Ciências Sociais,

Os ensaios de Dilma

Seis anos depois de publicar reflexão fundamental sobre os governos petistas, André Singer se debruça sobre os anos Dilma

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Seis anos depois de sua publicação, Os sentidos do lulismo, de André Singer, continua sendo o melhor trabalho de interpretação sobre o “reformismo fraco” dos governos petistas. Ainda não foi escrito livro melhor sobre as relações da ideologia lulista com o conservadorismo popular, a releitura da tradição populista, e os dilemas da articulação política entre pobres organizados e desorganizados. 

Em seu novo livro, O lulismo em crise, Singer se debruça sobre o fim, algo trágico, da história contada em Os sentidos do lulismo: o mandato e meio de Dilma Rousseff. O livro é uma contribuição importante para a compreensão da crise atual e um início de discussão dos erros e acertos da primeira experiência da esquerda brasileira no poder. O próprio livro, aliás, por vezes é reflexo desses erros e acertos.

Na história contada por André Singer, o mandato Dilma se caracterizou por dois grandes esforços, dois “ensaios”. Nenhum dos dois foi radical, os dois foram abandonados.

Na economia, Dilma tentou um “ensaio desenvolvimentista” marcado pela redução dos juros, pelo aumento da participação estatal na economia e por uma série de estímulos à reindustrialização. É, enfim, o que Guido Mantega chamou de “Nova Matriz Econômica”.

O tema da industrialização já era fundamental em Os sentidos do lulismo: no imaginário petista, a saída para integrar os pobres desorganizados é torna-los operários (ou coisa parecida) com poder de mercado suficiente para sindicalizar-se. Parte da obsessão dos petistas com a indústria, que ficaria clara durante a Nova Matriz Econômica, se explica por isso: é muito difícil organizar os pobres das sociedades pré-industriais e pós-industriais, e isso é um problema para as esquerdas do mundo todo.

Faxina versus coalizão

Na política, Dilma começou um “ensaio republicano”, o desmonte gradual de esquemas de corrupção em empresas estatais, sobretudo com as tentativas de diminuir a influência do notoriamente corrupto PMDB. Além da “faxina” no Ministério dos Transportes no começo do mandato, Dilma afastou os dirigentes da Petrobras indicados por Lula que, anos mais tarde, seriam pegos pela Lava Jato. Rousseff também assinou a lei da delação premiada, fundamental para a montagem da operação Lava Jato, e deixou as investigações correrem livres (o que, de fato, foi inédito).

A opção por descrever esses dois movimentos como “ensaios” não é gratuita. Como boa parte dos economistas de esquerda, Singer gostaria que a Nova Matriz Econômica tivesse muito menos isenções fiscais e muito mais investimentos públicos, e lamenta profundamente que a política de redução de juros não tenha durado mais tempo. Ao mesmo tempo, reconhece que houve corrupção no governo Dilma e que a necessidade de montar a coalizão governamental causou inúmeros recuos na “faxina”.

Feita essa ressalva, entretanto, o diagnóstico de Singer parece correto. Se julgada por critérios comparativos — por oposição ao governos anteriores, inclusive os de Lula — Dilma foi mesmo mais intervencionista que os outros, e tinha mesmo menos disposição para a política fisiológica tradicional do que os outros. 

Na política, Dilma começou um ‘ensaio republicano’, o desmonte gradual de esquemas de corrupção

E Singer também tem razão em dizer que a história da queda de Dilma Rousseff se explica, em boa parte, pelo entrecruzamento entre os dois ensaios, o desenvolvimentista e o republicano. Se Dilma tivesse mantido a política econômica ortodoxa de Lula ou sua postura diante das alianças, é bem possível que não tivesse caído. Lula foi um gestor responsável da economia e provavelmente teria negociado uma trégua com Eduardo Cunha, fosse lá com base na mutreta que fosse.

É no tratamento analítico dos dois ensaios que ficam claros os pontos fortes e os pontos fracos de Singer. Seu entusiasmo pelo ensaio desenvolvimentista é inteiramente injustificado. Mas seu tratamento do ensaio republicano é um salto de qualidade com relação a análises que têm influenciado a esquerda brasileira no pós-impeachment.

Singer descreve bem como as ideias por trás da Nova Matriz Econômica foram geradas a partir de problemas políticos (a organização política dos economicamente excluídos) e econômicos (a desindustrialização) concretos. Mas sua discussão das políticas públicas que compuseram o “ensaio desenvolvimentista” tem uma falha muito grave: a pouca atenção aos resultados. O experimento falhou.

Há um debate de alto nível sobre o quanto da crise econômica brasileira foi causada pela política econômica de Dilma. Para quem se interessar, vale conferir o diálogo entre Bráulio Borges e Samuel Pessôa no blog do Ibre, da FGV do Rio. Mas, mesmo se você der todos os descontos, o cenário internacional, a Lava Jato, tudo o que você quiser, dois fatos permanecem: Dilma implementou um programa caríssimo que visava acelerar o crescimento, o crescimento caiu, o custo terá que ser pago. Se isso não for um fracasso, nada é um fracasso.

