Direitos Humanos, Literatura infantojuvenil,

Ensinando a sonhar

Livro sobre crianças sírias em fuga mostra a importância da imaginação para restaurar o equilíbrio psíquico dos refugiados

01out2021 | Edição #50

“Espaço e tempo são modos como pensamos, não condições nas quais existimos”, disse Albert Einstein. Em Barco de histórias, uma menina e um menino, dois irmãos fugindo com sua família da guerra na Síria, constroem a cada dia uma resposta a essa pergunta. Se a questão metafísica se torna existencial quando todos os pontos de referência de uma criança foram destruídos por bombas ou deixados para trás em ruínas, nesse livro ela também é poesia.

O que é aqui?
Aqui é uma xícara.
Velha e boa, quentinha como um abraço.
Toda manhã, enquanto as coisas continuam mudando, a gente se senta onde quer que esteja e toma um gole.

Objetos outros da jornada — um cobertor, uma lanterna e uma flor — ganham novos significados e dão asas para a imaginação das crianças. A construção do sonho como fuga ao pesadelo da realidade e esperança de novos horizontes.

A premiada autora Kyo Maclear faz uso da simplicidade e da delicadeza das ilustrações de Rashin Kheiriyeh para abordar com esperança um tema árduo. A guerra na Síria é hoje a maior crise de deslocamento do mundo: 5,6 milhões de refugiados (incluindo 2,5 milhões de crianças) vivendo na Jordânia, no Iraque, no Líbano, na Turquia e no Egito. O tempo psicológico escolhido pela escritora canadense para retratar a guerra, seus conflitos e as fugas dos deslocados é uma constante também entre grandes autores de língua portuguesa, de Graciliano Ramos (os retirantes em Vidas secas) a Mia Couto (os meninos na guerra civil de Moçambique em Terra sonâmbula).

Em uma guerra em que as infâncias são roubadas, a sobrevivência é possível graças à dimensão onírica

Outro ponto em comum entre esses livros é o recurso à metalinguagem (neste caso, a história dentro da história sendo escrita pelos personagens) como busca de identidade e perspectiva num contexto de migração: “Toda semana nós sonhamos e desenhamos […] acrescentando palavras a esta história. E esta história é um barco”.

Os personagens de Mia Couto são crianças sobreviventes de guerra: um menino lendo os diários de outro, manuscritos encontrados numa mala ao lado de um cadáver. O pai questiona o propósito do menino escrevinhador:

O que estás a fazer com um caderno, escreves o quê?
Nem sei pai. Escrevo conforme vou sonhando.
E alguém vai ler isso?
Talvez.
É bom assim: ensinar alguém a sonhar.

Diante da brutalidade de uma guerra em que as infâncias são roubadas, a sobrevivência é possível graças a essa construção, que acontece no tempo psicológico, de um outro tempo onírico. É possível entender que uma criança fugindo de uma guerra vê o tempo e o espaço numa dimensão de sonho. A partir dele e da arte é que existe o resgate da vida humana.

Da literatura à ação

O estudo desse mecanismo do trauma levou pesquisadores noruegueses da Universidade de Tromso e do Centro Norueguês para Estudos da Violência e do Estresse Traumático a desenvolver um método pioneiro em 2007. A ideia era criar um programa para melhorar as condições de ensino de crianças e adolescentes expostos a guerras e conflitos, e assim surgiu o Programa para o Melhor Aprendizado (BLP). A iniciativa consiste em intervenções organizadas nas escolas onde especialistas em educação e psicologia explicam às crianças suas reações emocionais e oferecem exercícios de relaxamento, respiração e concentração para fortalecer sua capacidade de resiliência e aprendizado. Crianças com traumas agudos eram identificadas por relatos recorrentes de pesadelos e recebiam uma abordagem mais clínica e sistemática do programa.

A primeira versão do BLP foi testada na Palestina em 2011, em oito escolas de Gaza — onde crianças são alvos de violência em checkpoints, detenção e prisão. Desde então, o projeto já alcançou mais de 150 escolas em Gaza e na Cisjordânia e foi levado a outros países da região. A iniciativa reduziu os relatos de pesadelos das crianças. Desenhos feitos pelas crianças antes e depois do programa também mostram claras diferenças, de personagens brigando a personagens sorrindo.

Esse projeto é um exemplo, centrado no trabalho da relação entre corpo e mente, para ajudar crianças a resgatar o foco no presente e restaurar o equilíbrio interno. Muitas outras iniciativas estão sendo implementadas por ongs e organizações humanitárias em países que acolhem crianças refugiadas. Desde 2005, o Conselho de Segurança da onu criou um Mecanismo de Monitoramento e Relatório para documentar violações contra crianças em conflitos armados, e seis violações graves foram identificadas: mutilação e assassinato, recrutamento por grupos armados, ataques a escolas e hospitais infantis, estupro e violência sexual, sequestro e negação de acesso humanitário. A expectativa era de que o constante monitoramento, os alertas e as denúncias reforçariam os compromissos da sociedade civil e do Estado pela proteção de crianças em situações de guerra.

Dez anos após o início da guerra na Síria, porém, o país continua a figurar no topo da lista de violações graves às crianças, com casos de sequestro e violência sexual aumentando em 90% e 70%, respectivamente, em 2020, segundo relatório da onu. O documento também alertou para ataques em escolas e hospitais que continuam acontecendo em diversas regiões da Síria.

A impunidade relativa a crimes contra crianças nas guerras é flagrante. É a história velada que permeia Barco de histórias e muitos outros que corajosamente navegam contra a maré, insistindo em chamar a atenção dos leitores para a desmedida injustiça, para que de fato ela seja vista como descabida e finalmente transformada, não por aqueles que acreditam que o tempo existe preso dentro de um relógio, mas sim por jovens leitores capazes de sonhar e criar o amanhã hoje.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Carolina Montenegro

É jornalista, escritora e defensora dos direitos dos refugiados. Pela Editora Caixote, publicou o livro infantil “AMAL e a viagem mais importante da sua vida” (2019).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.