Divulgação Científica,
Outras ciências para outra política
Pensamento do filósofo francês Bruno Latour segue fundamental na revisão inadiável das relações entre política e ecologia
12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20Em 2019 completam-se vinte anos da publicação de Políticas da natureza, de Bruno Latour, pensador contemporâneo francês que renova profundamente o tema, cada vez mais urgente, das relações entre política e ecologia. Urgência que se torna urgentíssima diante das mudanças climáticas — intimamente ligadas às consequências da civilização capitalista. O livro, que ganhou uma nova edição brasileira em 2018, pode começar a ser explicado a partir de seu subtítulo, Comment faire entrer les sciences en démocratie, agora traduzido para “Como associar as ciências à democracia”. Ao pé da letra, porém, seria “Como fazer entrar as ciências [no plural, que, como veremos, faz toda a diferença] em democracia [ou ‘em regime democrático’]”.
O fraseado incomum mesmo em francês aponta para dois sentidos: fazer com que as ciências realmente participem da democracia, e que seu modo de produção entre em regime democrático. Para isso, é imperativo o cultivo de passagens civilizadas de um modo de existência de produção de fatos (o científico) para outro (o político) sem reduzir um a outro. Um tal esforço implica civilizar a própria civilização em tempos de fim dos tempos, quando o colapso ambiental se confunde, não por acaso, com o colapso da representação política mundo afora.
Por consequência, esse esforço exige recusar, e num só golpe, os dois grandes repertórios do pensamento crítico moderno: o naturalismo e o relativismo — e sobretudo o abismo entre eles. Ou seja, recusar que, de um lado, tome-se como já dado e incontroverso o material do qual o mundo é feito (átomos, neurônios etc.), e, de outro, que se tome esse material como representações sociais ou culturais menos ou mais arbitrárias. Como tornar civilizado esse trânsito? Este, então, é o trabalho de Bruno Latour: pavimentar devidamente os caminhos que vão dos achados das ciências aos arranjos da política sem abafar ou esconder as controvérsias inerentes à produção do conhecimento. Do contrário, as verdades da natureza traduzidas pelas ciências neutralizam as verdades da sociedade traduzidas pela política.
Sim, mas as ciências e a política, mostra-nos Latour, são ambas dependentes da razão e das paixões. Nossa tarefa de, ao mesmo tempo, democratizar o regime do conhecimento para re-imaginar a política implicaria livrar a atividade científica do domínio da pura objetividade, da frieza, da verdade indiscutível. E simultaneamente pensar uma sociedade que melhor ecoasse as coisas não humanas que a constituem e nelas reconhecesse a dignidade de agentes — condição por excelência humana hoje. O trabalho de Bruno Latour se arvora no esforço por abrir o social ao cosmos, os humanos aos não humanos: para a ecologia, mais política; para a política, mais ecologia.
Herança ocidental
De acordo com Latour, a política jamais se fez senão em referência à Natureza traduzida pela Ciência — ambas no singular e em maiúsculo. A Ciência veio dar, então, na “mononatureza”, que, em contraste com as multiculturas, exerce seu poder, não raro fundamentalista e tirânico, sobre a política. Eis aí o modelo-padrão da política dos modernos (que se inicia na Antiguidade grega): sua ação começa depois de conhecidas as verdades dos sábios e dos filósofos da Natureza.
A Ciência modernista (assim grafada e contra a qual Latour opõe as ciências, com “c” minúsculo e no plural) é aquela cuja sustentação depende da oposição ao social; contrapõe-se à política, reino das paixões, dos preconceitos, dos interesses, da vida pública tumultuada. A Natureza, assim, aparece como reino dos fatos puros e independentes, apartado dos torvelinhos subjetivos. Aí temos uma face da herança ocidental da qual, argumenta o autor, é urgente nos livrarmos, já que ela faz com que as verdades científicas, surgindo como indiscutíveis, calem o suposto inferno da ignorância e da obscuridade que sempre assombraria o pobre mundo da sociedade e da política.
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Bruno Latour propõe a constituição do que ele chama de “bom mundo comum”: um mundo que não se valha de uma repartição prévia do pensamento entre o que já é dado como racional e irracional, objetivo e subjetivo, verdadeiro e ideológico, fato e feito, natural e social. O projeto não modernista aparece em Políticas da natureza como uma série de reflexões a serviço de novas formalizações da nossa vida pública. Esse outro desenho institucional reformaria publicamente os laços e as passagens entre as ciências e a política para que, assim, no lugar do abismo, se abrisse a possibilidade de civilizar a produção política da sociedade bem como, simetricamente, a produção científica da natureza.
Políticas da natureza trabalha pelo fim dos saltos misteriosos e nada democráticos entre a natureza, as ciências e a política. Civilizar esses caminhos é tudo de que se trata neste livro: civilizar a civilização moderna, por mais redundante que isso pareça em termos de linguagem. O atual imbróglio da chamada era da “pós-verdade”, por exemplo, liga-se diretamente à deterioração das passagens do científico ao político.
