Arte,

Das vanguardas históricas à desmaterialização da arte

Escritos inéditos de um dos percursores da curadoria contemporânea e fundador do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP revelam como a tecnologia esgarçou os limites das artes visuais

21jan2020

É comum ouvir no meio das artes visuais que a história recente da arte brasileira é pública e notória, acessível a quem possa se interessar. Essa percepção errônea é refutada pela parca e esgotada produção editorial da área, que a custo vem sendo superada pelas monografias produzidas por jovens pesquisadores sobre as trajetórias de artistas locais, pela emergência de novas perspectivas analíticas e pela própria edição deste livro fundamental, dedicado aos escritos inéditos dos últimos anos de pesquisa do professor Walter Zanini (1925-2013).

Vive-se hoje um momento interessante de revisão crítica dessa história incompleta e mitificada, pautado pela urgência em debater tal registro à luz das reconfigurações geopolíticas e das questões de gênero, raça e origem. Duas iniciativas de fôlego devem, portanto, acontecer em paralelo: a publicação de uma ampla produção que consiga de fato consolidar uma história e uma historiografia da arte no Brasil, e uma apreciação crítica atenta aos processos decoloniais e ao pensamento emergente. Aqui vamos nos deter sobre o primeiro ponto.

Lançada em 2018, esta oportuna publicação didaticamente estruturada torna acessível a extensa investigação realizada por Zanini, personagem-chave da história da arte brasileira desde a segunda metade do século 20. Trata-se da materialização  de uma pesquisa de fôlego que gestou uma visão crítica da arte contemporânea, triangulando em suas formulações repertórios e pensamentos advindos de seu trabalho como historiador, crítico e curador, com todas as frentes concatenadas pela didática do professor que fundou o Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. Nesse livro, se a experiência brasileira é sempre bem ilustrada e debatida, isso é alcançado sem perder de vista suas relações com o contexto internacional e pari passu com as iniciativas artísticas que dialogam, direta ou indiretamente, com as experiências e radicalidades locais.

Como aponta o organizador do livro, Eduardo de Jesus, Zanini desenvolve uma perspectiva ampla e densa da produção estética, sensível aos sintomas de seu tempo, conduzindo o leitor pelos “complexos processos de desmaterialização do objeto artístico” que caracterizam a produção artística desde meados do século 20, guiando-se pela ideia de que a tecnologia é um vetor fundamental desses processos. Ao refazer os caminhos da história da arte contemporânea, assinala Jesus, “o autor nos mostra a presença da tecnologia esgarçando as fronteiras e os limites da produção artística”.

A origem do livro está numa documentação original com mais de 800 páginas de escritos e notas produzidas e organizadas por Zanini no final de sua vida. De uma pesquisa que vai de 1997 a 2005, o relato crítico de caráter universal entrega aos leitores e aos pesquisadores da área balizas históricas importantes, sistematizações da produção artística e da produção de conhecimento a elas vinculadas, levantamentos bibliográficos e leituras críticas para a escrita de uma história da arte brasileira ainda muito pulverizada. Como aponta o organizador, trata-se da constituição do método Zanini: “Uma mistura de rigor conceitual e investigação com revisão bibliográfica, visitas às exposições, artistas e acervos institucionais”.

Do moderno ao contemporâneo: o paradigma da videoarte

Construindo um grande eixo conceitual e cronológico, a publicação propõe uma estrutura correlata aos sete capítulos escritos por Zanini: da arte artesanal e mecânica à arte eletrônica; arte cinética; aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental; vídeo; a videoarte no Brasil; arte e tecnologia no Brasil. Apesar de a pesquisa ter sido interrompida, restando inconclusa, as observações do próprio autor e as notas do organizador costuram o vasto material disponível e criam aberturas para o desenvolvimento de novas investigações acadêmicas e curatoriais. Se não é possível conhecer o trabalho de acabamento que lhe daria Zanini, suas anotações e apreciações dispersas por todo o livro solidificam caminhos para a construção de uma história contemporânea da arte local em relação ao contexto internacional.

Além dos temas apresentados nos sete capítulos, foi incluído ao final do livro um artigo, em forma de depoimento, intitulado “Primeiros Tempos da Arte/Tecnologia no Brasil”, encomendado para o livro “A arte do século 20: a humanização das tecnologias”, organizado por Diana Domingues. Tal complemento oferece ao leitor um entendimento da inserção institucional do vídeo e das novas tecnologias — desde as iniciativas mais experimentais dos anos 1970 até as Bienais de São Paulo das quais ele foi curador-geral — a 16ª em 1981 e a 17ª em 1983. De forma geral, como aponta o próprio Eduardo de Jesus, esta pesquisa de Zanini é complementar ao livro de escritos organizado anteriormente pela professora Cristina Freire (Walter Zanini: escrituras críticas, de 2013, da editora Annablume), hoje já raro ao público especializado.

Se é perceptível e intencional a constituição de uma dimensão histórica e de uma clara sistematização da arte contemporânea a partir das radicais transformações da arte desde a década de 1950, fica evidente também a pontuação do vídeo como mídia e linguagem de forte protagonismo. E aqui não se trata de uma percepção pontual desse suporte tecnológico, mas de sua expansão enquanto forma e recurso onipresente nas práticas e expressões artísticas. Ao longo de todo o livro, tendo em vista o exemplo brasileiro, é possível conhecer uma revisão histórica e historiográfica da videoarte, trazendo desde a geração pioneira dos filmes experimentais até os videomakers que fizeram a passagem do analógico ao digital.

Ao final, conta-se ainda com uma nota biográfica que sintetiza sua trajetória de publicações, o que permite de sobrevoo entender quais foram suas principais investidas na escrita. Contudo, dada a riqueza desse itinerário, falta uma reconstituição histórica maior do contexto de produção de cada um desses textos, além de uma bibliografia para consultas dos jovens pesquisadores e curiosos em geral.

Como se colocou no início, as condições adversas de nosso país — marcado pelo desapreço à pesquisa e pela pouca democratização do acesso à arte —, aliadas ao nosso precário mercado editorial e à ainda jovem atividade acadêmica do meio, pouco publicada e publicizada, retardam a construção de um lastro histórico e crítico condizente com a magnitude proteiforme (termo empregado pelo próprio Zanini para descrever a nova arte em evidência na 16ª Bienal de São Paulo) da arte contemporânea no contexto da cultura brasileira.

Pode-se deixar como notas para reverberações futuras dois caminhos importantes e complementares a essa inciativa editorial. Em primeiro lugar, a publicação de material dedicado às exposições dirigidas e curadas de forma inovadora pelo professor Zanini na forma de um livro de referência complementar. É importante lembrar que ele foi o primeiro diretor do MAC-USP, entre 1963 e 1978, inovando as formas de atuação no contexto dos museus.

E, como segunda nota mental, a abertura de iniciativas que colaborem na pesquisa e divulgação da produção de figuras também fundantes na constituição de uma identidade historiográfica da arte contemporânea do Brasil. No caso, para ficarmos em dois nomes contemporâneos ao pesquisador em questão, menciono Aracy Amaral e Frederico Morais: já publicados em outras ocasiões, mas ainda em incompletude. Pares no debate corrente, são também testemunhas vivas e da história que é narrada de forma aberta em Vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. Curiosamente, é de Walter Zanini a organização da já histórica e clássica publicação, em dois volumes, da História Geral da Arte no Brasil (1983), nunca reeditado ou atualizado.

Quem escreveu esse texto

Diego Matos

Escreve sobre arte.