Capa, Educação,

O antagonista

Em vez de se resignar, Darcy Ribeiro combateu como poucos a perversa realidade educacional brasileira, pensada por e para as elites

01ago2019 | Edição #25 ago.2019

Darcy Ribeiro, mineiro de Montes Claros, nasceu em 1922 e faleceu em Brasília, em 1997. Era um homem inquieto e indignado com as condições sociais do Brasil. Levou essa indignação para todos os papéis que exerceu ao longo da vida: escritor, antropólogo, político, etnólogo e educador. Produziu uma grande quantidade de trabalhos científicos, textos políticos e literatura que acabou por levá-lo a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras em 1992.

Darcy era uma pessoa que tinha lado: “Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nestas batalhas”, afirmou, no primeiro parágrafo do texto “Fala aos moços”, de 1994, que abre o livro Educação como prioridade.

Organizada por Lúcia Velloso Maurício, sua ex-aluna e colaboradora, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a obra é constituída por uma seleção de textos que cobrem vários momentos da vida de Darcy como educador. Se há algo comum a eles, é o fato de serem textos de combate. Não que não expressem um pensamento lógico no campo da educação, mas sua produção se realizava no exercício de uma vida que não se fechava na academia ou nos escritórios dos diversos espaços por onde passou, mas sim nos palanques, nos embates, no exercício de cargos públicos. Sua fala era a expressão de um político compromissado com a justiça social e a construção de uma nação. 

Seus primeiros anos de trabalho foram dedicados ao campo da antropologia, ao estudo de nações indígenas e à atuação no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), no Museu do Índio e na implantação do Parque Indígena do Xingu. No final dos anos 1950, começou a atuar mais intensamente no campo da educação: coordenou a Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais (DEPS) do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) a partir de 1957, apoiou a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958), chegou à posição de ministro da Educação no curto governo do presidente Jânio da Silva Quadros (1961), quando elaborou o primeiro Plano Nacional da Educação (PNE) em decorrência da Lei de Diretrizes e Bases aprovada naquele mesmo ano, e instituiu o primeiro Conselho Federal de Educação. Depois, seria nomeado chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, sucessor de Jânio.

‘Somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas horrível seria ter ficado ao lado dos que venceram’

 Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados e ficou exilado até 1976, quando retornou ao Brasil. Foi nesse momento da redemocratização da sociedade brasileira que Darcy se envolveu com mais intensidade no campo da educação, sendo responsável, como vice-governador de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-87), pela  implantação do Programa Especial de Educação (PEE) e dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Posteriormente, como senador pelo mesmo estado, eleito em 1991, dedicou-se a aprovar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996.

Dura realidade

Os textos selecionados para a coletânea, não todos de autoria do educador (há artigos institucionais dos projetos em que ele se envolveu, e outro da própria organizadora do livro), foram organizados em seis seções. A primeira, de caráter mais geral, traz diagnósticos sobre a realidade educacional e sobre o seu sentido para um país como o Brasil. Darcy apontou a dura realidade do sistema educacional, seus fracassos e as formas de reproduzir desigualdades que privilegiam os mais ricos e as elites em detrimento dos pobres. As causas desse fracasso ele encontra na “atitude das classes dominantes brasileiras para com o seu povo”, ao implementar uma escola que privilegia alguns poucos e trata como “anormal” o rendimento da maioria da população pobre, que, por não ter as condições sociais para estudar, não consegue permanecer no sistema escolar ou é excluída dele. 

“Uma degradação tão grande e tão perversa do sistema educacional só se explica por uma deformação da própria sociedade. Nosso desigualitarismo cruel, que conduz ao descaso pelas necessidades do povo, leva à incúria também no campo da educação, permitindo que viceje esse monstro que é uma escola pública antipopular”, afirmou Darcy. É no escravismo que ele enxerga as sequelas da sociedade brasileira. Último país das Américas a acabar com a escravidão, o Brasil tem no caráter castigador dos senhores de escravos o motivo para eternizar o cativeiro e a desigualdade, não permitindo às classes populares o acesso a uma escola pública de qualidade que seja fator de promoção humana. 

