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Concebida por Gabriel Pérez-Barreiro e sete artistas-curadores, caixa-catálogo reafirma liberdade buscada na curadoria da Bienal

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Uma revolução tramada com a ajuda de colagens, esculturas, fotografias e pinturas tirou do poder o curador da Bienal de São Paulo, cuja 33ª edição começa neste dia 7 e vai até 9 de dezembro. Alçado ao posto em janeiro do ano passado, em substituição ao alemão Jochen Volz, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro passou grande parte de suas atribuições para uma junta formada por sete artistas. 

Ungidos artistas-curadores, eles ganharam plenos poderes para organizar parte da mostra como bem entendessem — para a satisfação do nada belicoso Pérez-Barreiro, de quem, afinal, partiu a ideia. “Estava na hora de repensar a forma como grandes exposições como essa são organizadas e o papel centralizador do curador”, disse à Quatro Cinco Um.

Receberam a patente de artista-curador o carioca Waltercio Caldas, o uruguaio Alejandro Cesarco, o espanhol Antonio Ballester Moreno, a argentina Claudia Fontes, a sueca Mamma Andersson, a americana Wura-Natasha Ogunji e Sofia Borges, paulista de Ribeirão Preto. Com direito à mesma verba, uma fração não divulgada do orçamento da Bienal (o total é de R$ 27 milhões, dois a mais que em 2016), saíram-se com projetos bem diferentes entre si.

Goethe e Mário Pedrosa

Diretor e curador-chefe da Coleção Patricia Phelps de Cisneros, focada em artistas latino-americanos, em especial os modernistas adeptos da abstração geométrica, Pérez-Barreiro não relegou-se ao papel de observador. Ficou a postos para atuar como conselheiro e se incumbiu da escolha dos doze nomes que ganharam mostras individuais. O que une tudo isso está resumido no poético nome escolhido para a Bienal: Afinidades afetivas. É uma junção da célebre tese do crítico de arte Mário Pedrosa, “Da natureza afetiva da forma na obra de arte” (1949), com o romance As afinidades eletivas (1809), de Goethe.

Em seus domínios, Waltercio Caldas espalhou peças suas em diálogo com trabalhos de nomes como o escultor espanhol Jorge Oteiza, famoso pelas portentosas esculturas de ferro, o pintor recifense Vicente do Rego Monteiro e o romancista francês Victor Hugo. “Escolhi obras que desviam do que mais se conhece de cada um deles”, explicou o carioca. Intitulada “Aos nossos pais”, a seção organizada por Cesarco evidencia como os artistas se encantam e ao mesmo se frustram com a possibilidade de reescrever o passado. É composta por delicadas produções do uruguaio, radicado em Nova York, e de artistas de gerações distintas, casos das americanas Elaine Sturtevant e Louise Lawler — a primeira, morta em 2014, era artista conceitual; a segunda produz fotografias, por vezes distorcidas.

A relação entre a biologia e a cultura é o fio condutor da mostra assinada por Ballester Moreno, batizada de “sentido/comum”. Nela, trabalhos de pensadores como o filósofo e pedagogo alemão Friedrich Fröbel se mesclam a telas surrealistas da chamada Escuela de Valleca, surgida na Espanha no começo do século passado. Todos os artistas participantes da exposição de Claudia Fontes, à exceção do holandês Roderick Hietbrink, conhecido pelas instalações, desenvolveram obras inéditas. Da lista fazem parte o videoartista inglês Ben Rivers, o performer búlgaro Daniel Bozhkov e a escultora islandesa Katrín Sigurdardóttir, entre outros.

Pintora de renome, com predileção por feições humanas, Mamma Andersson trouxe os artistas que lhe têm servido de inspiração. É o caso de ícones russos do século 15 e de dois de seus contemporâneos suecos, o cineasta Gunvor Nelson e o artista sonoro Åke Hodell. Já a performer Wura-Natasha Ogunji convidou o vídeoartista sul-africano Lhola Amira e a fotógrafa francesa Mame-Diarra Niang, entre outros contemporâneos, para criar obras comissionadas. Intitulada “sempre, nunca”, a exposição salienta o reflexo do território de origem dos artistas em suas obras.

Por fim, Sofia Borges discute os limites da representação e da impossibilidade da linguagem como instrumento de mediação do real por meio de artistas como a pintora paulistana Leda Catunda e a incensada escultora inglesa Sarah Lucas. “Passei anos procurando, através da imagem, desvendar o estado de representação das coisas, até que entendi se tratar de uma questão sem solução”, disse Sofia. “A linguagem é em si trágica, porque ambígua, e não se pode usar uma matéria para falar de outra.”

Liberdade

Ao definir quem ganharia mostras individuais, Pérez-Barreiro se preocupou em deixar de lado os mais consagrados. “Optei por artistas expoentes de suas gerações, mas pouco conhecidos na América Latina”, explicou. “Num momento em que há cerca de trezentas bienais e feiras de arte mundo afora, a de São Paulo não tem mais a obrigação de ser a vitrine da produção atual, tem total liberdade para seguir outros caminhos.”

Entre os artistas mortos que escolheu estão o guatemalteco Aníbal López, o paraguaio Feliciano Centurión e a goiana Lucia Nogueira. À exceção do veterano pintor Siron Franco, também de Goiás, todos os demais participantes criaram obras novas. São eles: o argentino Alejandro Corujeira, os cariocas Nelson Felix, Maria Laet e Luiza Crosman, a paulistana Denise Milan, o paranaense Bruno Moreschi, a mineira Tamar Guimarães e Vânia Mignone, paulista de Campinas.

Catálogo

Definida a programação, Pérez-Barreiro e os artistas-curadores se reuniram para resolver um dilema recorrente: elaborar um catálogo, para a data de abertura, ainda com várias obras ausentes, já que muitas só ficam prontas na véspera, ou lançar volume completo, mas necessariamente depois do início do evento? 

A solução foi criar um sofisticado catálogo que nada mais é do que o registro dos processos criativos. Composto por treze brochuras e oito cartazes reunidos em uma caixa, virou uma obra à parte. Cada um dos artistas-curadores deu o destino que quis ao seu pedaço, assim como os artistas vivos com mostras individuais. 

O livro de Waltercio, enigmático como boa parte de sua obra, exibe seus trabalhos em meio a inscrições como esta, do poeta português Herberto Helder: “As coisas pensam todas ao mesmo tempo”. Cesarco criou um cartaz poético, com uma imagem do filme No Home Movie, da belga Chantal Akerman, com a legenda: “Charlie Chaplin participou uma vez de um concurso de sósias de Charlie Chaplin. Ele ficou em terceiro lugar”. 

Um segundo catálogo, com imagens de todas as obras, está prometido pela Bienal para um mês depois do início do evento. 

Quem escreveu esse texto

Daniel Salles

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.