Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: maio

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

24jul2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

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Zeitgeist

O Tempo rasteja, engatinha, fica de pé, anda, corre, toma impulso e, finalmente, voa. Recolhidos no quarto, observam da janela a lentidão do Tempo a caminhar entre as praças, entre os prédios, pelas ruas do quarteirão. Sem pressa, na medida em que perscruta tudo à volta, Ele aborrece os observadores enclausurados que lamentam o ano adiado que estão perdendo. Temendo dias piores, os espectadores da cena, em casa, sonham com um novo Tempo, de uma nova ordem, que surgirá no horizonte como um espírito novo.

Enquanto os desejos de que esse Tempo conclua seu ciclo, voando alto,
alcançam o pensamento, os observadores voltam os olhares para dentro de si e notam que falta-lhes força à alma. Devido a prisão da rotina, não conseguiram perceber de imediato a instalação sorrateira do enfraquecimento interior. Para se recuperar é necessário colher e se alimentar dos frutos de um lugar surpreendente: a arte.

Desde então, passaram a devorar, de maneira fervorosa e insaciável, as mais
variadas formas de expressão dos movimentos culturais. Poesias, narrativas ficcionais, esculturas, pinturas e músicas passaram a se tornar um dos bens de primeira necessidade humana. O fortalecimento do âmago transfigurou-se em auxílio para encarar a realidade emoldurada na janela de casa de modo mais resoluto, paciente. 

Para alguns, o meio encontrado de alimentar a mente é considerado uma fuga da realidade, uma alienação, ao arrastar o indivíduo para dentro das páginas de um livro. No entanto, para outros, é a única solução viável para enfrentar o Tempo que insiste, perigosamente, em andar, vagaroso, lá fora.

A premissa maior, que corre insistentemente no labirinto que é a mente dos nossos observadores, é a transmutação de perspectiva ao olhar o Tempo que passa. Ainda é possível aproveitá-lo. Se alimentar, comer e beber, tirar o que há de melhor. Dele quando aliado ao prazer do conhecimento e da arte. Neste instante, na janela do lar, já não se queixam do Tempo adiado. Se preparam para o novo que está por vir.

Ana Beatriz de Souza Pereira (22/5/2020, Natal, RN)  

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Crônica de uma das 1.179 mortes anunciadas

No dia em que a Covid-19 o mataria, Sebastião Oliveira levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o ar que lhe faltava nos pulmões. Não conseguia dormir direito, apesar da vontade de só ficar deitado. Não encontrava posição na cama, acordara com a roupa grudada de suor e levantar os braços para tirar a camisa era um esforço excessivo. Ele sabia que não era mais só uma fantasia.

Nos primeiros sintomas, dez dias atrás, Sebastião não dera muito atenção ao mal-estar que sentia. Ele tinha histórico de atleta, na juventude até tentou carreira de judoca, mas por falta de patrocínio abandonou o esporte. Além disso, Sebastião era ciclista, ou
melhor, entregador, e nessa pandemia os serviços tinham aumentado consideravelmente.

Teve dias que pedalou mais de 80 quilômetros pela cidade. Não podia parar de trabalhar só porque o corpo todo doía. O dinheiro não era muito, só que faria falta em casa. A família tinha se cadastrado para receber o auxílio emergencial de R$ 600. Na primeira rodada não foram contemplados, porém se recadastraram e agora aguardavam, junto com os 8,3 milhões de novos beneficiários, o pagamento.

Sebastião até que tentou ocultar as tosses dos colegas de trabalho e da família, mesmo sabendo do risco de contaminar as outras pessoas. Negava que poderia estar com o tal do coronavírus. Era um exagero da mídia para derrubar o presidente. O clima estava esfriando e era comum, nessa época do ano, as pessoas terem gripezinhas. A economia não podia parar.