Por isso, quando Singer acusa Dilma de ter começado a se comportar de maneira errática após as passeatas de 2013, deveria reconhecer que muito dessa desorientação se deve ao fracasso da Nova Matriz Econômica. Em 2012, ano em que o ensaio desenvolvimentista foi mais ousado, o crescimento do PIB foi horroroso, apenas 1,5%. O Banco Central subiu os juros em 2013, mas foi porque a inflação subiu mesmo, o mandato do Banco Central exigia que os juros subissem. 

Singer descreve a política errática pós-2013 como uma derrota política dos desenvolvimentistas diante dos rentistas, mas ela foi, sobretudo, o fracasso de um programa. Se, daí em diante, Dilma não soube direito o que fazer, é porque as ideias que a esquerda lhe ofereceu em sua formação de economista não foram guias bons o suficiente. Ao sugerir que o ensaio desenvolvimentista foi só derrotado politicamente, Singer absolve injustificadamente a pouca atenção que o pensamento progressista brasileiro dá à economia.

Por outro lado, sua análise do ensaio republicano deve lhe garantir críticas de petistas mais ligados à máquina partidária. A ênfase varia conforme o trecho, mas Singer admite que a Lava Jato tem uma dimensão republicana e fez revelações estarrecedoras, inclusive sobre a corrupção do PT, de quem Singer cobra explicações. Lamenta, entretanto, o fenômeno da judicialização da política e os momentos em que a Lava Jato claramente atuou a favor do impeachment (como na condução coercitiva de Lula). 

Da mesma forma, reconhece que as manifestações de 2013 tinham o potencial tanto para gerar conservadorismo quanto para expandir a discussão democrática. Explica 2013 pelo mecanismo tocquevilleano, em que revoltas não acontecem quando as coisas vão mal, mas sim quando as coisas vinham melhorando e param de melhorar. É a explicação que melhor se adequa à cronologia de 2013, mas se adequaria melhor se o autor admitisse o fracasso da Nova Matriz em 2012.

Se Singer continua defendendo o ensaio desenvolvimentista, ao fim do livro sugere, com alguma vacilação, que Dilma deveria ter aceito mais da velha fisiologia para não cair, em especial no que se refere à aliança com o PMDB. Compra a versão, disseminada no PT, de que Dilma parou de seguir os conselhos de Lula — que teria buscado acomodação com Cunha e os pemedebistas — e sua inabilidade no trato parlamentar causou sua queda.

Não acho que essa versão se sustente. Singer provavelmente tem razão quando diz que Dilma esperava que a Lava Jato a livrasse de Cunha (e, acrescento eu, de aliados petistas desconfortáveis). Mas se Dilma tivesse fechado com Cunha, teria amarrado o governo no coração da crise da Lava Jato. Imaginem o que teria sido a crise de Joesley se o governo ainda fosse petista, se a máquina de contestação de 2015 ainda estivesse ligada em 2016. Aí, sim, veríamos as ruas pegando fogo. Jucá tinha razão: se o objetivo era fazer um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo, a solução era mesmo “colocar o Michel”. Há petistas que acham que teriam a mesma capacidade dos pemedebistas para fazer picaretagens impunemente, mas trata-se de uma ilusão tão infantil que chega a ser enternecedora. 

As manifestações de 2013 tinham o potencial tanto para gerar conservadorismo quanto para expandir a discussão democrática

Seria interessante ver mais diálogo entre Os sentidos do lulismo e O lulismo em crise. No livro anterior, os pobres desorganizados temiam experimentos muito ousados porque tinham menos meios de lidar com turbulências: não podiam contar com sindicatos para lutar por reposição salarial em caso de inflação, por exemplo. Como esses setores teriam encarado o ensaio desenvolvimentista, com toda a turbulência que trouxe? Como o reposicionamento do PT diante do populismo teria sobrevivido nos governos Dilma, uma presidente que, por um lado, não tinha história de líder social ou carismática, mas, por outro, foi brizolista? Seria interessante se esse diálogo entre os dois livros fosse proposto por Singer em algum momento.

E, além da discussão sobre a crise do lulismo, o livro também apresenta uma digressão histórica que talvez seja a parte preferida de alguns leitores. A ideia de que nos dois períodos democráticos brasileiros houve um partido dos pobres (PTB, PT), um partido da classe média (UDN, PSDB) e um partido do interior (PSD, PMDB), é uma tentativa muito interessante de descrever como o corte eleitoral de classe típico dos países ricos pode ser refletido em países periféricos.

Finalmente, vale notar que o ponto de vista de Singer se parece muito com o que se ouve de aliados do ex-governador Tarso Genro: um compromisso ético bem maior do que o dos dirigentes da legenda, mas um descompromisso injustificável com o equilíbrio macroeconômico. É um progresso diante do tom alucinado dos documentos atuais do PT, mas não é progresso suficiente.

Descontados os problemas, O lulismo em crise é um bom livro, que se lê com prazer, e tem momentos realmente ótimos de análise política. Tem menos potencial de se tornar canônico do que Os sentidos do lulismo, mas mesmo seus erros valem o registro, porque são a formulação mais inteligente disponível da discussão que levou Dilma a cometê-los.

Quem escreveu esse texto

Celso Rocha de Barros

Sociólogo, é analista do Banco Central, colunista da Folha de S.Paulo e autor de PT, uma história (Companhia das Letras, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.