Alimentação,

Saudação à mandioca

O chef Alex Atala lança livro sobre o alimento mais versátil do Brasil e fala sobre o futuro gastronômico do país: “É bonito!”

17fev2022 | Edição #55

“Mais do que a desgastada camisa amarela da seleção canarinha, a mandioca seja talvez a maior unanimidade nacional”, escreve o arqueólogo Eduardo Góes Neves em um dos artigos que integram o calhamaço de mais de quatrocentas páginas organizado por Alex Atala sobre aquele que o chef considera o principal ingrediente da tradição alimentar brasileira, símbolo de nossa ancestralidade e responsável por “encher a barriga de quem trabalhou para nos tornar nação”.

Em Mandioca: Manihot utilissima Pohl, aprendemos que o tubérculo que ganha o nome de mandioca, macaxeira, aipim, castelinha, maniveira, uaipi e outras variações se transfaz em farinhas, gomas, polvilhos, cauins e tucupis do Oiapoque ao Chuí, dos churrascos gaúchos aos caxiris amazônicos. Com a participação de pesquisadores, cronistas, cozinheiros, indigenistas e fotógrafos, o livro traça um panorama histórico do alimento, desde os costumes indígenas antes da chegada dos portugueses, destacando as formas de plantio, cultivo, processamento e preparo, até a recente resistência à industrialização.

A publicação reúne também 157 fotografias, um glossário e diversas receitas de alguns dos mais celebrados chefs em atividade no Brasil — como Helena Rizzo, Claude Troisgros e Rodrigo Oliveira —, além de estudos feitos por Atala e sua equipe para transformar a mandioca em iguarias inventivas de seus cardápios.

A mandioca já crescia em nosso solo no período pré-cabralino e continua em todas as mesas do Brasil, independentemente da camada social

“Nós fizemos vários experimentos e evoluções que podem ser entendidos como inovação, mas fico sem jeito de dizer que fomos nós que fizemos”, diz Atala em entrevista a esta reportagem. “Acho que é um trabalho em conjunto: aprendemos técnicas de cozinha com outras pessoas, com populações tradicionais e com europeus e aplicamos em nossos ingredientes.”

Força feminina

Ganha destaque no livro o papel das mulheres no cultivo da mandioca e sua organização de trabalho em comunidade. Antropóloga especialista em etnologia indígena, Flora Dias Cabalzar narra que em território do grupo indígena Tuyuka, no Amazonas, mães provedoras costumam ter de três a cinco roças e trabalham juntas, revezando-se, muitas vezes levando bebês de colo na tipoia e crianças menores para ajudar. O antropólogo Beto Ricardo também destaca o papel feminino do cultivo em um texto que acompanha a rotina de uma mulher da comunidade Baniwa, no extremo noroeste do país, na fronteira com a Colômbia.

Atala conta que, no caso do povo Baniwa, as garotas, ao se casarem, recebem da mãe estacas de mandioca para fazer as suas plantações. Mesmo se receberem uma da pior qualidade, é aquela que plantarão para o resto da vida e também a que repassarão às filhas, pois entendem que é a espécie que pode salvar a comunidade quando houver uma seca extrema ou um período difícil.

“Nossa cultura, de modo geral, busca sempre pela mandioca que cozinha mais rapidamente, que cresce mais rapidamente, que é a mais macia, que reúne todas as virtudes. Nas culturas tradicionais, veremos a diversidade de mandioca sempre sendo cultivada”, diz Atala. “Esses manejos de diversidade no seu local natural são fundamentais para a nossa sociobiodiversidade.”

Segundo Atala, a mandioca é um ingrediente que já crescia em nosso solo no período pré-cabralino e segue presente em todas as mesas do Brasil, independentemente da camada social. Vale pensar por que, então, o alimento entra na história do país não como uma iguaria, mas relegado a segundo plano, visto como comida “de pobre”, que serve apenas para dar sustância e saciar. “É impossível ignorar como, de norte a sul, a farinha de mandioca perdurou, por excelência, como alimento de encher a barriga de quem trabalhou para nos tornar nação, sobretudo daqueles que não tinham acesso à carne e ao feijão”, escreve ele na introdução a Mandioca: Manihot utilissima Pohl.

A visão preconceituosa em relação à mandioca não é novidade. Escrito no século 17, um trecho de Diálogos das grandezas do Brasil, de autoria do senhor de engenho Ambrósio Fernandes Brandão, já dava a letra: “Quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa que lhe opõem de mau é dizerem que nele se come farinha de pau”. É a visão, também, de Gilberto Freyre em seu clássico Casa-grande e senzala. O desdém não é exclusividade nacional, como observa a antropóloga Marina Kahn em Mandioca: “Nos países ricos, entra disfarçada. Na França, nosso sagu feito da fécula de mandioca chama-se perles du Japon (pérolas do Japão), o que talvez lhe atribua mais valor… Será que é isso mesmo?”.