Quando começou a ter febre, não deu mais para esconder e procurou o postinho de saúde do bairro. A enfermeira o classificou como suspeito de Covid-19 e o encaminhou para fazer exame. O resultado saía em alguns dias. Enquanto isso ele devia ficar em isolamento em casa, mas como? Ele, a esposa e os filhos moravam num barracão pequeno. O casal e o filho mais novo dormiam juntos no único quarto da casa. O mais velho, na sala. A esposa garantiu que dariam um jeito e passou a cuidar de Sebastião, isolado no quarto. Os vizinhos, ainda que temerários, foram solidários.

O quadro clínico de Sebastião só piorou. Respirar estava cada vez mais difícil e, na última madrugada, não pode mais aguentar: foi para o hospital. O laboratório ainda não tinha entregado o resultado do exame, não havia leitos disponíveis, colocaram-no em uma lista de espera. Ele passou o dia aguardando uma vaga hospitalar em vão. Não teve a chance de tomar cloroquina. Com as costas doendo de tanto ficar sentado num banco frio de recepção, decidiu ir embora. Fez o trajeto todo de máscara e cabeça baixa.

Sentia medo, cansaço, dores, falta de ar e arrependimento. Recebeu uma mensagem de celular avisando que a primeira parcela do auxílio emergencial havia sido paga. Finalmente, uma boa notícia! Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de bruços na cozinha, virando apenas uma estatística no dia que o Brasil registrou 1.179 mortes.

Nayara Noronha (20/5/2020, São Paulo, SP)

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Quartoentena

“Nem o prego aguenta mais o peso desse relógio”, reza a música do Arnaldo Antunes. A personagem angustiada, que aguarda pelo seu amor, vê os ponteiros rodarem em marcha lenta, num tic tac aflitivo, num tempo de peso dois. O tempo de quem espera. Esse é o retrato de muita gente hoje: o poeta diante do incerto, agoniado, ansiando a chegada da boa nova; a cura.

Limito-me a um cômodo, tremendo incômodo pra quem tem olhos nos pés e adora uma caça às pequenezas que a vida lá fora oferece. Mas bem disse Eliane Brum, simplesmente existir virou ameaça. Temos de nos guardar da rua, do tato, do contato físico e via de regra adotar a tela, como ponte para o outro, e também escudo de nocivos perdigotos.

O que fazer? O não fazer.

É preciso ficar. Dentro.

Vi na Tevê, no Insta, no Face, e ouvi da vizinha: que momento oportuno pra organizar a bagunça da casa. Parece uma boa estratégia àqueles que – como eu – em certa medida precisam ter algum controle numa situação desafiadora. Aderi.

Comecei pelos livros. Bela Gil e Gabo na mesma prateleira soaram a sirene. Não orna. Decretei estado de calamidade pública; ninguém atravessa a fronteira da porta até que a ordem se estabeleça e a alergia ao pó não ameace o grupo de risco.

Coloquei todos os títulos no chão e juntei duas pilhas dos não lidos, ou lidos e desgostados, para doação e feng shui. Antes de guardá-los na sacola, uma espanada de afastar poeira. Ou seria aquilo as próprias palavras – que cansadas de me esperar – saltaram das páginas?

Despues da dança dos livros e uma esquematização que sensibilizaria Alexandre Martins Fontes, dono da livraria onde deixo boa parte dos meus honorários e peco pela literatura todos os meses, separei os autores por nacionalidade. Um toque de toc.

Latinoamericanos de um lado, nacionais de outro, os de arte mais embaixo, duas prateleiras para os de religião, teologia e espiritualidade. Apesar da metafísica, eles também precisam de um amparo da matéria para recostarem.

Falando nisso, na espiritualidade, desde que adotei a “polifé”, um caldo de hinduísmo com notas de Kardec e pastor Henrique Vieira, guardava um desejo por um altarzinho. Daquele pequeno, que passa despercebido aos distraídos, mas porto seguro de quem o tem, sabe?

