Biografia,
Sobre artistas e soldados desconhecidos
Com coragem e amor, biografia restitui dignidade a figura urbana marginalizada das ruas de São Paulo
01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20Quando eu era criança, visitei o Túmulo do Soldado Desconhecido, em Washington. Fiquei entristecido, pois nem aquele mausoléu esplêndido podia compensar a ausência de algo mais simples, mais essencial: um nome. Lembrei-me disso quando abri Ricardo e Vânia, que começa com um túmulo sem nome. Nele, aprendemos, jaz Ricardo Correa da Silva.
E se alguma vez existiu um soldado desconhecido gay, terá sido alguém como Ricardo: o rapaz bonito e sensível de uma cidadezinha conservadora — e, até recentemente, para rapazes bonitos e sensíveis, todas as cidadezinhas eram conservadoras — que, intimidado e hostilizado, parte para uma cidade maior. Esse gay trabalharia num salão de cabeleireiro durante o dia e curtiria inferninhos à noite. Iria para a cama com os sujeitos errados, tomaria as drogas erradas, e quando a sua beleza — o seu único capital — começasse a murchar, ele se aferraria a ela pelos meios errados.
Talvez não de modo tão extremo quanto Ricardo — que, ao longo dos anos, injetou um litro e meio de silicone medicinal no próprio rosto. De início, a substância deu a sua pele um fulgor juvenil. Depois, lentamente, endureceu como um cimento que distendeu suas bochechas, esticando o rosto até torná-lo uma máscara balofa, que lembrava uma figura cartunesca, o Fofão. Sua aparência foi se tornando cada vez mais bizarra. Começou a sofrer de uma doença mental, perdeu o emprego e o apartamento e se fixou na rua Augusta, em São Paulo, entregando panfletos. Acabou se transformando numa lenda urbana, conhecido como “Fofão da Augusta”.
O jornalista Chico Felitti passou muito tempo intrigado por essa figura. Um dia, ao lhe dirigir a palavra, surpreendeu-se ao ouvir em resposta uma voz polida e instruída. “Sou muito humilde. Muito modesto. Não gosto de me expor”, disse ele. Felitti escreveu sobre o encontro no Facebook. Uns três anos mais tarde, ficou sabendo que o homem estava no Hospital das Clínicas. Felitti e sua mãe, uma ex-administradora hospitalar, foram à sua procura. Quando o encontraram, souberam que ele ficara internado por 23 dias — sem nome.
Felitti escreveu sobre a experiência para o Buzzfeed. O artigo se tornou uma sensação. Nas primeiras doze horas, teve 1 milhão de visualizações; antes de virar livro, 7 milhões. Para Felitti, o ensaio foi apenas o início de uma longa relação com Ricardo, o tema do livro: a tentativa de reconstituir a vida de Ricardo a partir de conversas com pessoas que o conheciam, parentes, amigos e o grande amor da sua vida, Vânia, uma mulher trans que termina como trabalhadora sexual — o destino de “onze em cada dez” mulheres como ela — em Paris.
Reencontro
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Faz vinte anos que Ricardo e Vânia não se veem quando Felitti proporciona um reencontro virtual, por uma conexão de vídeo. Ela o apresenta a seu cão. Promete visitá-lo quando for ao Brasil. Ao fim da conversa, ambos, mais Felitti e a mãe, estão em prantos. Semanas depois, aos sessenta anos recém-completados, Ricardo morre. Vânia consola Felitti: “Ele estava em paz. No dia em que conversamos eu senti que isso iria acontecer”. Os principais jornais publicam obituários. “Ricardo é chamado de artista”, escreve Felitti.
Depois da morte de Ricardo, Felitti vai a Paris para conhecer Vânia. Filha de analfabetos, ela sempre soube que era diferente — era mulher — e que a sua história, como disse uma amiga, era “a história de todas nós, bichas do interior”, espancadas, ameaçadas, jogadas na cadeia sem nada ter feito de errado. “Só o fato de caminhar pela rua já era crime suficiente.” Vânia também fugiu para São Paulo. Ali conheceu Ricardo, e ali eles começaram a refazer o rosto com silicone.
A doença de Ricardo acabou por tornar impossível viver com ele e Vânia se mandou para a Europa, destino de milhares de mulheres trans. Mas se isso soa trágico, não foi: revelou-se uma empreendedora sagaz, comprando apartamentos em Paris e uma casa no Brasil, tornando-se uma espécie de tia de jovens brasileiros que iam para a Europa pelo mesmo motivo que ela.
A crescente visibilidade das pessoas transgênero é uma das marcas registradas de nosso tempo. Mas Chico Felitti está também escrevendo numa das tradições mais nobres da literatura brasileira: a de dar nomes aos descartados e esquecidos. São pessoas como a Macabéa de Clarice Lispector ou o Fabiano de Graciliano Ramos: pessoas que você — sim, você — mudaria de calçada para evitar.
Essas histórias representam milhões de outras. Sabemos que o mundo está repleto de soldados desconhecidos, que combatem inimigos mais ferozes que invasores estrangeiros: a homofobia e o racismo, o vício e a doença mental, a pobreza e a má sorte.
Escrever a respeito de pessoas que tantas sociedades julgam não merecer nem mesmo um nome é um ato de resistência. E de amor: a delicadeza e compreensão de Chico Felitti com Ricardo, o seu empenho em juntar as peças da história dele, fazem desse livro uma homenagem de um jovem escritor gay às pessoas que tornaram possíveis vidas como a nossa. Contar essas histórias é um modo de lembrar a coragem de quem não teve a sorte que nós tivemos — graças a elas.
Ricardo era um artista. Chico Felitti também é. Na última página, ficamos sabendo que o túmulo anônimo ganhou uma placa. “Ricardo tinha um apelido pelo qual era chamado por milhares de pessoas”, escreve Felitti, “mas morreu com um nome.”
Uma placa, um nome — e um monumento: esse livro magnífico, comovente, inspirador. (Tradução de José Geraldo Couto)
Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.
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