O jornalista e escritor Tiago Rogero (Lipe Borges/Divulgação)

Ciências Sociais,

As vozes do Brasil

Podcast transformado em livro-reportagem, o projeto Querino de Tiago Rogero traz para o salão principal o país afrocentrado

22out2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88

O projeto Querino não traz furo de reportagem e, sob o ponto de vista da historiografia, não revela nenhum documento inédito. Tiago Rogero afirma isso em entrevistas que concedeu sobre o premiado projeto que idealizou. Ele se referia aos formatos originais do projeto Querino: o podcast produzido pela Rádio Novelo em 2022, vencedor do prêmio Vladimir Herzog em 2023, e as matérias publicadas na revista piaui

A novidade não estava em narrar a historiografia “oficial” do Brasil baseada em documentos históricos que sempre estiveram ali. O que muda o sentido e a percepção de algo é a perspectiva escolhida. No caso do projeto Querino, e do Brasil, essa mudança coloca no centro da narrativa a contribuição econômica, histórica e cultural dos negros, africanos e afrodescendentes na construção do país — e assim faz jus à sensação de novidade da pesquisa que conta “como a história explica o Brasil de hoje”. 

Outra novidade do projeto — inspirado no 1619 Project, da jornalista estadunidense Nikole Hannah-Jones — é que ainda culminou no inédito livro-reportagem projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil, publicado pela editora Fósforo com o apoio do Instituto Ibirapitanga.

Na lógica da subversão, numa dinâmica inversa à conversão de livros em filmes ou em audiobooks, o podcast de grande sucesso é convertido para a escrita numa linguagem acessível e atrativa para um público possivelmente mais jovem, curioso por história, mas avesso a densidade de documentos históricos. 

Além da robustez narrativa, que continua cativante, o livro é uma referência pela checagem de fatos, utilização de múltiplas fontes, registros e dados, e na aplicação de técnicas do jornalismo literário, como a conexão de referências e a inserção precisa da primeira pessoa.

A publicação apresenta novos trechos de entrevistas e imagens que levam ao leitor os personagens participantes da narrativa, como Manuel Raimundo Querino (1851-1923), intelectual negro pioneiro em “reivindicar a contribuição positiva do africano e seus descendentes à civilização brasileira”. É sua trajetória que inspira Rogero a devolver o lugar que é de direito ao afro-brasileiro na formação social: o de protagonista.

A narrativa redobra a atenção para o fato de que havia outras possibilidades de Brasil

Um aspecto comum nas histórias dessas grandes figuras quase sempre apagadas do nosso imaginário, como Querino ou o guerreiro quilombola Cosme Bento das Chagas, é a consciência de uma identidade negra que faz com que se revoltem, à sua maneira, contra uma situação abusiva e que os condena à subjugação. Um caminho das pedras.

Trechos como “Diferentemente do que está cristalizado no imaginário das pessoas, o trabalho no Brasil não começou quando foi assinada a Lei Áurea” ou “Bonifácio equivocadamente é lido como quem propôs a libertação das pessoas escravizadas, mas não foi isso que ele propôs” dão o tom da discussão que o livro alcança, intercalando a contestação de mitos que pairam sobre momentos importantes da historiografia, como a Independência — melhor seria as Independências do Brasil — possível graças às revoltas africanas que se dedicaram a expulsar a teimosia de Portugal na porrada, com destaque para as da Bahia. 

Minuciosamente, a narrativa redobra a atenção para o fato de que havia outras possibilidades de Brasil se não fossem as escolhas, as apostas e a participação direta da camada social mais influente e podre de rica em cima do contrabando de seres humanos.

Não dá pra dizer que a nação é consciente do “escândalo de corrupção” que se sucedeu depois de uma tal Lei Feijó (1831), que proibia a entrada de africanos traficados no Brasil — reparem, não tem nem duzentos anos. E que foi nesse período que o tráfico de gente, tornado ilegal por essa legislação, cresceu incomparavelmente e lucrou como nunca antes. É tipo a sensação de ser traído, o último a saber. A parte em que ela foi cumprida por uns cinco anos (“para inglês ver”) e depois rolou um esquema macro-criminoso entre as elites para ignorá-la é colocada em xeque pelo projeto Querino, que questiona a legitimidade de uma nação vendida como de bem e de convivência harmônica entre as raças, mas que, no âmago, se estabelece com sangue inocente e roubo.

Trabalho coletivo

O livro é um trabalho jornalístico coletivo, resultado de mais de dois anos de pesquisa feita por uma equipe de cerca de quarenta profissionais majoritariamente negros. O autor, Rogero, mineiro que estreia no mundo dos livros, é um dos diretores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e correspondente do jornal The Guardian na América do Sul. Rogero é hoje um nome de referência, pela vasta produção jornalística de qualidade e pelo sucesso dos podcasts que idealizou. Além do Projeto Querino, ele criou o Vidas Negras e o Negra Voz, que recebeu o 42º Prêmio Vladimir Herzog na categoria Produção Jornalística em Áudio por seu episódio sobre as bailarinas negras Mercedes Baptista, Consuelo Rios, Bethania Gomes e Ingrid Silva.

