Alimentação,

Dominando a arte dos franceses

Ex-editor na ‘New Yorker’ e da ‘Granta’ relata aventuras na cozinha mais rigorosa do mundo

20dez2021 | Edição #53

Foi um esbarrão (quase) acidental na estação ferroviária de Washington que mudou os rumos da vida de Bill Buford — consequentemente também de sua mulher, a jornalista Jessica Green, e de seus dois filhos gêmeos que, naquele fim de tarde de outono, ele nem sabia que já estavam a caminho. Ali, quando os dois se trombaram para entrar no trem e ficaram tão próximos “que poderiam se beijar”, o reconhecido escritor e editor norte-americano e o famoso chef francês Michel Richard criaram uma relação tão próxima que influenciaria Buford a se mudar meses depois para Lyon, na França — “a verdadeira capital mundial da gastronomia” —, onde passaria imprevistos sete anos. 

‘A cozinha francesa criou os protocolos e passou a ter as respostas para todas as perguntas que você faz sobre cozimentos e técnicas’, diz Bill Buford

Buford já tinha planos de abandonar a rotina do jornalismo — dedicava-se como editor de ficção da prestigiada New Yorker — e convencer Green, então editora da Harper’s Bazaar, a fazer o mesmo. Queria voltar por um tempo à cozinha, ambiente no qual se sentiu tão à vontade quando, anos antes, tinha sido aprendiz do chef Mario Batali, no Babbo, seu premiado restaurante em Nova York, e depois do macelaio toscano Dario Cecchini na região de Chianti, onde viveu uma temporada para aprender a desossar porcos inteiros e fazer linguiças com precisão de artesão. Essas primeiras incursões pela culinária renderam Calor, um excelente livro pessoal e de prosa estimulante, que deu a ele muitos prêmios e garantiu traduções por todo o mundo (como a versão brasileira, lançada pela Companhia das Letras em 2007). 

A experiência de cozinhar tornou Buford um cozinheiro caseiro com a obsessão técnica de um profissional. Aprender os preceitos da cuisine française — a mais rigorosa do mundo — era, portanto, um passo óbvio. Que, na sua ingenuidade, seria possível dominar na ampla cozinha de Richard ou de qualquer outro chef francês radicado nos Estados Unidos disposto a dar-lhe uma oportunidade. Mas todos os chefs com quem conversou foram enfáticos: um bom cozinheiro precisa ser “treinado na França”. Decidido a seguir os conselhos, lá foi ele, em 2008, com mulher, filhos e uma vida empacotada no bagageiro de um avião para a cidade do leste francês. “Eu já tinha vivido essa experiência na Itália, conhecia o caminho. Mas dessa vez me senti angustiado; tinha de ser o pai responsável por dois filhos”, conta ele à Quatro Cinco Um

Embora a cozinha francesa “hoje esteja fora de moda”, como ele diz, tendo perdido seu monopólio global com o advento da vanguarda da gastronomia espanhola e, mais recentemente, até mesmo do movimento da culinária nórdica, chegar às cozinhas lionesas era “quase como entrar em uma igreja”. “A cozinha francesa criou os protocolos e passou a ter as respostas para todas as perguntas que você faz sobre cozimentos e técnicas”, afirma. Algo como se eles tivessem fundado uma espécie de Antigo Testamento da cozinha. “As bases todas estavam ali e eu senti que também precisava estar”, conta.

Ele estava na França para aprender a ser um cozinheiro “de verdade” e escrever um livro sobre isso. “Mas se a princípio esse já era, por si só, um projeto ridiculamente ambicioso, quando cheguei a Lyon senti que precisava ir a fundo. Queríamos fazer parte desse lugar, ser aceitos como lioneses”, diz. Cinco anos depois, decidiram voltar para os Estados Unidos porque se tornaram tão locais que os filhos já liam melhor em francês que em inglês, e o que era para ser um trabalho passou a ser “a vida cotidiana”. “Já estávamos ficando sem dinheiro e se eu não saísse de lá nunca terminaria o livro”, conta, rindo.