A segunda e a terceira seção apresentam documentos oficiais: os fundamentos e procedimentos de implantação do PEE, que Darcy coordenou em conjunto com a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro e a Uerj. Neles, destaca-se a natureza ampla e integrada das ações, assim como o caráter participativo do processo que, ao envolver e mobilizar o professorado nas discussões e formulações de sugestões, produziu como resultante as Teses de Mendes (1983), distribuídas aos professores como programa de governo. 

Destaca-se na gestão educacional do pee a implantação dos inovadores Cieps, com arquitetura própria, desenhada por Oscar Niemeyer, e construídos prioritariamente em locais com baixos recursos econômicos. Propunham ser escolas de tempo integral, atendendo aos alunos com disciplinas regulares, recreação, esporte, serviços médicos e odontológicos, refeições e banho. À noite, voltavam-se a um trabalho de recuperação de escolaridade para jovens de quinze a vinte anos.

Posteriormente, quando Fernando Collor de Mello assumiu a presidência da República (1990-92), foram implantados os Centros Integrados de Apoio à Criança (Ciacs), nos moldes dos Cieps. Apesar de ambos concretizarem o que Darcy propagava — dar aos mais pobres a melhor escola, pois só assim teriam condições de ultrapassar as barreiras de classe ­—, foram criticados por alguns por sua rigidez arquitetônica, por seus custos e por não ter um projeto pedagógico próprio.

A quarta seção do livro é dedicada à Universidade de Brasília, e o último texto, de 1995, é a transcrição do discurso realizado ao receber o título de doutor honoris causa pela universidade, quando também foi comunicado que o campus teria o seu nome. Foi uma fala emocionada, já afetada pelas frágeis condições de saúde que o levariam à morte dois anos depois, em que mostrou novamente seu espírito de combate ao criticar o que chamou de democratismo do ensino superior: “Deixe-me dizer que tenho horror ao democratismo que anda solto pelo ar, quebrando o caráter da universidade como instituição necessariamente hierárquica e hierarquizadora. […] Combatendo a cátedra todo-poderosa de então, querendo instituir uma departamentalização vigorosa, igualei bisonhos aprendizes a sábios maduros, cegando os jovens na insciência e incapacitando-os a aprender”.

Darcy defendia e valorizava a universidade pública, formulando propostas para seu desenvolvimento e sua qualificação, ao mesmo tempo que se mostrava feroz crítico do ensino superior privado, com escolas “voltadas ao lucro, na maior parte delas noturnas e com baixíssima qualidade de ensino”.

Situação de caos

A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, discutida na quinta seção, teve em Darcy um importante e polêmico ator. Responsável pelo substitutivo apresentado no Senado, seu projeto confrontou o da Câmara Federal, construído com ampla participação da sociedade, e que ele considerou reiterativo de uma situação de caos que atingia a educação e que acabava reproduzindo a situação de classe da sociedade brasileira: “O certo é que a maioria das nossas crianças sofre a escola como uma experiência frustrante em que é punida, porque não fala a sua língua materna; é discriminada, porque anda descalça e se veste pobremente; é humilhada, porque não pode comprar o material didático exigido pela professora; e, por fim, é sucessivamente reprovada, sem mesmo saber o que é isso”.

O Brasil tem no caráter castigador dos senhores de escravos o motivo para eternizar a desigualdade

Na última seção, o livro recolhe textos que exaltam intelectuais brasileiros que Darcy admirava. Anísio Teixeira, educador com quem trabalhou, era reconhecido por ele como um dos mais importantes intelectuais na defesa da escola pública. Além de muitas menções a ele no livro, dois textos de Darcy qualificam o trabalho de Anísio e contam fatos de sua relação com ele. O marechal Rondon e Gilberto Freyre também são mencionados, e a obra é encerrada com textos que expressam relações com seus alunos. 

O livro ajuda a compreender o personagem inquieto que foi Darcy Ribeiro e o seu tempo. Como poucos na história, e cada vez menos na atualidade, Darcy não deixou de denunciar as injustiças do país e de atuar para superá-las, mesmo reconhecendo sua impotência diante delas. Em “Fala aos moços”, citado no início deste texto, assim recomendou às novas gerações: ”Não respeitem os seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro!”. Assim era Darcy Ribeiro.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Haddad

Fundador da Ação Educativa, escreveu O educador: um perfil de Paulo Freire (Todavia).
 

Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.