“Momento oportuno para organizar a bagunça…”, soprou a vizinha, na cachola.
Decidi brincar de tetris e reconfigurei tudo, reservando um cantinho para o auspicioso altar. Cama no centro, escrivaninha perto da porta e à direita, como os bons que ficam à direita do pai, ele: uma pequena mesa rústica, toalhinha, Cristo iogue, Yogananda, vela, japamala e incenso.

À frente, uma almofada para os pecadores. Engraçado, tudo ao redor do altar parece orbitar numa outra frequência. Não bastasse o meio confinamento, decidi aumentar uma casca. Feito matrioska, que guarda nela outra matrioska, um cadinho menor, eu também tinha feito do quarto uma boneca russa. O altar é o espaço dentro do espaço. A ilha onde tenho atracado nesses dias de mar revolto.

Como eu precisava desse canto-encanto, um confessionário do silêncio! Sabe que já nem anseio tanto pelo retorno à vida nas ruas? Aqui dentro, dentro do dentro, tenho encontrado o que preciso. Mudei, Arnaldo.Troquei o prego por parafuso e me acertei no tempo. A mim não me pesa o relógio. Descobri que quem espera também se cura.

Carolina Conti (15/5/2020, São Paulo, SP)

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Os dois lados da quarentena

Lado ruim: Ficar longe das pessoas queridas, não poder abraçar e estar junto das filhas e netas, não poder encontrar com os amigos músicos e fazer um som, a parada do trabalho voluntário no hospital, não poder tomar um cafezinho com os amigos. O medo permanente de contaminação. A sucessão de notícias tristes, a pandemia se alastrando por todo lado. A tragédia do desgoverno e dos anti-ministros…

Lado bom: O home office, mais tempo para a leitura e para a escrita, descobertas musicais, tomar posse da casa, as pequenas coisas, cuidar do jardim, organizar a biblioteca, falar todos os dias com a mãe, reconectar velhos amigos, o fortalecimento da relação com a amada, a garra da equipe da empresa atravessando a crise…

 Balanço: Não ignorar a parte vazia, mas olhar mais para a parte cheia do copo e procurar acrescentar algumas gotas. Vive-se melhor assim!

C. Fernando Castro (30/5/2020, São Paulo, SP)

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Um poema

A dor da gente
Um nó no peito em dó maior.
Depois os exames. Não tem mais jeito.
Cenário inesperado…
O sono profundo que enterra. Encerra.
Não há despedidas. Solidão.
Desnorteada. Sem velórios.
Dor de verdade não cabe num noticiário.
Não cabem nos jornais, os choros, gritos, a soma certa.
A estrada infinita do estranho mundo.
Valas. Não há vagas. Há marcas. Rimas perdidas.
Tudo vai passar? A dor de toda a gente, não.
O governo. O desmazelo com o povo.
Nada. O povo é nada.
A dor do mundo não cabe numa poesia.
E daí?
Daí o espasmo.
Nos próximos domingos
e todos os dias…
Quantas mães mortas?
Quantas mães arrumando o quarto…
Do filho que já morreu.
Tudo isso eu rasgo em lágrimas.
Eu vou silenciar o presidente.
Deixar de seguir o presidente.
Bloquear o presidente.
E daí? Eu me entrego ao acalanto de um amor:
_ Mãe, perdão. Ele não sabe nada de dor. A gente sabe.

Sandra Modesto (22/5/2020, Ituiutaba, MG)

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Um bom dia para nascer

Como um pobre coitado que está a limpar as folhas secas que estão na calçada, com nada mais que um rastelo, nada adianta. Vem o vento e bagunça tudo. Homem, cabelos, folhas e rastelo. Estou diante do espelho daquele banheiro com louças verdes. Me encaro, mordo os lábios, torço a cara, não a ponto de ver o Diabo, pelo contrário, piso em algodão açucarado, estou a derreter ali.

