Crítica Literária,
O humor ranzinza de Fran Lebowitz
Sem publicar desde os anos 90, escritora norte-americana tem seus ensaios críticos e afiados reunidos em coletânea
07dez2022 | Edição #64Caso esteja para baixo e queira soltar boas gargalhadas para espantar o baixo astral — provavelmente agravado pela flagrante deterioração do que, há algumas décadas, costumávamos chamar de a vida na cidade grande — recomendo tirar o resto do dia para assistir a alguns dos inúmeros vídeos de Fran Lebowitz disponíveis no YouTube ou, quem sabe, maratonar os documentários Public Speaking (hbo, 2010) e Pretend It’s a City (Netflix, 2021), ambos dirigidos por Martin Scorsese.
Foram esses documentários que me levaram à leitura de O almanaque de Fran Lebowitz, publicado neste ano no Brasil pela editora Todavia em boa tradução do jornalista, escritor e roteirista André Czarnobai. O Almanaque, cujo título em inglês é The Fran Lebowitz Reader — a fazer troça das populares antologias de célebres autores e filósofos —, foi originalmente publicado em 1994 e reúne ensaios dos únicos livros para adultos publicados pela autora, Metropolitan Life (1978) e Social Studies (1981). Duas divertidas coletâneas sobre as dores e as alegrias da vida urbana, notadamente na cidade de Nova York: o único lugar no mundo em que Lebowitz acredita ser capaz de viver.
Nascida em Nova Jersey em 1950, Frances Ann Lebowitz chegou a Nova York aos dezenove anos, depois de ter sido expulsa da escola, e durante algum tempo desempenhou diversas ocupações para conseguir se manter na cidade. Neste período ela foi, entre outras coisas, faxineira e motorista de táxi. Mas não admitiu ser garçonete — comenta que, na época, garotas tinham de lidar com uma pesada rotina de assédio por parte da administração de restaurantes e lanchonetes, e ela não queria passar por isso.
Finalmente, aos 21 anos, Lebowitz se tornou colunista da revista Interview, de Andy Warhol, com quem trabalhou durante toda a década de 70. Também nesta época, começou a colaborar com outras publicações, como a revista Mademoiselle — extinta no começo dos anos 2000 — que, além de matérias sobre moda, publicava textos de autores como Truman Capote, James Baldwin e Flannery O’Connor.
Comédia
Lebowitz foi muitas vezes comparada à escritora e crítica Dorothy Parker, tanto por gostar de festas e da companhia de gente interessante como pelo senso de humor ferino, capaz de transformar qualquer experiência ruim em material de comédia. Talvez possamos descrever Fran Lebowitz com as mesmas palavras que Michelle Dean — autora de Afiadas: as mulheres que fizeram da opinião uma arte (2018) — usou para descrever o que considerava ser o principal talento de Parker enquanto formadora de opinião: “Transformar emoções complexas em ditos espirituosos que insinuavam um amargor sem que isso aflorasse na sua superfície”.
Julga melhor quem tem experiência de coisas variadas e sabe conviver com algo ou alguém diferente de si, podendo assim fazer comparações com maior grau de segurança
Percebemos isso, por exemplo, quando Lebowitz comenta sobre a escrita e a literatura em um dos ensaios publicados no Almanaque. Famosamente acometida de um bloqueio desde a década de 90, sem jamais ter conseguido publicar algo de novo — com exceção do livro infantil Mr. Chas & Lisa Sue Meet the Pandas (1994) —, ela faz da própria experiência de bloqueio e fadiga profissional uma divertida narrativa denunciando o caráter terrivelmente provinciano dos círculos literários:
Mais Lidas
Embora os escritores tenham combinado que não haveria um líder, um dos seus membros acaba se tornando uma espécie de figura de autoridade. Sua influência é baseada, em grande parte, no fato de que traz consigo um exemplar de capa dura de ‘O arco-íris da gravidade’ que, a maioria acredita, ele leu inteiro. Na verdade, ele é um mediador disfarçado, enviado pela prefeitura para se infiltrar entre os escritores e acabar com a greve […] Quando eles percebem que foram enganados, e por quem, ficam à beira do suicídio, decepcionados com sua falha de percepção. Que esta seja, portanto, uma lição para todos vocês: nunca julgue uma capa pelo livro.
