próprio trabalho. “Passamos a vida pensando em objetos lindos”, disse certa vez Jean-Christophe Yoccoz (1957-2016), ganhador da medalha Fields, o “Nobel” da matemática, em 1994. Nosso autor não fica atrás. Nas páginas de Histórias da matemática pululam expressões como “belíssima relação”, “lindo teorema”, “elegantíssimo conceito”… Mas o que seria a beleza matemática?

Segundo Viana, embora seja difícil oferecer uma resposta que esgote a questão, há alguns critérios fundamentais que todo pesquisador da área reconhece. Por exemplo, a simplicidade, a capacidade de dizer muito com pouco. “Se eu lhe mostrar um teorema cujo enunciado precisa de uma folha inteira para ser escrito, você certamente não vai achar bonito. Mas a coisa é completamente diferente com a equação de Dirac da antimatéria, que ocupa menos de uma linha e tem consequências incrivelmente profundas”, diz. “Outro critério importante é a surpresa, a descoberta de relações íntimas entre coisas aparentemente muito diferentes”.

Potência matemática

O progresso da matemática brasileira nas últimas décadas é de causar inveja. A consolidação do Impa como um dos principais centros de pesquisa do mundo; a conquista, em 2014, da medalha Fields por Artur Avila e a ascensão do país, pouco tempo depois, ao grupo de elite da União Matemática Internacional — que colocou o Brasil ao lado de potências como Estados Unidos, Rússia e França — são sinais inequívocos da maturidade e da relevância do conhecimento produzido por aqui.

Tantos avanços chamam a atenção também pelo brutal contraste com a precária situação do ensino básico da disciplina. No último exame internacional Pisa, por exemplo, nada menos que 73% dos estudantes brasileiros ficaram abaixo do nível mínimo para sua idade. O resultado pífio tem como consequência prática uma inaptidão para lidar com situações cotidianas que envolvam números e grandezas.

Para Viana, há muitos fatores por trás desse fenômeno, a começar pela pouca importância dada pelas classes dirigentes à educação pública, algo que ficou escancarado quando as escolas ficaram fechadas por meses durante a pandemia, e as carências socioeconômicas de grande parcela dos estudantes. A isso se somam uma visão em geral estereotipada e negativa da matemática e o fato de que nossa cultura social dá muito pouco valor à matéria. “A escala do problema é de tirar o fôlego”, diz.

Fazer as pessoas se sentirem melhor com a matemática, como pretende Marcelo Viana, talvez seja um primeiro passo para superarmos esse tremendo paradoxo brasileiro.

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros

Quem escreveu esse texto

Fernando Tadeu Moraes

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “A beleza dos números”