Mas, afinal, o que constrange à dissolução do tipicamente moderno par natureza e sociedade? A resposta pode passar por aquilo que a filósofa da ciência Isabelle Stengers, comparsa intelectual de Latour, denomina de intrusão de Gaia: a súbita figuração de não humanos como agentes políticos. Que se pense aqui nos mil problemas ecológicos, ambientais e climáticos já do presente e, cada vez mais, do futuro. Ou seja, não dá mais para conceber cosmos sem política, assim como política sem cosmos. Os modernos saberão a tempo se livrar da concepção de sociedade que diria respeito apenas ao mundo próprio e excepcional dos humanos?
Diante de fenômenos socioambientais aterrorizantes, como as mudanças climáticas de origem antrópica, é preciso orientar pensamentos e práticas segundo o que Latour e Stengers denominam “princípio de irredução”. Ou seja, não passarão de vãs, se não maliciosas, as tentativas de reduzir esses fenômenos, seja ao natural ou ao social. Será cada vez mais irrealista considerar o destino dos humanos à parte do destino dos não humanos. O esforço é o de rever a tradição de nossos tão assentados humanismo e naturalismo. A exigência é por encarar, enfim, que nós “jamais fomos humanos”, para agora mencionar a produção da filósofa californiana Donna Haraway, outra comparsa de Latour.
Tempo de fim dos tempos
Ora, aqui onde o emaranhado de humanos e não humanos invade a cena política modernista, deixa de fazer sentido a divisão da realidade entre seres apolíticos e seres políticos. Na prática, a tarefa que Latour, Stengers, Haraway e tantos outros pensadores contemporâneos indicam é tarefa dos políticos e dos cientistas, dos movimentos sociais e de quem mais se preocupe com o esgotamento — e sobretudo as consequências — da estruturação e composição modernista de mundo.
Ela já pode ser flagrada nas altas instâncias de comissões da Organização das Nações Unidas (onu), ou ainda nas pequenas ações de cidadãos comuns, como por exemplo na luta contra agrotóxicos, na preocupação com o lixo, com a emissão de gases do efeito estufa — tudo isso que conjuga micro e macroações e atravessa os mais distintos sujeitos, as mais distintas instâncias de pensamento e ação.
Em tempo de fim dos tempos, a natureza, no singular, acabou. Ela paulatinamente se mostra múltipla, respondente, imprevisível, arredia a causalidades estritas e até mesmo ameaçadora, já não se deixando tomar por objeto inerte ou inanimado. Assim sendo, outras deverão ser as relações entre a produção científica e a produção da vida pública. Não mais a Ciência surgindo como se quisesse calar o vozerio da política. Ou, como sopra Bruno Latour, que vivam as ciências tradutoras de naturezas múltiplas e produtoras de multiplicidades. Eis aí a condição para que outra política e outra sociedade abram passagem.
O já incontornável desafio que pende em nosso horizonte é por desenvolver uma outra atenção, a um só tempo ecológica e política, às associações entre humanos e não humanos. Como escapar das evidências de que os vínculos com não humanos se revelam por demais arriscados, instáveis, geradores de consequências indomáveis? Como controlar, por exemplo, a proliferação do plástico que se tornou feral, acuando-nos por todo lado, mas sem o qual a nossa vida moderna, tal como se desenvolve até aqui, desaba? Por meio de quais porta-vozes e quais procedimentos legítimos fazer com que o plástico fale? Como ouvir a atmosfera que tão perigosamente esquenta sem reduzi-la a forças puramente naturais ou puramente sociais, mecânicas ou intencionais?
Para bem encaminhar questões como essas, é preciso se fortalecer no que antes apareceria como frágil. Daí a importância de expor publicamente as controvérsias, sociais e técnicas, políticas e científicas, no seio da democracia. E tornar-se amigo das crescentes incertezas, ampliar novas práticas de consulta, duvidar e hesitar, inventando e exigindo mais representatividade dos porta-vozes de coisas e pessoas — das coisas que, a rigor, jamais foram inanimadas, e das pessoas que também jamais se sustentaram sem as coisas.
Será, então, uma cruzada (de governantes, cientistas, políticos, juristas, artistas, cidadãos etc.) não contra os impuros, mas contra as purificações do real que nos impedem de renovar o realismo científico e político em bases criativas e abertas às surpresas. Será despojar-se do ceticismo, da previsibilidade, da servidão ao pensamento moderno. Será, enfim, reanimar a própria razão, abrindo-a aos mil mundos possíveis. O amor ao possível, e não ao provável, exige recusar, para falar com Stengers, que já “sabemos tudo o que há para saber” — bordão de uma ciência triste e de uma política não menos melancólica.
Ao fim da natureza corresponde o fim da modernidade — isto é, o fim de um modo já esgotado (se não ineficaz e crescentemente ilegítimo) de relacionar conhecimento e poder. Políticas da natureza se traduz, pois, num admirável esforço de imaginar modos como a realidade moderna, constrangida por uma Gaia perturbada e se esvaindo em toda sorte de crises, poderia ser diferentemente triada, considerada, ordenada e instituída — para, finalmente, ser acompanhada por um Estado e uma sociedade já afetados por novas sensibilidades, compreensões, atribuições e responsabilidades. O futuro não espera.
Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira
Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.