Escrever dá trabalho
Leitora ávida, Fran Lebowitz tem uma biblioteca com mais de 10 mil volumes; ela costuma dizer que existem livros ruins em excesso e que, hoje, a maioria dos escritores tenta publicar algo porque acha que tem o que dizer, quando não há nada de novo ou estimulante no que coloca no papel.
Em conversa com Toni Morrison — vencedora do prêmio Nobel de literatura em 1993 e uma de suas melhores amigas —, Lebowitz reclama que as pessoas tomaram ao pé da letra o conselho da escritora — que escrevessem o livro que gostariam de ler —, pois a não ser que fossem como Morrison, não seriam capazes de tanto.
Lebowitz diz mais: que escrever dá trabalho e talvez seja uma das poucas ocupações em que alguém realmente precisa saber o que está fazendo. Portanto, se for tão preguiçoso quanto ela acredita ser, o ideal é encontrar uma maneira de fazer dinheiro como escritor sem jamais precisar executar o seu ofício; como ela propõe em “Ter e não fazer”:
Ano passado eu ganhei quatro mil dólares pelas coisas que eu escrevi. Este ano já me ofereceram duas vezes valores na casa dos seis dígitos por coisas que eu não escrevi. Está claro que estou fazendo tudo errado nesse negócio. No fim das contas, não escrever não é apenas divertido, como pelo jeito também é muitíssimo lucrativo.
Se mesmo em posse dessa informação você ainda quiser se tornar um escritor de verdade, daqueles que sofrem por não estar escrevendo e que continuam sofrendo por ganhar pouco quando finalmente começam a escrever, talvez seja bom seguir um dos conselhos em “Dicas para adolescentes”:
Pense antes de falar. Leia antes de pensar. Isso lhe fará pensar em coisas que não foi você quem inventou — uma ideia inteligente em qualquer idade, porém mais ainda aos dezessete anos, que é quando você corre o maior risco de chegar a conclusões irritantes.
Este conselho é tão bom, mas tão bom mesmo, que foi até transformado em ímã de geladeira pela Biblioteca Pública de Nova York, e eu gostaria de aproveitar o espaço desta resenha para lançar o apelo para que ele também seja reproduzido em português, em panfletos e marcadores de livros a serem distribuídos Brasil afora, na tentativa de conscientizar a nossa população de que ninguém é obrigado a usar a internet para expressar uma opinião sobre algo que ainda não conhece ou nem sequer entende.
Um dos efeitos da boa leitura está em nos ajudar a entender o mundo, a pensar em coisas novas e a rever as nossas crenças e preconceitos
É neste sentido que, em “A legitimidade do domínio eminente versus o domínio legítimo do eminente”, Lebowitz propõe três questões para nos ajudar a lidar com as mazelas da vida moderna: “1. É bonito? 2. É divertido? 3. Conhece o seu lugar?”. São perguntas que à primeira vista podem parecer aleatórias, mas, se examinadas com a devida atenção, veremos que estão intimamente relacionadas ao pleno exercício da faculdade de julgar, ou seja, de nos esforçarmos e, de alguma forma, conseguirmos distinguir entre o excepcional e o ordinário, o certo e o errado, o bem e o mal, o conveniente e o inoportuno.
Julga melhor quem tem experiência de coisas variadas e sabe conviver com algo ou alguém diferente de si, podendo assim fazer comparações com maior grau de segurança. Essa é uma das principais lições que o humor ranzinza de Fran Lebowitz tem a nos ensinar sem que nos demos conta; principalmente quando nos deparamos com o que ela costuma dizer sobre a literatura: “Livros não são espelhos; são portas”. Como leitora exigente que é, Lebowitz reconhece que um dos efeitos da boa leitura está em nos ajudar a entender o mundo, a pensar em coisas novas e a rever as nossas crenças e os nossos preconceitos.
Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.
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