Rogero já declarou nunca ter recebido queixas sobre erros no Querino, que contou com a primorosa consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos, autora do texto de orelha do livro. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, ela contou ter oferecido auxílio na criação do parâmetro que o Projeto Querino estabelece para uma “releitura afrocentrada da história do Brasil”. Para Santos, fazer esse caminho também significou olhar “a partir das ações e reações das populações negras a esse racismo que nos estrutura”.

“Uma coisa é a gente escutar, outra coisa é a gente ler”, diz Santos, destacando uma nova tessitura no texto organizado por Rogero e nas conexões entre os capítulos. O mais interessante é a característica da escrita que metodologicamente é “muito embebida na oralitura”. “Tem muito a ver com a história oral e a importância que ela tem para as populações negras e para a própria construção da história do Brasil. Não de uma história oficial, mas que está, ali, em uma contramão da história oficial.”

Retomando o aspecto da novidade, quando falamos de uma produção jornalística, o país contado sob um olhar afrocentrado pode, e deve, ser considerado um ineditismo. Segundo informações do Instituto Reuters de 2024, o Brasil não tem pessoas não brancas chefiando as redações dos principais veículos de comunicação. O fato de a maioria da população brasileira ser negra torna esse dado um absurdo por si só. Ainda assim, vale acrescentar que cargos como esses, de poder institucional, podem ser responsáveis por criar e recriar narrativas que refletitam a realidade, ou melhor, projetem a realidade que se quer para um país.

Como escreve o professor Muniz Sodré, referenciado no livro e autor de O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional (Vozes, 2024):

Mesmo após o fim da instituição escravidão no país, no jogo, a maneira de se conviver socialmente privilegia as relações hierárquicas estabelecidas naquele período. 

É o patrimonialismo de berço que ainda justifica as opressões e a “cidadania de segunda classe” do negro, como na história de Delfino e Anderson, presos em séculos diferentes, sem a presunção de inocência que lhes conferia o direito, apenas pela condenação causada pela desumanização ininterrupta de corpos como os deles. O crime de ser negro no Brasil.

Negro é raiz

O “nós por nós” tem sido a maior estratégia para legitimar as produções culturais resultantes da inegável mão e presença negra em tudo que se entende como nação — desde o que se come, ao que se escuta e que se fala. A máxima do mestre Sebastião Januário, de que “existe uma história do negro sem o Brasil. O que não existe é uma história do Brasil sem o negro”, que abre os caminhos do livro, reflete o objetivo do autor de criar linhas que ligam histórias de centenas de anos atrás, como a de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), e as contemporâneas, como a de Jorge Ben, destacando a importância dessa “cultura de resistência” de um país que fala o pretuguês. Rogero escreve:

Dá para enxergar uma linha nisso tudo, a partir do passado. Claro que não é uma linha evolutiva, nada disso […] É só uma ideia de continuidade: de que uma coisa acaba surgindo por influência da outra.

Não foi na educação básica, nem média, que conheci Lima Barreto ou Cruz e Sousa como negros, ou que a heroína Maria Felipa existiu e lutou bravamente pela Independência. Tampouco me disseram que foi Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra, filha e neta de ex-escravizadas, que escreveu o primeiro romance de autoria feminina do Brasil.

Ainda sobre as referências, há pouquíssimo tempo não se viam mulheres negras de tranças na televisão como ousou fazer Maju Coutinho na TV Cultura — vale ouvir seu depoimento no quarto episódio do podcast Vidas Negras. É por isso que a demarcação dessa identidade racial, desde que parta de nós, não encaixota projetos como esse, como se costuma ouvir por aí, mas exprime resistência a um apagamento real em curso.

A conquista da Lei 10.639/03, muito mencionada pelo jornalista, que torna obrigatório nas bases da educação nacional incluir no currículo oficial da rede de ensino a temática da História e Cultura Afro-Brasileira é o que ampara muitos projetos e publicações dedicados à memória e educação afro-referenciada.

A demarcação da identidade racial, desde que parta de nós, não encaixota projetos como esse

O Projeto Querino também considera a importância da Lei de Cotas, aprovada inicialmente como lei estadual no Rio de Janeiro em 2000 e apenas em 2012, graças ao movimento negro no debate público, sancionada como Lei Federal. É a reserva de vagas destinadas a pessoas negras, indígenas e pobres nas universidades, que como resultado aumentou a presença e o acesso dessas pessoas à produção de pesquisas que disputam o campo das narrativas e do imaginário, fecundando novos horizontes para maneiras de se construir “o saber”. Isso explica a irritação de alguns.

Da maior importância, o projeto lançado no Bicentenário da Independência, em 2022, e que ressoa agora como publicação impressa, se torna simbolicamente um espelho para a utilização da memória como ferramenta de combate — para que, por exemplo, a história do avanço da extrema direita no país e dos últimos 7 de Setembro seja lembrada. Porque é preciso tornar inviável que, daqui a cinquenta ou cem anos, alguém abra um livro didático de história e se depare com o título “A guerra pela democracia” ilustrado com fotos do atentado do 8 de janeiro de 2023 ou das manifestações fascistas na Avenida Paulista nos recentes feriados da Independência.

Quem escreveu esse texto

Maria Eduarda Nascimento

Matéria publicada na edição impressa #88 em dezembro de 2024.

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