Literatura japonesa,

Caleidoscópio de memórias

Romance de Sanaka Hiiragi joga luz sobre as imagens que queremos reter e convida a refletir sobre o que faz uma vida memorável

13jun2024 • Atualizado em: 27jun2024 | Edição #83
A escritora Sanaka Hiiragi (Divulgação)

Em Dias perfeitos, filme de Wim Wenders vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional este ano, o protagonista é um homem silencioso e contemplativo. O personagem vivido por Koji Yakusho é zelador de banheiros públicos em Tóquio e leva uma vida simples e modesta. Os livros, a música e a fotografia são parte importante de seus dias repetitivos e, se há surpresa em sua rotina, ela vem do que a observação atenta que ele pratica pode revelar.

As imagens que o homem constrói, em vigília e em sonho, entregam ao espectador uma espécie de caleidoscópio delicado, com espaço para os movimentos de figuras idiossincráticas da cidade, para as sombras bonitas e dançantes que se formam nas paredes e para os raios de sol que atravessam as folhas das árvores — que têm até nome em japonês, komorebi. Uma das belezas do longa é nos fazer pensar sobre o que escolhemos prestar atenção em nossas experiências, os detalhes que serão incluídos no carrossel de memórias que registramos constantemente. 

É esse carrossel que guia os acontecimentos de A lanterna das memórias perdidas, novo romance de Sanaka Hiiragi. No estúdio fotográfico do protagonista Hirasaka, são fabricados os filmes assistidos quando alguém está cara a cara com a morte, e que ele chama de caleidoscópio. Prestes a morrer, os visitantes do estúdio passam por essa antessala do além em seus últimos instantes de vida para escolher as fotos que gostariam de revisitar: “Um rito de passagem que nos proporciona a oportunidade de contemplar pela última vez nossa vida”.

Hirasaka é um homem jovem, sem nenhum traço marcante, com um rosto calmo “típico de pastor ou padre”, sempre vestido com impecáveis camisas sociais. No estúdio em que trabalha diligentemente, há um relógio de parede que está parado, um lembrete do tempo que não importa mais.

Ao chegar ao local, os visitantes já estão livres de dificuldades e incômodos terrenos, sendo preparados para uma branda transição. Ainda que sejam preservadas as consequências biológicas do movimento ou do trabalho do corpo, como o suor quando há esforço, bengalas não são mais necessárias, óculos são dispensáveis e remédios para dor não têm utilidade.

Travessia registrada

Hirasaka leva o nome de uma mitológica ladeira que liga o mundo dos vivos ao dos mortos, mas dissipa hipóteses dos visitantes e explica que não é nenhum tipo de divindade ou de santo. Ele apenas age como um guia, a postos para que ninguém faça essa travessia diante do choque profundo ou do desespero que alguns podem enfrentar ao receber a notícia de que morreram.

Os recém-chegados recebem uma missão: a de escolher, em meio a álbuns e mais álbuns de fotografia, as imagens que representam cada ano de suas vidas -— uma para cada ano de existência. Hirasaka fornece os arquivos e o visitante faz a seleção, tomando o tempo que precisar para examinar todas as imagens. “Recolher lembranças esquecidas e juntá-las para construir o caleidoscópio” é, afinal, “um trabalho digno de ser qualificado como o último de uma vida”.

Ao escolherem retratos para a posteridade, os visitantes respondem à pergunta: o que é a vida?

Ao escolherem os retratos para a posteridade, os visitantes estão também respondendo a uma das perguntas fundamentais: o que é a vida? E que ocasiões, encontros e detalhes dão conta de representar toda a nossa bagagem existencial? Não à toa, quem passa pelo estúdio se vê narrando a própria história. Ao contar episódios do passado a Hirasaka, ouvinte paciente e atencioso, cada um vai reorganizando o que vale ser lembrado.

São momentos em que o narrador em terceira pessoa, que já era interrompido pelos pensamentos intrusivos dos visitantes, empresta a narração integralmente a eles. Em primeira pessoa, os personagens repassam em minúcia passagens da própria trajetória. Apesar do monólogo, as referências a perguntas de um interlocutor nos indica que Hirasaka continua ali, acompanhando a narração como um analista zeloso.

Contra a efemeridade

Os serviços de Hirasaka extrapolam o estúdio. Quando os visitantes se deparam com uma foto importante que se apagou parcialmente, o jovem oferece a oportunidade de uma viagem ao passado para refazer o retrato. Volta-se ao dia do acontecimento e espera-se o momento exato para que ele seja registrado de novo com uma câmera fotográfica. Às margens das fotografias são oferecidas ao leitor pistas sobre o papel das mulheres, o universo marginal e os impulsos que movem os japoneses hoje. Nos passeios, conhecemos mais da história do Japão em décadas mais ou menos recentes.

Hatsue, professora de 92 anos, por exemplo, revisita o país no pós-guerra, com empregos escassos e mudanças sociais em curso: as mulheres passando a trabalhar fora de casa, as tarefas de cuidado sendo redistribuídas dentro e fora das famílias e seu ofício como educadora de crianças na primeira infância se tornando essencial. Além dela, o leitor conhece Mitsuru, uma criança, e Waniguchi, um integrante da Yakuza de 47 anos. Hirasaka está igualmente aberto a qualquer história e evita conhecer a ficha dos visitantes antes de chegarem, uma tentativa de prevenir preconceitos, ideias limitadas sobre o outro.

Ao avançar na leitura, fica claro o motivo para Hirasaka ser o cuidador do estúdio fotográfico. O caloroso anfitrião está em busca de respostas sobre si. Como seus hóspedes fugazes que lutam contra a efemeridade, ele é igualmente desejoso de ter sido memorável, mas não tem certeza se foi esse o caso e tem esperança de que algum convidado lhe traga respostas.

Todos os que passam pelo estúdio de Hirasaka têm algo em comum: o desejo de encontrar a lanterna que ilumina as memórias perdidas. É a atenção às sombras dançantes ou ao komorebi que vai nos garantir um memorial perene, ou contemplar não garante que estejamos fincados no presente? Será que o personagem do filme de Wim Wenders, com sua rotina nutrida de contemplação, estaria mais consciente da própria vida? Ou mesmo ele, que vê o que há de extraordinário na ordinariedade, também seria pego de surpresa pelos passos que deu ao se deparar com a missão de montar seu caleidoscópio final?

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Gabriela Mayer

Jornalista e crítica literária, criou o podcast Põe na Estante.

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024.