Arte e fotografia, Teatro,

Tempos vivos

Fotobiografia dá a ver oito décadas de vida brasileira na trajetória excepcional de Fernanda Montenegro

21nov2018 | Edição #13 jul.2018

Nas artes da representação, Greta Garbo e Fernanda Montenegro são nomes obrigatórios. A primeira pelo glamour que infundiu à sétima arte. A segunda pelo que fez nos palcos e fora deles. Atrizes cuja notoriedade é inseparável de seus meios de expressão e das personagens que protagonizaram. A primeira ganhou fama no cinema; a segunda fez nome no teatro. Daí decorre uma implicação robusta: a diferença entre interpretar nas telas ou no palco. 

Greta marcou os fãs com sua “inacessibilidade” quase mítica. Ao contrário dos grandes nomes do teatro, que dão o melhor de si ao interpretar papéis diversos, Greta, apesar de ter emprestado seu corpo a inúmeras personagens, interpretou antes de tudo a si mesma. Ou melhor, a persona que se construiu em torno dela. Arte da alteridade e da presença, o teatro liberta os intérpretes de si mesmos, mas não lhes assegura, como no cinema, os louros da imortalidade. “Quando um ator para o ato teatral, nada fica, a não ser a memória de quem o viu”, resume Fernanda Montenegro.

O registro visual que surgiu com a invenção da fotografia não minimiza as injunções da fugacidade a que atores e atrizes de teatro estão sujeitos ao praticarem uma arte que deixa provas materiais rarefeitas. O texto encenado pode ser consultado séculos depois da primeira montagem; já o espetáculo só sobrevive no testemunho dos que estiveram lá, nas fotos das peças, nos programas e nas críticas publicadas.

Mesmo quando filmado integralmente, ele torna-se outra coisa. Parte significativa do mistério e da magia que se desenrola do palco para a plateia e da plateia para o palco, se perde ao ser reproduzida em filme. Esse registro não é capaz de transmitir aquilo que acontece ao vivo e que depende essencialmente da capacidade de interpretação dos atores e de sua captação pelo público. Especialmente daqueles, como Paulo Autran e Fernanda Montenegro, que, sofrendo “dessa doença, atuar” e do “despudor cênico”, sabem “verticalizar as personagens” e põem a técnica, as inflexões da voz, a respiração e o corpo “a serviço de uma exigência cênica”. As aspas são da atriz, que acaba de lançar seu itinerário fotobiográfico.

A edição caprichada, com selo editorial do Sesc São Paulo, consumiu oito anos de trabalho e envolveu a atriz e uma equipe editorial atenta às suas escolhas para contar, com o auxílio de amplo acervo fotográfico, a sua história de vida. O livro cumpre, assim, um triplo feito: adensa a memória do teatro brasileiro; amplia a homenagem que a atriz recebe na Flip; deleita a legião de fãs — tanto dos que puderam vê-la no palco, quanto dos que a assistiram na televisão e no cinema.

Para os que convivem com Fernanda Montenegro, muitos deles amigos que com ela dividiram a vida e o palco, e para os que a acompanham a sua extraordinária capacidade como atriz, o livro é uma dádiva. Da sua leitura, feita com a delicadeza e o assombro com que folheamos o transcorrer do tempo nos álbuns de família, saímos engrandecidos e agradecidos pelo itinerário afetivo e profissional partilhado pela atriz.

Seguimos seu itinerário no teatro, da estreia em 1950, em ?Alegres canções na montanha?, a 2014

São quinhentas páginas repletas de fotos dela em cena: no teatro, no cinema, no teleteatro, nas novelas, nas séries. Embora em ordem cronológica, embaralham a linearidade do tempo, dependendo do suporte cênico. Seguimos seu itinerário no teatro, da estreia em 1950, em Alegres canções na montanha, a 2014, no espetáculo baseado no livro Nelson Rodrigues por ele mesmo, de Sonia Rodrigues, no qual atuou como atriz, diretora e dramaturga. 

