Biografia,

Escrever é sangrar

Nova edição de 'Autobiografia precoce' traz o retrato mais denso da atuação de Patrícia Galvão no século 20 e a afasta do mito Pagu, a musa do modernismo

01dez2020 | Edição #40 dez.2020

“Não estou escrevendo autobiografia para ser publicada ou aproveitada. Isso é só para você ter um pouco mais de mim mesma, das sensações e emoções que experimentei”, lê-se em Pagu: autobiografia precoce, relançada pela Companhia das Letras. Trata-se de uma longa carta confessional que Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, endereçou ao seu companheiro Geraldo Ferraz. Iniciada em 1940 entre grades e continuada no primeiro ano de liberdade após os quase cinco anos de cárcere, ela confirma a definição de Conceição Evaristo de que “escrever é sangrar”.

Se escrever é sangrar, também pode curar. Essa fala escrita deve tê-la ajudado a superar uma série de traumas e iniciar uma nova vida atuando como jornalista, crítica e escritora, sendo sempre “militante do ideal” — título que foi dado por Geraldo Ferraz ao texto-epitáfio publicado na Tribuna de Santos, jornal em que ambos trabalhavam, quatro dias após a morte de Patrícia, em 1962.

A sexualidade e a política são centrais nessa carta, mostrando que enquanto não houvesse liberdade para a mulher não haveria liberdade para a humanidade. A busca por uma erótica afetiva colide com os seguidos assédios, vindos de todos os tipos de homens enumerados ad nauseum — de literatos e companheiros comunistas a oficiais do Exército brasileiro e do soviético. O fato de ser mulher é um entrave permanente no ambiente do Partido Comunista Brasileiro, então seguindo as orientações do comunismo internacional sob a égide de Stálin. Enquanto seus sentimentos e desejos tinham de ser reprimidos em nome da política, o desejo dos homens por ela era livre, e seu corpo estaria à disposição da causa, tanto que ela chegou a receber uma missão de trocar informações estratégicas por sexo. E uma vez nas garras da polícia, teve seu corpo seviciado. Segundo Darcy Ribeiro, nas sessões de tortura um arame foi introduzido na sua uretra.

O fato de ser mulher dificultou sua militância política, assim como sua origem de classe: oriunda da pequena burguesia, precisou provar o tempo todo que estava curada de tal “doença”. A ordem do comunismo internacional era proletarizar-se. Ela admitiu sua incompetência para o trabalho doméstico, operário, em oficina de costura, até conseguir alguma estabilidade como lanterninha de cinema e depois trabalhando numa metalúrgica, o que deu origem à novela Parque industrial (1933).

O fato de ser mulher dificultou sua militância política, assim como sua origem de classe

O que se depreende da leitura desse texto cheio de sangue nos olhos e nas mãos é que ele chega até as entranhas não só da própria autora, mas também da história das mulheres. A busca pela liberdade no sentido amplo já tinha aparecido na sua primeira autobiografia, ou autobiofagia, como chamou Augusto de Campos: Pagu, nascimento, vida, paixão e morte. Nessa espécie de história em quadrinhos publicada postumamente, ela está nua em quase todos os desenhos. Se poucas mulheres tinham uma vida sexual livre e política na primeira metade do século 20, menos mulheres ainda deixaram registros de sua intimidade.

Maternidade

Nos anos 1970, Geraldo Ferraz entregou ao filho Geraldo Galvão Ferraz todos os arquivos de sua mãe, Patrícia, inclusive essa longa carta datilografada guardada numa pasta preta. Geraldo filho demorou décadas para conseguir terminar a leitura, mas, logo que conseguiu, decidiu publicá-la. Consultou seu irmão Rudá, filho de Patrícia com Oswald de Andrade, e compartilhou essa Patrícia Galvão nua e crua numa primeira edição: Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão (Agir, 2005), que traz duas introduções, cada uma escrita por um filho.

Dentro da luta da liberdade do corpo, o tema da maternidade é candente no livro. As primeiras experiências maternais de Patrícia são dilacerantes. Abortos involuntários e a admissão da dificuldade de ser mãe depois que nasceu Rudá, por sentir-se dividida com seus desejos comunistas e literários. Uma passagem do texto define esse dilema quando, em meio a uma missão em Santos, um companheiro do Partido Comunista, ao ver sua aflição pelo fato de seu filho estar com pneumonia em São Paulo, lhe pergunta: “E se seu filho morresse hoje?”. Ela responde: “Os filhos dos trabalhadores estão morrendo de fome todos os dias. O importante é a nossa tarefa de agora”. Ela reflete logo em seguida: “Por que falei assim? Senti como falseados os meus sentimentos. […] Odiei-me pela cretinice e desonestidade comigo mesma”.

Essa história dolorida foi retomada em dois tempos. Em 1947, ela escreveu “Carta de Maú” na sua coluna no Diário de São Paulo, dirigida ao filho Rudá, sobre o reencontro dos dois depois de muitos anos quando ele era adolescente: “Recebe as minhas mãos molhadas desta água do meu mar represado nestas pálpebras, recebe-as, a essas mãos, sobre os cabelos noturnos com que dorme essa cabeça, meu filho”. Muitas décadas depois, em “Bastidores de uma crônica”, introdução da primeira edição da Autobiografia precoce, Rudá rememora: “O cheiro de minha mãe era atípico. Não era o perfume, não era o hálito nem os cabelos. Era o cheiro de mãe”. Nessa nova edição da Companhia das Letras, não podemos ler os textos de Rudá e Geraldo que introduzem a edição anterior da Agir. Além disso, a crônica de Patricia sobre Rudá foi incorporada à autobiografia reeditada, como um preâmbulo, mas sem nenhuma explicação, sem título, como se fizesse parte do texto original.

Cada vez mais o mito em torno de Patrícia Galvão cresce. Faço um esforço aqui para não a chamar de Pagu, parte da construção do mito. Palavra curta e enigmática de fácil lembrança que a tornou quase tão pop no Brasil como Frida (Kahlo). Embora tenha sido uma intelectual e performer à frente do seu tempo, o senso comum teima em chamá-la de musa do modernismo, status efêmero logo substituído por sua atuação militante na esquerda e por sua escrita. Sua produção intelectual e atuação é fundamental para a história das mulheres. Sua crítica de literatura e artes tem um estilo dissonante, uma relação passional com as grandes artes. Além disso, seu feminismo é muito particular.

O crime de Patrícia Galvão foi a ousadia. O castigo: cadeia, açoite, difamação. Derrotada depois de anos presa, fez um resumo amargo de sua aventura, mas ainda com um certo horizonte de perspectivas. O que Patrícia viu e sentiu importa a todos nós, que ainda estamos esperando pelas promessas da modernidade, num mundo que clama por pão, terra e liberdade.

Quem escreveu esse texto

Silvana Jeha

É autora de História da tatuagem no Brasil, publicado pela Veneta.

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.