O fato de a mandioca ter sido deixada em segundo plano na caracterização da nossa tradição alimentar tem raiz em um traço cultural ainda muito presente no Brasil, segundo Atala: a admiração, o respeito e a apreciação pelo que vem de fora. “Muitas vezes há quase um esquecimento do que é local. Vejo isso muito mais como um traço da personalidade brasileira do que como qualquer outra forma de expressão”, comenta o chef, que observa que a colonização logo se ocupou de trazer a farinha de trigo para “dignificar” a mesa do brasileiro.

Ele defende, no entanto, que a gastronomia nacional passa por um momento fértil e faz uma analogia com o processo de fazer pão: “Os ingredientes são simples e a gente não pode deixar de considerar o tempo de maturação, desenvolvimento e fermentação. Acho que a mandioca passa por isso, a cozinha brasileira passa por isso. Vamos dar tempo ao tempo e as coisas acontecerão. Eu sou um eterno otimista”.

‘Não consigo dizer que a mandioca é mais do que os outros ingredientes, mas consigo dizer, sim, que ela é um prisma de tudo o que é o Brasil’

A visão positiva se estende à situação do mercado nacional em um cenário pós-pandêmico. “A pandemia arrancou o sonho de muita gente, mas o Brasil tem uma força gigantesca, e muita gente sobreviveu e vai sobreviver”, diz. “Acho que o delivery veio para ficar, mas os restaurantes vão continuar. Vamos ter que aprender a gerir melhor essas instabilidades econômicas, em que insumos e gás, por exemplo, disparam de um dia para o outro e nós ficamos reféns, sem conseguir passar isso para o cardápio. Mas acredito no segmento: somos resilientes e, apesar das intempéries, o futuro gastronômico do Brasil é positivo, é assertivo, é bonito!

Fundamentalmente brasileiro

Conhecido ao redor do mundo pelo uso criativo dos ingredientes brasileiros, Atala foi eleito no ano passado o oitavo melhor chef do mundo pelo The Best Chef Awards, e seu restaurante D.O.M., que gerencia há mais de vinte anos, já foi considerado o sexto melhor do planeta e o melhor da América do Sul pela World’s 50 Best Restaurants. “Eu sempre brinco que a fama é como vinho. Ela encanta, fascina, tem um bom cheiro, um bom sabor, mas não beba muito porque pode te dar dor de cabeça”, brinca ele, para quem “nunca foi pesado ocupar uma posição de destaque na gastronomia”.

Parte do conhecimento que contribui para seu sucesso vem dos livros — ele se diz leitor compulsivo de tudo o que diz respeito a comida, “até rótulos de embalagens”. Nos últimos anos, conta que vem se dedicando a títulos que versam sobre saberes tradicionais e aspectos culturais da alimentação. “Em vários lugares do mundo há chefs com trabalhos interessantes, como na África e na Mongólia, onde encontrei coisas que não esperava. Então vou sempre ler chefs. Mas vou continuar também como um leitor que pesquisa o lado antropológico, o lado científico que o ingrediente e as culturas em torno do ingrediente têm.”

Paulista de ascendência palestina, ele diz ser fascinado também pela culinária e pelos costumes do mundo árabe, mas faz questão de deixar claro: “Eu me considero fundamentalmente brasileiro e vou continuar colocando meu sonho, minha força e minha maior energia nesse delicioso universo chamado Brasil”. Um dos projetos a que dedica esses esforços é o Instituto Atá, criado para trazer luz à biodiversidade brasileira e contribuir para que pequenos produtores, artesãos e comunidades se estruturem de maneira mais economicamente sustentável. Entre as iniciativas mais recentes está a criação de um viveiro de multiplicação de abelhas nativas sem ferrão no interior de São Paulo.

Quando perguntado sobre que ingredientes não faltam em sua despensa, o chef se declara apaixonado por azeite de oliva e ervas variadas — mas, é claro, demonstra um carinho especial pelo ingrediente-estrela de seu novo livro. “A pergunta é ótima e, obviamente, a resposta mais cômoda e que não deixa de ser verdade é a farinha de mandioca”, diz ele. “Eu sou um apaixonado pela mandioca. Não consigo dizer que ela é mais do que os outros ingredientes, mas consigo dizer, sim, que ela é um prisma de tudo o que é o Brasil.”

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.