As Cidades e As Coisas,

Se essa rua fosse minha

A história recente do Baixo Augusta é contada por político e empresário que participou da transformação de uma das ruas mais famosas de São Paulo

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

Em meados dos anos 1990, o geógrafo britânico Neil Smith colocou o termo “gentrificação” no centro dos debates sobre urbanismo. Tradução fonética do anglicismo gentrification, faz referência a gentry, uma parte da nobreza inglesa. Transposta às cidades, trata de um processo de transformação urbana em áreas centrais: abandonadas pelas elites, elas entram em declínio e se consolidam como bairros populares, considerados degradados e perigosos; mas, passadas algumas décadas, voltam a atrair as classes médias e se valorizar, expulsando a população de baixa renda. 

Em Baixo Augusta: a cidade é nossa, Alê Youssef narra as transformações que ocorreram na rua Augusta nos anos 2000, com a chegada de “projetos pioneiros” que “desbravaram” a região, “promovendo requalificação urbana através da arte, da cultura e do empreendedorismo”. Transformações que resultaram em gentrificação, embora a palavra não apareça no livro. 

Ligando o abastado bairro dos Jardins ao centro da cidade, a rua Augusta foi point da jovem elite nos anos 1960 e 70 e ganhou fama nacional com a música cantada por Ronnie Cord e Erasmo Carlos. “Entrei na rua Augusta a 120 por hora” se tornou hino de uma geração. Dos tempos da Jovem Guarda até hoje, as mutações ali espelham transformações em toda a região central de São Paulo. 

A perda de prestígio e o abandono do centro por grupos de alta renda iniciaram um ciclo de declínio na região, e obras viárias desastrosas como o Minhocão, na gestão de Paulo Maluf (1969-71), contribuíram para intensificar o processo de esvaziamento e degradação. Nos anos 1980, a região central se desvalorizava e perdia o glamour. No trecho da rua Augusta mais próximo à praça Roosevelt se consolidou uma espécie de red light district à paulistana, com casas de massagens, American bars e prostituição de rua.

Mas, na virada dos anos 1990 para os anos 2000, uma juventude mais abastada começou a frequentar as novas casas noturnas que se instalavam nesse território, que, embora abandonado pelo poder público, exercia atração por sua atmosfera underground e pelos preços baixos dos galpões. “A juventude das classes média e alta da cidade buscava um cenário mais ousado para sua diversão e um espírito mais cosmopolita para seus empreendimentos”, conta Alê Youssef. Misturando relato histórico com testemunho em primeira pessoa, o autor narra os acontecimentos que transformaram não apenas a noite na Augusta, mas toda a cultura urbana em São Paulo.

Quintal

A biografia de Youssef lhe oferece uma perspectiva privilegiada, e bastante pessoal, sobre os acontecimentos: entre 2001 e 2004, na gestão de Marta Suplicy (então no PT), esteve à frente da Coordenadoria da Juventude da Prefeitura de São Paulo. Em 2005, abriu com dois sócios o Studio SP, casa de shows no bairro da Vila Madalena. Em 2008, o Studio SP migrou para a rua Augusta e, em 2009, Youssef fundou com amigos o bloco carnavalesco Acadêmicos do Baixo Augusta, frequentado por celebridades da cena independente e que se tornou o maior bloco da cidade. Do bloco nasceu uma associação e, em 2018, um novo espaço cultural. E, por fim, em 2019, no mesmo ano da publicação de seu livro, Youssef foi nomeado pelo prefeito Bruno Covas (PSDB) como secretário de Cultura de São Paulo.

Já nas primeiras páginas do livro, o autor identifica em São Paulo uma guerra fria entre aqueles que sonham com uma cidade mais humana e ocupada pelas pessoas, e forças conservadoras movidas pelo ideal econômico, em uma cidade voltada para carros e negócios. A dimensão partidária dessa disputa é evitada, e acontecimentos centrais na contestação de imaginários sobre a vida urbana, como as manifestações de junho de 2013, são apenas mencionados. Em seu lugar, Youssef coloca no centro dessa disputa seus próprios empreendimentos culturais e comerciais, alçados a protagonistas políticos e ativistas na “batalha colorida e criativa pelo direito à cidade em uma megalópole geralmente cinza e opressora”. 

A história narrada da rua Augusta está, então, umbilicalmente atrelada aos seus negócios. A região onde a transformação urbana acontece é o “seu quintal”, e os estabelecimentos vanguardistas nesse movimento são o “quartel-general” do seu grupo. Uma parte significativa do livro é um extensivo name dropping dos agentes desse processo que, se tem valor como registro, também não deixa de ser uma visão ensimesmada da cultura em uma cidade de 12 milhões de habitantes.  

A noção do pioneirismo de Alê Youssef contribui para tornar invisíveis aqueles que já estavam na região

Voltando a Neil Smith, o geógrafo observou o papel central da arte e da cultura em processos de gentrificação como pontas de lança para a entrada do capital imobiliário. Ao se instalarem em um bairro degradado, empreendimentos culturais ajudam a quebrar o estigma sobre o lugar, tornando-o desejável e expandindo a fronteira urbana dos territórios rentáveis. Mais do que um fenômeno cultural, a gentrificação é parte de uma mudança na economia política da cidade, que leva à expulsão de populações marginalizadas das áreas centrais. A noção de pioneirismo em agentes como Alê Youssef apenas contribui para tornar invisíveis aqueles que já estavam ali e serão excluídos da renovação. O processo de gentrificação, entretanto, não termina aí. Os anos 2010 mostraram que a valorização acabou por expulsar os próprios bares e casas noturnas que simbolizavam a transformação da região, inclusive os negócios de Youssef e seus amigos. Em seu lugar, prédios muito bem murados e grandes redes comerciais como farmácias e fast-foods dominam a nova paisagem do Baixo Augusta.

A cada Carnaval, o bloco de Youssef patrocina a pintura de um mural em alguma lateral de edifício nessa região, normalmente acompanhando o tema dos desfiles. Em 2017, um imenso grafite com a frase “Baixo Augusta: a cidade é nossa” foi inaugurado na praça Roosevelt e lá permanece. Entre a disputa pelo modo de vida na cidade que o livro descreve e a substituição de um grupo social por outro mais afluente, sobre a qual o livro silencia, o sentido desse “nossa” fica um tanto ambíguo. 

Em março deste ano, os principais meios de comunicação noticiaram que Youssef deixou a Secretaria para tentar ser candidato a vice-prefeito na chapa de Bruno Covas. A enfermidade do atual prefeito, disputas internas partidárias e o provável adiamento das eleições municipais por conta da pandemia de Covid-19 parecem ter deixado em suspenso, por ora, essa possibilidade. Mas, se seu intuito se realizar, será importante que Youssef olhe a cidade e a cultura urbana além do seu quintal.

Quem escreveu esse texto

Luanda Vannuchi

Geógrafa, doutora em arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.