Arte,

Sonhos acordados

Em seu último livro, crítico norte-americano retraça os contornos de uma definição precisa para a arte

01fev2021 | Edição #42

O filósofo e crítico de arte Arthur Danto (1924-2013) levou 25 anos elaborando sua própria teoria da arte. O tema passou a interessá-lo no ano de 1964, quando viu a pop art de Andy Warhol exibida na Stable Gallery, localizada na East 74th Street, em Manhattan, Nova York. A exposição consistia em fac-símiles retirados das prateleiras do supermercado e mudou radicalmente os rumos da vida de Danto. Até então pesquisador na área da filosofia analítica, ele se viu impelido a investigar questões relativas à filosofia da arte. Entre as obras mais conhecidas daquela exposição, todas produzidas na recém-inaugurada Factory, o ateliê de Warhol, estavam as caixas de sucrilhos Kellogg’s e as esponjas de aço Brillo, cujos rótulos foram reproduzidos como fotografias tridimensionais. 

Em O que é a arte, seu último livro publicado, ele relata: “Minha preocupação filosófica com a arte contemporânea começou quando visitei essa exposição. Eu, de certo modo, aceitei que as caixas eram arte, contudo, imediatamente passei a questionar qual seria a diferença entre elas e as verdadeiras caixas de Brillo do supermercado às quais se assemelhavam visualmente”. Tal preocupação, ele prossegue, seria “o que as/os filósofas/os chamam de questão ontológica, a qual exige uma definição de arte”.

Por questão ontológica entende-se que sua busca é orientada para uma definição universal ou geral de arte, independentemente do período histórico em que foi criada. A questão já havia ganhado destaque após Duchamp exibir como escultura um urinol invertido, dando a ele o título de A fonte, iniciando o acalorado debate sobre o que pode ou não ser arte. Segundo Danto, seus ready-mades criticavam a visualidade como vetor principal da experiência artística; já Warhol, no exemplo da sua Brillo Box, inspirou-se na cultura popular norte-americana e levou para dentro das galerias e dos museus elementos do cotidiano, transformando-os em obras de arte indiscerníveis da realidade. Dois artistas do século 20 que representam uma mudança radical no estatuto da arte, cujo parâmetro estético, grosso modo, se resumia a uma experiência prazerosa gerada por belos objetos. 

Mundo da arte

A súbita mudança no paradigma da artisticidade das obras abalou aquilo que Danto nomeia em seu primeiro artigo “mundo da arte”, o qual consiste em todas as obras de arte do mundo: “O termo foi cunhado em 1964: em meu primeiro artigo sobre filosofia da arte, afirmei que ver algo como arte exigia uma qualidade que os olhos não podiam ver — um pouco de história, um pouco de teoria”. 

O autor parece descartar um conceito aberto de arte, o que implicaria aceitar que ela é indefinível

Pelo diagnóstico de Danto, a indiscernibilidade entre arte e realidade é a causa da demanda por um público capacitado, que já domine um certo repertório do mundo da arte, da religião e da filosofia, especialmente da estética. Ele explica: “Entendo a estética como a maneira como as coisas se mostram, juntamente com as razões para preferir uma maneira de se mostrar em relação a outras”.

Não por acaso, ambas as tradutoras de O que é a arte são estetas, a saber, as filósofas Rachel Cecilia de Oliveira e Debora Pazetto. A tradução cobre um buraco na obra do crítico de arte que foi adotado nas universidades brasileiras quando a extinta Cosac Naify publicou algumas de suas obras mais famosas, como A transfiguração do lugar-comum. O livro conta com um prefácio dedicado aos interessados no tema, mas sem o tal repertório mencionado, contextualizando a obra de Danto na história da arte e fornecendo informações precisas para entrar nas discussões do filósofo, cuja escrita é das mais fluidas. Assim, o prefácio permite uma aventura bem alicerçada. Além disso, a edição vem com uma Brillo Box em miniatura, para destacar e montar. 

Definição universal

O autor parece enfim descartar a possibilidade de um conceito aberto de arte, o que implicaria aceitar que ela é indefinível, o que não estava claro nas suas obras anteriores. Danto oscilava entre a tentativa de uma nova definição universal de arte que abarcasse todos os períodos históricos e a admissão da impossibilidade de definir o que é a arte em um significado único. A segunda opção pende a uma interpretação de que individualmente cada obra contém no seu interior a chave para acessar o seu verdadeiro significado e essência. Em suas palavras: “Minha definição tinha dois componentes principais: algo é uma obra de arte quando tem um significado — é sobre alguma coisa — e quando esse significado está incorporado na obra — o que geralmente significa: está incorporado no objeto que constitui materialmente a obra de arte”.

Danto estabelece definitivamente o uso dos termos “arte erudita” e “arte comercial”, excluindo a última do seu mundo da arte. Isso se deve, quem sabe, ao fim de uma trajetória na qual ele afirma: “Decidi ampliar minha definição anterior de arte — significados incorporados — com outra condição que capta a habilidade da/o artista. Graças a Descartes e Platão, definirei a arte como ‘sonhos acordados’”. Essa nova definição é pouco ou nada desenvolvida por ele, que menciona brevemente o potencial que a arte tem de possibilitar sonhos compartilhados. 

Dividido em seis partes, O que é a arte discute temas caros a Danto, que recapitula seu percurso e aborda as diferenças entre filosofia da arte e história da filosofia; estética e teoria da arte. E deixa clara a sua tarefa nesses 25 anos: “Meu papel como crítico era dizer sobre o que era o trabalho — o que ele significava — e, então, dizer por que ele era digno de ser explicado aos meus leitores”. 

Grande entusiasta da mudança representada pela saída do centro das artes de Paris para Nova York, Danto cunhou o termo arte pós-histórica influenciado pelo diagnóstico hegeliano do fim da arte presente em seus cursos de estética. Desenvolvendo a teoria de Hegel, Após o fim da arte não representa de forma alguma o fim do fazer artístico, e sim uma ruptura com a historiografia normativa da arte. 

Antes de encerrar, gostaria de deixar um aviso a quem queira cair de paraquedas no debate. O ponto fraco de Danto reside em certa ingenuidade perniciosa em seu posicionamento, que eleva o fazer artístico ao centro das artes, porém não explora a relação entre o centro e as margens. 

Dessa perspectiva, fica óbvio o matiz otimista da narrativa de Danto, que, em comparação a outros filósofos, como Giorgio Agamben e Jacques Rancière, não relaciona a mudança nos modos de produção e recepção da arte contemporânea à sua crescente politização, suprimindo de suas reflexões a influência que duas grandes guerras mundiais e o regime neoliberal exerceram sobre a classe artística e boa parte das obras datadas após o fim das vanguardas artísticas. 

Quem escreveu esse texto

Yasmin Nigri

Artista e poeta, escreveu Bigornas (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.