Esse arco temporal abarca a vida de Fernanda dos 21 aos 85 anos. Ao passar do teatro para o cinema, acompanhamos a sua atuação em 31 filmes. Da estreia, aos 36 anos, em A falecida, de Leon Hirszman, interpretando Zulmira, ao Beijo, roteiro e direção de Murilo Benício, no qual, aos 89 anos, faz dona Matilde — ambos os filmes baseados em textos de Nelson Rodrigues. 

O livro vai e volta no tempo, num movimento espiralar que dá a ver o talento imenso da atriz em múltiplos suportes e personagens. Mas, antes de vê-la em cena, miramos registros da infância e juventude, da família Torres, do companheiro de vida e trabalho, o ator, diretor e produtor Fernando Torres. Observamos o crescimento dos filhos — o diretor de cinema Claudio e Fernanda, que se revelou, além de grande atriz, escritora talentosa. Acompanhamos também a chegada dos genros, da nora e dos netos.

As legendas cuidadosas, a transcrição de algumas das melhores críticas que recebeu, a reprodução de textos da atriz sobre a carpintaria teatral, as cartas de amigos e admiradores, os bilhetes dos fãs dão tônus à edição. Sobressai a emoção tingida pela certeza de estarmos diante de um patrimônio da cultura brasileira, construído com disciplina, imaginação, impregnação e vocação. Quase setenta anos transcorridos na “loucura” que, nas palavras de Fernanda, “é viver, respirar, falar, errar, acertar e se curar no teatro, pelo teatro, com o teatro”.

Beauvoir 

“Viver sem tempos mortos” poderia ser o título do livro e o resumo desse itinerário. Inspirada em textos de Simone de Beauvoir, Fernanda deu vida em 2009 à filósofa feminista. Com o auxílio de uma cadeira, trajando calça preta e camisa branca, os cabelos rentes partidos de lado, a postura esguia e ereta, em vez de mimetizar a autora Fernanda arquitetou o “espetáculo sobre o alicerce poroso das recordações de Beauvoir”, como sublinhou a crítica Mariângela Alves Lima. 

A interpretação amplificou as palavras da filósofa e fez reverberar a sua lucidez com potência máxima na verdade artística da atriz. Ambas disseram: “o que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido. Embora eu me sinta instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim. Provisoriamente. Não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro”.

Esse trecho, que escutei magnetizada da plateia, encontra-se num lugar inesperado no livro de Fernanda. Foi incluído acima de uma foto levemente desfocada de um homem de idade avançada, barba branca, de pijama, imóvel, sob uma cama, com a cabeça pousada sobre um travesseiro. Na página anterior, vemos o filho da atriz, Claudio, com um bebê no colo e a legenda “no dia da morte de Fernando”. 

O impacto do enxerto de Beauvoir acima do homem na cama se explica na legenda da foto que mostra o bebê e nos joga, sem rede de proteção, na verdade inescapável de que “o passado é a referência (que nos) projeta, o qual (devemos) ultrapassar”. A frase serve de bússola para iluminar o itinerário da atriz. Por isso, vamos a ele, deixando ao leitor o prazer de seguir por conta própria o presente de Fernanda. 

Subúrbio

Registrada como Arlete Pinheiro Esteves da Silva, nascida e criada no subúrbio carioca, Fernanda é neta de imigrantes portugueses e italianos, filha de pai operário, modelador mecânico e funcionário da Light, e mãe dona de casa. Com o pai, aprendeu que o “fazer é um ato sagrado” e praticou essa “visão do ofício de uma forma inquestionável”. Da mãe, “amorosa e violenta, que “amparava e agasalhava” a família, recebeu a “âncora do navio imigrante” que a ligava aos antepassados da Sardenha, suportando “o sofrimento físico e as vicissitudes da vida como uma mulher medieval, reta, justiceira e provedora”.

