
Arte,
A caixa preta de Flusser
Obra de filósofo tcheco que viveu no Brasil influenciou a fotografia experimental nos anos 1980 e continua atual na era da internet
28nov2018 | Edição #18 nov.2018Obra seminal para pensar a relação do homem com os aparelhos e as imagens por eles geradas, Filosofia da caixa preta é um texto provocativo, que visa desacomodar clichês e criar inquietude, sobretudo naqueles que pretendem produzir imagens com um mínimo de consciência crítica.
Publicados em 1983 pelo filósofo tcheco Vilém Flusser (1920-91), esses nove ensaios se revelam em seu conjunto, 35 anos depois, como uma potente caixa preta. Os sinais intermitentes que dela se propagam vão ganhando novos desdobramentos e significações à medida que a sociedade contemporânea cria aparelhos mais sofisticados para se comunicar via imagem e texto.
Um glossário de 52 termos correlatos ao universo fotográfico dá início ao livro. Flusser já abre de saída uma fenda na cabeça de quem se aventura pelo universo da representação por imagens técnicas, ao criar uma distinção radical e irreconciliável entre o “fotógrafo” e o “funcionário”.
O primeiro é a “pessoa que procura inserir na imagem informações imprevistas pelo aparelho fotográfico”, enquanto o segundo é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele”. Logo, só deve receber a alcunha de fotógrafo aquele que de certa forma se rebela e recria o programa limitante e repetitivo embutido na máquina desenvolvida pela indústria. Caso contrário, ele não será mais que um comportado funcionário cumpridor das tarefas programadas pelo engenheiro que criou o sistema.
Essa foi a senha que o filósofo, que viveu no Brasil de 1941 a 1972, deu aos fotógrafos do pós-modernismo para que se libertassem da relação mimética da fotografia com a realidade, rumo ao experimentalismo. E esse é um dos motivos pelo qual a obra agora relançada pela É Realizações se tornou uma das mais citadas em dissertações e teses de fotógrafos-artistas.
Em busca de uma expressão genuína e autoral, os artistas seguem de mãos dadas com Flusser para “desrespeitar” manuais de boa conduta do gesto fotográfico e fazem uso do amplo espectro de possibilidades nas experimentações pós-fotográficas.
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O mais impactante ao reler a Filosofia da caixa preta, porém, é perceber como a intuição e a sensibilidade desmesuradas de Flusser parecem ter descortinado, no início dos anos 1980, o que aconteceria nas décadas seguintes após a invenção da internet, dos smartphones e das redes sociais.
Inversão e alucinação
Se na época em que ele redigia esses textos, a fotografia ainda estava no campo analógico e sua prática se reservava a profissionais ou ao uso em festividades familiares e viagens turísticas, é espantoso que Flusser tenha enxergado questões como: “O homem, em vez de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria”.
Refletindo sobre esse ambiente de devoção, no qual a realidade é substituída por instantâneos, conclui-se que nesse processo o homem se aliena e esquece o motivo pelo qual, num dado momento, resolveu converter tudo em imagens: com o objetivo de orientá-lo no mundo. Logo a imaginação se transforma em alucinação, e o homem se torna incapaz de decifrar as imagens. No limite desse autoengano, deixa de manipular os aparelhos que ele próprio inventou e passa a ser manipulado por eles.
É irresistível entrar nessa linha de pensamento flusseriana sem pensar no modo como a sociedade atual — como se fosse de autômatos — se relaciona com seus inevitáveis aparelhos, não raro renunciando por completo à experiência de ser e de estar no tempo-espaço cronológico para se perder em virtualidades extemporâneas, muitas vezes com prejuízos para o convívio social, o protagonismo histórico e a crítica abalizada.
A experiência de ver as fotos está ligada ao conceito de magia: nosso olhar escaneia as imagens de forma circular em contraponto à leitura linear dos textos
Seguindo essa linha de raciocínio, no capítulo “A imagem técnica”, Flusser atenta para a potência magicizante das imagens. Magia, segundo a definição no glossário, é “existência no espaço-tempo do eterno retorno”. A experiência de observar fotografias está intimamente ligada a esse conceito de magia, pois nosso olhar tende a realizar varreduras circulares que escaneiam as superfícies imagéticas em contraponto à leitura linear dos textos, o que nos leva, segundo o autor, a uma relação “enfeitiçada” com o mundo.
Esse conceito, que Flusser denomina de “nova magia”, levado ao limite é altamente aplicável nos dias de hoje à nossa relação com as notícias (fake news incluídas), o mundo e os outros: “Vivemos cada vez mais obviamente em função de tal magia imagística: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens […] A nova magia não precede, mas sucede à consciência histórica, conceitual, desmagicizante. A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como o faz a pré-história, mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem: feitiço abstrato”.
Crítica e colapso
O filósofo alerta que, para romper esse feitiço que nos afasta do senso de realidade, é necessário exercer a visão crítica: “Graças à crítica é que podemos esperar transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos […]. Não será negando a automaticidade dos aparelhos, mas a encarando, que poderemos esperar a retomada do poder sobre os aparelhos”.
Vivemos justamente o momento em que as tecnologias de comunicação permitem, como em nenhum outro período da história, que o homem acesse informações, debata ideias e faça circular em escala global seu ponto de vista — que é, em grande parte, codificado em imagens.
No entanto, esse contexto coincide com o colapso do trato político e da polarização raivosa no mundo em geral e no Brasil em particular. Faz-se mais que necessário rever autores como Vilém Flusser, que nos alertam para essa falta de crítica e para a soberba que estão na base dessa relação enfeitiçada do homem contemporâneo com seus aparelhos.
Organizado por Rodrigo Maltez Novaes e Rodrigo Petronio, o volume integra o projeto de edição das obras completas de Flusser. Com posfácios assinados por Maria Lília Leão, Norval Baitello Junior e Rachel Costa, Filosofia da caixa preta é reeditado em conjunto com o livro Da dúvida. A coleção visa restaurar a cronologia da produção, e não a ordem das publicações, perseguindo assim o percurso da reflexão que liga uma obra a outra.
Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.