Alimentação,

Uma fruta agridoce

Memórias do chef David Chang mostram bastidores apetitosos mas indigestos da gastronomia

01out2021 | Edição #50

David Chang é um chef de cozinha que grita com a equipe, esmurra parede, chuta armário, gesticula enraivecido de faca na mão. Ao mesmo tempo, é um revolucionário da gastronomia que levou nova-iorquinos a se enfileirarem para comer lámen ao som de música alta e em banquetas desconfortáveis bem antes de isso tudo virar modinha — muito por causa dele. É ainda um sujeito depressivo, que se sente deslocado como americano descendente de coreanos e flerta com pensamentos suicidas enquanto aposta todas as fichas nos negócios. Ler o retrato que ele traça de si mesmo em Morder um pêssego é um pouco como se sentar ao balcão e presenciar os ataques de fúria do cozinheiro entre bocadas de receitas de sabores marcantes, únicos, mas de apelo universal.

O Momofuku Noodle Bar, inagurado em 2004 em Nova York, foi só o começo de uma bem-sucedida trajetória baseada no “foda-se” — expresso no tratamento a comensais que “não se encaixavam” nos moldes do cliente ideal; sugerido não muito sutilmente no nome escolhido para a rede de frango frito Fuku (que também remete a momofuku, pêssego da sorte em japonês); adotado quase como filosofia de vida e traduzido em pratos que misturam referências culturais sem medo de ofender convenções. Não confundir com falta de cuidado ou ambição em relação à comida. Pelo contrário. Para Chang, que compara seus pratos a arte e cita Nietzsche e a relação entre o apolíneo e o dionisíaco para descrever suas criações culinárias, é tudo sobre a comida.

Depois do noodle bar vieram casas com outras propostas gastronômicas, em Las Vegas, Los Angeles, Sydney e Toronto, além de uma revista, séries de TV (The Mind of a Chef e Ugly Delicious), prêmios e festivais com comida estranha e chefs esquisitos. Cenas de um deles, na Finlândia: “Circuladores de imersão cozinhando língua de rena na banheira de Bottura; Yoshihiro Narisawa e sua esposa, Yoko, que usava quimono, destrinchando um urso inteiro; eu fazendo dashi de leite de rena para acompanhar o peixe que cozinhava lentamente em uma sauna seca e descobrindo meu chef e sócio Davide Scabin e a esposa deitados nus sob um cobertor de pele de urso”.

Chang narra viagens e bebedeiras, acessos de raiva (e arrependimentos), processos criativos, racismo, traumas de infância (colegas latindo diante da comida preparada pela mãe dele) e o sucesso profissional tido por ele como improvável. “Meus amigos dizem que eu deveria parar com a falsa modéstia, que eu deveria conseguir bancar quem eu sou a esta altura. Mas eu não deveria estar aqui.” Aqui, no caso, é uma espécie de panteão dos chefs-celebridade. Mas pode chamar também de clube do Bolinha (ele chama). “Sou literalmente um dos símbolos do patriarcado na cozinha”, diz. Em 2013, a revista Time colocou na capa uma foto de Chang, René Redzepi e Alex Atala sob a manchete “Deuses da comida”. “Não questionei se alguma mulher ia ser incluída na lista de chefs mais importantes do mundo que seria publicada naquela edição porque, francamente, nem pensei naquilo”, conta ele, que faz no livro alguns mea-culpa, tanto pela questão feminina como pela forma como já tratou funcionários em geral — “Odeio que a raiva tenha se tornado meu cartão de visita”.

Chang compara seus pratos a arte e cita Nietzsche para descrever suas criações

Em outros momentos, congratula -se pelos resultados alcançados pelo time: “Meu maior talento é criar ambientes em que as pessoas possam crescer e ser bem-sucedidas”. Uma ex-funcionária não ficou impressionada com o esforço. No site Eater, ela escreveu uma crítica dizendo que o relato soa distorcido e extremamente autorreferente mesmo para um livro de memórias, e que “reconhecer um problema não necessariamente começa a consertá-lo”. Chang diz que quer mudar, e mudar a cultura de seus restaurantes. Escreve aos 42 anos, com um filho pequeno, e afirma temer a “inevitável queda do topo”. Avalia que a comida se tornou mais democrática, o que dificulta para um chef se destacar como uma figura singular como aqueles do grupinho do panteão. “É claro que talvez isso seja apenas o que digo a mim mesmo porque não sei onde acontecem as festinhas agora.”

Quem escreveu esse texto

Mariana Weber

Jornalista, escreveu Cozinha de vó (Super Interessante).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.