Adolescente, não acompanhou o início da renovação da cena carioca, localizado em outro espaço social e geográfico e apartado de seu mundo buliçoso em São Cristovão. Aproximou-se dos palcos, primeiro como espectadora dos grupos de comediantes da Cinelândia e das peças populares representadas na praça Tiradentes. Se os espetáculos a que costumava assistir eram “gastos”, os atores, em compensação, eram extraordinários. Era para vê-los interpretar, mais do que para prestar atenção às peças, que ela ia ao teatro. Dentre as atrizes, Dulcina de Moraes sempre lhe pareceu a maior personalidade do teatro nacional.

O ingresso na Rádio MEC, aos quinze anos, como radioatriz, locutora e, na sequência, redatora, abriu-lhe um espaço de formação. Adaptando clássicos da literatura, Fernanda fez da rádio uma espécie de universidade. Ali, tinha acesso à biblioteca, à discoteca e à cinemateca. Lá, trocou de nome e sobrenome, deixou de ser Arlete para virar Fernanda Montenegro. 

Em 1948, assistiu à remontagem da primeira peça moderna levada à cena carioca: Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, na qual Cacilda Becker contracenava com Maria Della Costa.

Mas o que a impactou mesmo foi a encenação de Hamlet. Protagonista, Sergio Cardoso arrebatou o público e fisgou Fernanda. Ela viu dezoito vezes a peça. Tinha dezenove anos e esse encontro definiu a sua vida. Dois anos depois, estreou como atriz, interpretando Zizi, em Alegres canções na montanha. Meses depois foi contratada para o elenco do teleteatro da recém-inaugurada TV Tupi.

A guinada veio em 1953, na companhia de Henriette Morineau, que a puxou para “dentro do teatro” e a fez ver que “tinha encontrado uma profissão qualificada, disciplinada, consequente”. Nem o casamento e a lua de mel foram motivo para que o casal se ausentasse do palco. A disciplina aprendida com Morineau seria valiosa em sua inserção na cena paulista, nos quatro anos (1954-58) em que nela se apresentaram.

Do Rio, Fernanda levou a “herança forte do teatro português, musical, esperto, cheio de verve, quase sempre feito histrionicamente”, completada por uma experiência rica e diversificada, que mescla o circo, o teatro popular e o início da televisão. Em São Paulo, ela se formou como atriz, ao se deixar impregnar pela contribuição “imensa dos diretores vindos de outra esfera cultural”, que trouxeram para o Brasil “a visão vertical do espetáculo”. Dos diretores estrangeiros com quem trabalhou, o italiano Gianni Ratto foi de longe a influência decisiva. Com ele, aprendeu a desentranhar a interioridade das personagens e descobriu que havia uma “história dentro da arte teatral”. Com ele, firmou-se na cena paulista e ganhou projeção nacional.

Ambos chegaram a São Paulo em 1954. Pouco depois de instalados na capital paulista, o casal recebeu de Sandro Polloni e Maria Della Costa o convite para trabalhar sob a direção de Ratto, recém-chegado ao país. Estrearam com O canto da cotovia, de Anouilh, na inauguração do Teatro Maria Della Costa, durante as comemorações do 4º Centenário da cidade. 

Em 1955, Ratto e Fernanda deram um passo decisivo. Assim como sucedera com o diretor polonês Ziembinski, que logo reconheceu a importância de Nelson Rodrigues e levou à cena Vestido de noiva em 1943, Ratto foi sensível ao que de mais importante estava despontando na dramaturgia paulista: A moratória, de Jorge Andrade. Na condição de diretor e cenógrafo, conferiu verdade cênica ao esforço de objetivação do dramaturgo em relação ao mundo social a que ele pertencia por nascença e recusara por opção. 

