Arte,
A gênese da linguagem
Livro repassa vinte anos de atuação de Edith Derdyk e seus atos de espacialização do tempo
20nov2018 | Edição #12 jun.2018Entre antecedentes de Casulo (1997) e desdobramentos de Fantasmagoria (2017), vinte anos se estendem pelas palmas das mãos do leitor, tensionados como as linhas das instalações que Edith Derdyk, no texto de abertura, chama de “atos de espacialização” e caracteriza como o “desejo de organizar um pedaço de tempo num pedaço de espaço”. Essa espacialização do tempo não interrompe o fluxo da duração, mas, conforme escreve Galciani Neves em texto sobre Scanner (2013), “persegue o infixável, convidando-o a existir como imagem”.
Ao comentar Casulo, trabalho em que as linhas envolvem a própria matéria plástica, Arnaldo Antunes ora vê “bocetas, rasgos, rachas”, ora “veias, intestinos”. Já nos trabalhos seguintes, as linhas se esticam a partir de pontos fixos no espaço, produzindo força, energia ou a “harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”, por meio da qual “o divergente consigo mesmo concorda”, segundo um fragmento do pensador pré-socrático Heráclito de Éfeso: o devir toma forma, pode ser compreendido e afirmado.
As linhas já não envolvem o trabalho, mas o próprio espaço, que se torna “campo expandido”, na formulação de Rosalind Krauss, mencionada pela artista. O trabalho já não é objeto ou coisa, mas imagem-força, que transfigura um espaço “desterritorializado”, como afirma o professor Peter Pál Pelbart no texto sobre Corte (2002). Nesse trabalho, a tensão das linhas sustenta uma placa de dois metros de altura, subverte a configuração natural das coisas.
Uma das “anotações” que Derdyk produziu para o livro revela a dimensão utópica da poética das linhas: nelas ecoam ressonâncias da “soma de todos os sonhos”, como se outros mundos possíveis se abrissem a partir das correlações de forças e planos que podem ser obtidas entre as linhas e o espaço. Esse aspecto sonoro não passou despercebido a Jacopo Crivelli Visconti. No texto sobre Sopro (2010), o curador orienta a “perceber o som que, silencioso, emana das linhas, preenchendo o espaço”. Uma “vibração” se faz sentir, “como de arco e lira”, nos termos do antigo filósofo do devir.
Embora a linha seja um elemento do mundo bidimensional, típica do período em que a visualidade se separa dos outros sentidos, conforme a medialogia de Marshall McLuhan, as linhas de Derdyk não pertencem à “galáxia de Gutenberg”, mas ao contexto da “reconfiguração”, conforme apontei no texto sobre Se o mar inteiro sob o leito de um rio (2008), que tive a oportunidade de produzir para o Centro Universitário Maria Antonia. Observações sobre uma sonoridade desses trabalhos evidenciam sua verbivocovisualidade, como diriam os poetas concretos, marca do retorno à sinestesia antiga, a partir do qual os sentidos seriam mediados pela técnica, ou pelos meios.
A artista examinou o poder expressivo das linguagens pré-fonéticas que Haroldo de Campos revelou na Bíblia
Consciente da predisposição dos trabalhos para explorar as origens da linguagem depois do ocaso da cultura tipográfica, a artista dedicou-se a uma série de estudos a partir da pesquisa e transcriação do Gênesis que Haroldo de Campos publicou em Bere’shith: a cena da origem. A investigação levou-a a examinar o poder expressivo das linguagens pré-fonéticas que o poeta revela estarem por trás do texto bíblico.
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Resultados dessa pesquisa aparecem em Arcada (2013), termo extraído da transcriação de Haroldo de Campos. Duas placas suspensas se sustentam por centenas de quilômetros de fios, transmitindo a “poderosa imagem da separação da luz da escuridão”, comenta Visconti. O impacto dessas pesquisas também provoca a produção de Tábula, produzido pela sobreposição das páginas do Gênesis até que formem blocos de textos indivisos, o que remete à interdição iconoclasta: “Não farás imagem alguma”.
Poemas
O mesmo recurso foi aplicado no livro de poemas A pesar, a pedra, lançado junto com o livro sobre a trajetória nas artes plásticas. Cada poema se caracteriza como um “olhar” e é apresentado ao lado da versão composta por sobreposições que revelam a mancha de texto dos versos, semelhante a um vulto. Curiosamente, o apagamento dos textos produz imagens.
A poética das linhas a certo ponto se desdobra em composições com grandes massas de papel, tão pesadas que desafiam até as estruturas dos espaços de exposição, como Manhã (2005) e Onda seca (2007), que o curador Ivo Mesquita descreveu como “um fluxo incessante de páginas, uma onda branca, seca, interrompida e aprisionada pela artista no instante da sua arrebentação”. Trata-se de uma determinada experiência do tempo que já não cabe na narrativa linear do livro tradicional, mas transborda pelo espaço como volume que não se contém, “incircunscritível”, no vocabulário da teologia da imagem, “sublime”, diriam os estetas.
Trabalhos recentes, apresentados na Cidade do México (2016) e em Paris (2017) parecem revelar novos movimentos. Em Blanco, Blanchot, bla bla, pedaços de carvão, em sua bruta irregularidade, fixam linhas esticadas até as pesadas pilhas de papel que essas linhas abraçam, recortando e definindo as massas. A experiência de expressão se apresenta como uma tensão permanente entre uma dimensão pré-linguística e a sua tradução em forma de linguagem.
Por outro lado, em Fantasmagoria, palavra associada às ilusões de óptica, Edith Derdyk utiliza linhas brancas para envolver a paisagem natural de um jardim. As linhas compõem, nesse espaço tão diferente dos habituais “cubos brancos” do mundo da arte, uma espécie de “deriva”, o que não é estranho à experiência multifacetada da artista, que coordenou o projeto Bagagem, de “caminhadas poéticas” e afirma num dos textos que “desenhar é caminhar”.
Derdyk congela um corte no tempo. Há algo de provisório nas tensões obtidas pelos trabalhos
Apesar da realização da potencialidade humana na deriva, um uso livre dos corpos, análogo ao desenho livre, o trabalho de Derdyk “congela um corte no tempo”, afirma Angélica de Moraes em texto sobre Ângulos (2004), sempre prestes a se desfazer, distensionar-se, como instrumentos de cordas que precisam ser constantemente afinados. Há algo de provisório nas tensões obtidas pelos trabalhos, estão “seguros sob os fios, ameaçados pelo plano”, escreve Noemi Jaffe sobre Declive (2003).
Derdyk nos leva às origens da linguagem não para que possamos nos valer de seus poderes, mas para que, “lidos pelo avesso”, como no poema de Alice Ruiz sobre “Fôlego”, à distância, possamos testemunhá-los.
Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.
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