No título original, Dirt (sujeira), o livro faz um tenaz trocadilho que funciona como oposição ao rigor que Buford precisou desenvolver para tentar entender o segredo da culinária francesa. Em português, perde força na literalidade do período da vida que Buford e a família passaram em Lyon — no caso dele, em madrugadas na cozinha de um metódico padeiro (o melhor personagem do livro) e também sendo ofendido e intimidado pelos cozinheiros do La Mère Brazier, um importante templo da cozinha tradicional da cidade. 
Seguindo o rigor da cozinha sobre a qual se debruça, a narrativa do livro é apurada, precisa: seja ao explicar os processos matemáticos da temperatura de fermentação da massa do pão aos muitos detalhes de como desmontar uma carcaça de porco.

Nabos, caranguejos e linguiças são tratados com a mesma atenção quanto a geografia lionesa, a leitura perspicaz que ele faz dos habitantes da cidade e sua tese de que muito do que se acredita ser cozinha francesa teve origem na verdade em bases italianas — uma blasfêmia que é refutada pela maioria dos franceses para os quais a expõe.

Algo que ele já tinha provado em seus trabalhos anteriores — não apenas em Calor, mas sobretudo em Entre os vândalos, um livro-reportagem venerado sobre o hooliganismo no futebol inglês, em que ele se infiltra no mundo dos agressores para contar a história por dentro. Nascido na Louisiana e criado na Califórnia, foi na Inglaterra que sua carreira ficou mais proeminente como editor da revista literária Granta — sua escola para aprender a escrever, como diz. 

Na última década, o mercado editorial voltado à gastronomia mudou muito, passando dos livros de receitas para os de memórias e ensaios

Embora seja o seu personagem principal — afinal, é sua própria história que está nas 544 páginas —, Buford explica que se sente mais como um narrador que como protagonista: “É confortável escrever em primeira pessoa porque não escrevo sobre mim, o livro ganha muito quando eu conto sobre as pessoas que encontro, com quem me relaciono”, pontua. É o caso de Bob, o tal padeiro e vizinho com quem aprende (quase) tudo sobre panificação. Tal qual seu perfilado, ele é um escritor metódico: nada é contado sem detalhe “Deve ser por isso que comecei a escrever o livro em 2008 e só terminei em 2020”, brinca. 

Amadurecimento

Nesse hiato, o próprio mercado editorial voltado à gastronomia mudou muito, passando dos livros de receitas e de chefs para os de memórias e ensaios que hoje dominam as prateleiras. “Quando estava levando muito tempo para terminar Calor, lembro-me de ter uma conversa com meu editor de que talvez eu tivesse perdido o momento, porque essa coisa de falar de comida estava ficando muito, muito grande”, diz. “Agora, com o novo livro, sinto que o mercado ficou ainda maior, como um mecanismo de transmissão maior. Há boas coisas, há muitas coisas más, mas acho que houve um amadurecimento.” Para o escritor, a comida ganhou mais respeito como tema. Prova disso é que ele próprio começou uma coluna sobre cozinha francesa na New Yorker, por exemplo, revista que hoje possui até uma crítica gastronômica. “Como o jazz ou como a moda, a gastronomia virou parte da nossa cultura. As pessoas dizem que a cozinha se tornou um grande tema; eu acho que ela sempre foi”.

Sobre a contribuição de Cinco anos em Lyon ao mercado, ele se diz contente com o resultado do livro — que também acaba de ser traduzido para o francês (“o que me causa um orgulho e muita ansiedade”) e deve virar uma série de televisão, “já em escala adiantada”, como deixa escapar. “Minha ambição era fazer o que me propus: me tornar um melhor cozinheiro e investigar as origens e segredos da cozinha francesa. Mas a experiência foi bem maior e isso tornou tudo mais desafiador”, afirma. 

Se fosse se debruçar sobre uma nova cozinha, para uma espécie de trilogia (ou tetralogia, quem sabe?) gastronômica, Buford diz que tem uma curiosidade especial pela gastronomia espanhola, principalmente galega, fruto de uma viagem que fez à região quando era jovem e que nunca lhe saiu de cabeça. “Mas me prometi que, se for escrever qualquer coisa de agora em diante, será algo menor, apenas com uma história”, assegura. Ou até que um novo esbarrão o faça mudar novamente os rumos.

Quem escreveu esse texto

Rafael Tonon

Escreveu As revoluções da comida: o impacto de nossas escolhas à mesa (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.