As Cidades e As Coisas,

Cartografia de um poema

Poeta da geração marginal faz versos distópicos inspirado por um mapa do século 17

19abr2023 | Edição #69

Um lugar, um mapa, um poema. As plaquetes editadas neste ano pela Círculo de Poemas fazem este convite aos autores: a partir de um mapa, escrever poemas. Nicolas Behr, natural de Cuiabá e morador de Brasília há décadas, escolheu o mapa Novus Brasiliae Typus, do cartógrafo holandês Willem Janszoon Blaeu, datado de 1672. Na palavra Brasiliae inscrita no mapa o poeta substituiu o s pelo x e fez surgir Braxília, o não lugar. Ou, como lemos nos versos de um dos poemas e também na última página do livro, junto das informações gráficas: “Inventar palavras é inventar lugares. Braxília, Braxília, cadê você?” Ao rasurar o mapa antigo, Behr inventa um não lugar que lembra as heterotopias de Foucault: lugares absolutamente outros, nem reais nem utópicos. Distópicos?


Braxília não-lugar, de Nicolas Behr

Braxília pode ser lida como metonímia de Brasil, das capitanias hereditárias às invasões terroristas na capital federal logo depois do resultado das últimas eleições. Em um dos poemas lemos: “o eixo torto/ da natureza torta/ as asas fechadas/ do anjo caído.” Fora do eixo, destruída, saqueada, a nação se traduziu, por horas, em um ato de vandalismo explícito consentido, televisionado, compartilhado com orgulho patriótico nas redes sociais. Um Di Cavalcanti original foi esfaqueado e uma cópia da Constituição Federal roubada, assim como informações e imagens de arquivo. Há vários Brasis em Braxília.

O poeta inventa um não lugar que lembra as heterotopias de Foucault

Os poemas aludem à peculiar geografia da cidade. Aparecem as asas norte e sul, a topografia essencialmente plana, o céu azul, alguma possibilidade de localização sem mapa. No entanto, é o espaço imaginado que predomina, o espaço sonhado. É possível sonhar Brasiliae, Braxília, Brasil, Brasília: “um topo utópico/ uma topada/ sonhar/ com braxília/ e levantar”. É preciso alguma desorientação para enxergar, vislumbrar, sonhar não lugares: “a cruz/ que cruza/ a encruzilhada/ desorienta/ e mostra”. E também disposição para desenhar seus mapas, inventar sua existência poética, “trocar o mundo pelas palavras”.

Nesta Braxília cabe, ainda, a história da construção planejada da capital federal, que se realizou em apenas quatro anos, durante o governo de Juscelino Kubitschek, à custa de muito trabalho precarizado, realizado por migrantes das regiões Norte e Nordeste que ficaram conhecidos como candangos. Não por acaso, são mencionados no primeiro poema do livro: “impossível/ imaginar/ braxília/ os que tentaram/ — candangos —/ foram obrigados/ a construí-la”.

Metáforas

Outros escritores também já poetizaram a concreta cidade, como Guimarães Rosa, que a menciona em Primeiras estórias, no conto “Às margens da alegria”. Um menino viaja com os tios para “onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho”. Espaço onírico, “braxília/ também/ é sonho”, como escreve Behr. Não lugar, heterotopia, distopia, “brax ilha não”. A nação, em sua metonímia Braxília, não está ilhada. É “arquipélago da imaginação”, esculpido em palavras inventadas que podem ser lidas de trás pra frente, “ailisarb”, em intertextualidade, “brasilíada”, sempre poeticamente, “brasilírica”, “brasilinhas”, “brasilien-se”. Boas metáforas de como se pode ler o país.

Neste não lugar leem-se também marcas autobiográficas do poeta, que não só canta sua morada atual mas também sua infância em Diamantino (mt): “o mapa de diamantino/ é mais fácil de desenhar/ […]/ mas é braxília/ que sangra”. No verso final do livro encontra-se uma chave de leitura que se contrapõe aos mapas, roteiros, guias. A menção a Alcina, título de um dos livros do poeta e nome de sua esposa e companheira, encerra o percurso errático: “em braxília/ (como em toda parte)/ não preciso de mapa/ preciso de alcina”. 

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.