Ciências Sociais,
Adeus ao futuro
Reunião de ensaios faz crítica intransigente ao capitalismo e à sua atuação na história do país
14jun2019 | Edição #16 out.2018Como assim, biografia não autorizada? Se por “autorizada” entendermos que o autor tem plena autoridade para falar de seu assunto, então dificilmente encontraremos livro mais autorizado. A verve, a inteligência, a capacidade para colocar sua erudição sociológica e em áreas afins a serviço da intervenção mais pungente nos debates que mobilizam (ou deviam mobilizar) a sociedade em cada momento, a fina intuição para captar no ato aquele momento; todos esses traços, enfim, que caracterizam Francisco de Oliveira estão presentes em alto grau neste livro enganadoramente curto.
Para os organizadores do conjunto de textos que formam Brasil: uma biografia não autorizada, Fabio Mascaro Querido e Ruy Braga, ele é “figura singular no cenário intelectual brasileiro nas últimas décadas”. Essa apreciação, em texto de apresentação do livro que se revela notável pela reunião de informações importantes sobre a trajetória do autor com esclarecimentos de seu pensamento e sugestões para sua análise, resiste com folga ao confronto com os textos selecionados.
Renascimento do velho
Entre eles encontramos, no artigo que dá título ao livro, uma apresentação crítica da história brasileira, não só no presente, mas desde a “descoberta”, quando já introduz um dos seus temas fortes. Faz isso ao mostrar como então, mediante o impulso europeu à acumulação de capital, gerou-se pela primeira vez algo que aqui se reproduziria tantas vezes sob diferentes formas, numa espécie de neurose histórica que congela o presente, quando “o novo provocou o renascimento do velho”.
Ao desenvolver essa ideia ele não poupa julgamentos cortantes sobre os grandes momentos da história pátria. Todas as ilusões piedosas tombam por terra. A independência, a abolição do regime escravista, a república (que em certo momento foi “velha”, em outro, “nova”), pouco resta senão a grande aposta na produção do realmente novo, oculta por vezes sob um tom que mais anuncia um necrológio do que uma biografia. Vale a pena acompanhar o crescente envolvimento do autor em seu tema à medida que o período coberto se aproxima do contemporâneo — vale dizer, daquele intensamente vivido por ele.
A exuberância do estilo traz o risco de que ideias especialmente interessantes despertem atenção e depois sejam abandonadas sem deixar rastro
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Isso não o impede de produzir uma das muitas ideias provocantes que dão as chaves de seu modo peculiar de enfrentar o mundo (ou o “semblante severo da época”, como diria Max Weber). Ouçamos: “No que consiste, pois, o adeus do futuro ao país do futuro? Sua presentificação permanente: não há mais futuro, porque ele já está aí. Há uma coetaneidade, uma contemporaneidade entre todas as ‘idades geológicas’ do capitalismo”.
Nesse ponto vem à tona a preocupação mais funda de Francisco de Oliveira. É o capitalismo, em suas variadas “idades” e formas, que absorve sua atenção. Sem ter isso em mente na leitura do livro (ou de qualquer texto do sociólogo, pelo menos desde a “Crítica à razão dualista”) pode-se mesmo ficar na impressão de estar diante de um empedernido e talvez ranheta pessimista, que vê defeito em tudo.
Já houve quem, é verdade que em tom levemente brincalhão, comparasse-o a uma espécie de Adorno tropical. Os organizadores retomam esse tema, em chave mais séria, para advertir que pessimismo há, sim, mas do mesmo tipo daquele do alemão, grande mestre da Teoria Crítica da sociedade, que em texto sobre “o conflito social hoje” encontrava o sentido da análise crítica na “vontade de mudar”.
Em Francisco de Oliveira, essa rejeição de um presente travado se dá em registro crítico, no que tem de mais fundo. É o marxismo na sua crítica mais intransigente do capitalismo, mediante a análise das formas que ele assume em condições particulares de tempo e lugar, que anima sua obra. Uma obra que recusa a “presentificação” e faz questão de olhar de frente as tendências futuras.
A exuberância do estilo de Francisco de Oliveira traz consigo o risco de que alguma ideia especialmente interessante desperte atenção momentânea (por ser vista como aplicável à questão conjuntural) e depois seja abandonada quase sem deixar rastro, à espera da próxima. É o caso da provocativa proposta de que a legitimação das formas de dominação política nos governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) envolve uma nova modalidade de busca de adesão dos dominados (ou “subalternos”, como diria Gramsci, em quem ele encontrou inspiração nesse ponto) à organização de poder vigente.
Trata-se de nada menos que de uma inversão do sentido originalmente atribuído a esse processo de exercício do poder político, de uma “hegemonia às avessas”.
Supõe-se que a hegemonia, a “direção moral” da sociedade, seja exercida pelos dominantes mediante a obtenção de consenso favorável a eles. Pois bem, a ideia é que em circunstâncias históricas específicas, como as do Brasil após 2002, os dominantes, em vez de reservarem para si o exercício da hegemonia, de certo modo a delegam aos dominados. É como se os dominados estivessem no comando, quando na realidade estão contribuindo na construção de um novo tipo de dominação política. É que eles estão como que “terceirizando” a tarefa de construir a adesão à ordem dada, sem a contestar, pois na realidade estão assumindo mais esse trabalho a favor dos dominantes.
Soldar a sociedade
É, na realidade, um caso extremo de dominação de classe bem-sucedida. Como se não bastasse o trabalho produtivo e nos serviços, os dominados, que não chegam a se constituir inteiramente como classe (esse é o ponto) ainda por cima se encarregam da tarefa de soldar a sociedade. Ilusão, porém, pois essa hegemonia na realidade lhes foi delegada por quem não abre mão da direção efetiva da sociedade. Não é iniciativa sua em seu favor, por mais que pareça (outro ponto).
Essa ideia cresce no bojo das duras críticas às insuficiências e mesmo traições de classe que aponta no PT, até desembocarem na cortante conclusão de que “o PT é a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda”. Essa vigorosa crítica de esquerda à esquerda institucional, por vezes em tom deliberadamente exacerbado, não impede o autor de produzir análises de largo alcance. Exemplo é aquela que constitui um dos capítulos mais fortes do livro, motivado pela análise de momento da organização do trabalho no Brasil por explícita perspectiva de classe, “Quem canta de novo l’Internationale?”.
Não é a grande obra de Francisco de Oliveira, nem pretende ser. Tampouco é inteiramente nova. Apesar disso, pelo conjunto que compõe e pela reiterada capacidade de sacudir os consensos fáceis e propor questões inesperadas, é o tipo de livro que se deve ler aqui e agora.
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.