A interpretação de Fernanda infundiu verossimilhança máxima à protagonista, Lucília, ao expor sem meios-tons a ruína social. A filha de uma família de elite decadente, ao ser corporificada pela atriz, de família operária, entrou para o rol das personagens marcantes do teatro brasileiro e alçou Fernanda a uma posição mais elevada na hierarquia das grandes intérpretes, cujo topo era ocupado, na época e em São Paulo, por Cacilda Becker. 

O sucesso da peça motivou o convite a Gianni Ratto para integrar o elenco de diretores do Teatro Brasileiro de Comédia, a companhia de maior prestígio no período. Ratto aceitou e levou Fernanda, Fernando e Sérgio Brito. Nos dois anos em que atuaram no TBC, Fernanda participou também do Grande Teatro Tupi, a maior escola de teledramaturgia da TV brasileira, como mostra Cristina Brandão em O Grande Teatro Tupi no Rio de Janeiro. Ao todo, mais de quatrocentas peças foram gravadas entre 1956 e 1962.

Nesse meio-tempo, Fernanda voltou a residir no Rio, para fundar o Teatro dos Sete, junto com Fernando Torres, Ratto, Ítalo Rossi e Sérgio Brito.

Com seus cinco sócios, o grupo levou ao palco a comédia clássica, o drama realista, a tragédia carioca

Com seus cinco sócios e vários atores convidados — dependendo do elenco requerido — a companhia durou sete anos (1959-66), encenou nove espetáculos e construiu um projeto consistente. Como mostra Tânia Brandão, em A máquina de repetir e a fábrica de estrelas, a junção de dramaturgos brasileiros e estrangeiros, clássicos e contemporâneos, permitiu ao grupo levar ao palco a comédia clássica, o drama realista, o boulevard sofisticado, a tragédia carioca. Apoiado pelo público carioca e aplaudido pela critica, o grupo teve cinco montagens premiadas e Fernanda ganhou quatro vezes o prêmio de melhor atriz.

Fernanda não precisou ser dona de companhia para tornar-se a primeira atriz e estrela maior do Teatro dos Sete. Com o fim da companhia, em 1966, ela e Fernando passaram a fazer o que sempre se fez na tradição teatral brasileira, o autoempresariamento. A partir de 1970, seguiram sozinhos, sem elenco fixo. A vida que ela viveu não existiria sem Fernando, na avaliação da atriz. Nas palavras dela, “ele via mais amplo: o Teatro; ela: o Palco”.

Apoiada por ele, Fernanda foi se superando a cada projeto. Ampliou o reconhecimento, a experiência, a popularidade e a unanimidade, de crítica e de público. Acumulou prêmios: 26 no teatro, 34 no cinema, atribuídos aqui e no exterior — o mais comentado, a indicação ao Oscar de melhor atriz em 1998, pela atuação como Dora, em Central do Brasil, de Walter Salles.

Lucília, Dora, Mirandolina, Fedra, dona Doida, Petra von Kant, Charlô, Olga Portela, entre tantas outras personagens que corporificou no palco, no cinema e na televisão, podem ser revistas, com angulações novas, no livro. A decisão de exibir o seu acervo fotográfico passa ao largo do narcisismo que corre solto nesses tempos mortos e nas mídias sociais. Para qualificá-la, recorro ao crítico Decio de Almeida Prado, a grande ausência no livro, imaginando o que ele diria, se estivesse vivo, sobre a fotobiografia de Fernanda. “Primeiro, que a vaidade da artista, a legítima vaidade da artista nada tem a ver com o narcisismo pessoal, com o desejo de se mostrar bela e atraente. (Ela) é de outra natureza. Segundo, que a arte de representar exige tanta imaginação criadora quanto a de escrever. O dramaturgo fornece as palavras. O resto, que na hora da representação é quase tudo, compete ao ator.” 

Quem escreveu esse texto

Heloisa Pontes

É autora de Intérpretes da metrópole: História social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968 (Edusp).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.