Design,

Para que serve uma capa?

Obras se destacam em antologia exaustiva, com projeto editorial louvável, apesar de excludente

01dez2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Uma lembrança remota: em um shopping center, em algum lugar dos anos 80, um livro de capa cinza estampava a imagem de uma mulher pelada. Ao abri-lo, tal qual uma experiência pavloviana, tomei um choque elétrico. Sigo ainda hoje sem entender o que se queria condicionar com esse dispositivo. “Você não pode julgar um livro por sua capa”, canta, ironicamente, Stevie Wonder. “A cara de um livro, no mundo ideal, deveria ser neutra”, diz um editor. “A letra dessa capa está pequena”, eu, designer, já ouvi muito. “Capa verde não vende; de branca, livreiro não gosta, e a preta risca.”

{{gallery#13}}

Uma lembrança remota: em um shopping center, em algum lugar dos anos 80, um livro de capa cinza estampava a imagem de uma mulher pelada. Ao abri-lo, tal qual uma experiência pavloviana, tomei um choque elétrico. Sigo ainda hoje sem entender o que se queria condicionar com esse dispositivo. “Você não pode julgar um livro por sua capa”, canta, ironicamente, Stevie Wonder. “A cara de um livro, no mundo ideal, deveria ser neutra”, diz um editor. “A letra dessa capa está pequena”, eu, designer, já ouvi muito. “Capa verde não vende; de branca, livreiro não gosta, e a preta risca.”

Um sujeito que lê no Kindle, ou em qualquer outro dispositivo eletrônico, não revela ao mundo o que tem nas mãos. Na chave oposta, se somos o que lemos, como diz o chavão, abrir um livro em público é um gesto de autoexposição — e a capa é o mecanismo para isso. No último dia 28 de outubro, segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, pessoas carregavam livros debaixo do braço. O que realmente importava ali eram as capas — meio e mensagem para uma afirmação de princípios. 

Uma capa serve para muita coisa, inclusive para proteger o miolo de um livro. Porém, assim como um caramujo sem concha, os livros saíam das oficinas gráficas sem esse aparato até o início do século 19. Cabia então ao livreiro, ou ao leitor, encadernar o miolo da maneira como bem quisesse. Nesse miolo sem capa, restava à folha de rosto fazer a mediação entre o corpo do livro e o mundo.

Como não poderia ser diferente, a história do livro no Brasil é um imbróglio. O controle de circulação de informações na Colônia fez com que apenas em 1808 se criasse a Imprensa Régia, formalizando dessa maneira a operação de impressão de livros por aqui. Antes disso, em 1747, o português Isidro da Fonseca montara sua oficina no Rio de Janeiro — mas sua atividade como tipógrafo durou pouco. Logo, foi deportado à metrópole.

Como um caramujo sem concha, os livros saíam sem capa das gráficas até o início do século 19; cabia ao livreiro ou ao leitor encaderná-los

A capa do livro brasileiro: 1820-1950, parte daí para traçar um rico panorama da visualidade das capas produzidas no Brasil. Conduzida por Ubiratan Machado, jornalista, bibliófilo e também autor de A etiqueta de livros no Brasil e Pequeno guia histórico das livrarias brasileiras, a pesquisa se divide em 35 capítulos. Neles, a história se reconstitui sob a pauta dos avanços tecnológicos; dos nomes-chave das artes gráficas nacionais; dos movimentos literários e artísticos; dos editores emblemáticos e, claro, do mercado. 

Com fôlego, o autor articula esses vetores e analisa do ponto de vista sintático e semântico parte das 1707 imagens documentadas no volume. Desse universo destaco e comento sete [ver ao lado e acima], valendo-me da experiência de quem, no dia a dia, lida com o desenho de capas. 

O esforço editorial empreendido na publicação de uma pesquisa que se dedica com tamanha abrangência à história do livro no Brasil é louvável, sobretudo em tempos em que o campo cultural é alvo de ataques tão frequentes. Contra isso, é fundamental afirmar o lastro das coisas. 

Por outro lado, fazer dessa edição um monumento hiperbólico, vendido a R$ 320, é reiterar o pensamento excludente que rege parte das pessoas que atuam nesse campo. Entendendo que a vocação básica do livro moderno é a circulação de ideias em escala industrial, resta a incoerência. E, assim, acabamos por ser o que não lemos.

Quem escreveu esse texto

Daniel Trench

É um dos autores do projeto gráfico da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.