Saio do banheiro em direção ao quarto como vim ao mundo, no meio da madrugada, como um vulto, me confundo com as sombras da noite. Uma virada em V. Suspiro já aliviado enquanto não enxergo nada; o instinto me conduz ao leito quente, suado, com cheiros e outras tantas palavras que repousam naquele colchão no chão.

Tudo incrivelmente ganha um sentido nebuloso. Como se a cigarra da Alice soltasse um copioso jato de vapor por todo aquele quarto, todo aquele apartamento, todo o centro da cidade. Os dias de verão são úmidos e nebulosos como aquele quarto naquele estado, nós dois ali no chão em meio a palavras, meias, cuecas, comprimidos para alergias e anti-inflamatórios, livros da Penguin Books e jornais amarelados, necessaires com pílulas para hipocondria, muitos copos de água, todos vazios e um abajur vermelho com luz amarela.

Respirava fundo tentando não fazer barulho, estávamos meio dormindo, meio acordados. Ia me encaracolando ali onde o silêncio reinava, mas em minha cabeça um turbilhão de vozes com perguntas lavrava esta selva tropical que pensa em flores e frutos proibidos.

Lá atrás no espelho ri. Ri porque pensei em todas as palavras jogadas ali no colchão. Nas que não precisavam ser pegas com a mão e enfiadas na boca como uma pílula. Pois já estava fazendo efeito.

E aquilo ia surgindo como a luz natural que entra no quarto pela manhã. Quando não há jeito se não ser desgarrado pelo despertador, mas, no fundo, pelo mundo.

Felizmente o mundo dá tréguas aos domingos, mesmo que se desgarrar seja necessário: macaqueamos em outros galhos, voltando à toca, à noite.

Sibilos, vozes, forro, cuícas, garrafas sendo atiradas no asfalto, gargalhadas sendo ouvidas de quem habita fora daquele quarto, daquele apartamento, do centro da cidade.

Estamos de novo no escuro. Na pira dos acrobatas, coelhos saindo e entrando em cartolas fictícias e o faquir engolindo com maestria um ou outro canivete. "Pum, pum". Não há plateia para aplaudir silenciosamente. O soslaio denuncia. Dai vem uma série de perguntas com as palavras jogadas ali no chão ou no colchão.

E andamos com elas na cabeça, esperando a deixa para dizer sem tanto negrito ou caixa alta. Ou só saber mesmo, quando os pequenos atos denunciam aquilo que os subterfúgios do grande circo místico acaba por suspender no ato da corda bamba da juventude.

Sai da boca um verso triste de poesia. Depois um feliz, como se os dois se completassem. Abrem as flores noturnas e já não consigo mais parar de sentir aquilo com aquele ser ao meu lado. E já não bastasse a memória falhar, a perna tremer, o escuro ser bem-vindo para olharmos mais atentamente um ao outro, já não bastasse tudo isso, sobe um sotaque português a entonar os versos de uma poetisa com pé nestes trópicos.

No dia seguinte, ele deblatera com o tempo e o mundo para ficar mais meia hora, e eu continuo mudo assistindo, esperando o momento certo pra usar a palavra certa. É assim, entre os silêncios do não dito, talvez dissesse "tudo bem", mas mais: demonstrasse.

É neste momento que açoito a Vênus que me rege, sob o signo de Gêmeos. Aquela Vênus anti-Milo que está para ocultar o que sentimos. Como um escudo para não se deixar ser penetrado pelo que já se apoderou do nosso corpo. Apenas não dizemos o já sabido. E tudo bem.

Olho para o cartaz da Sônia Braga e lembro da música "Hoje", do Taiguara. E foi hoje, nessa madrugada, já na troca com a Aurora, é hoje que me vi sem saber dizer, escovando os dentes na pia de louça verde. A enfrentar as caretas que levam ao Diabo, a saber que talvez exista, sim, volta. Mas já não será mais a mesma coisa.

E o horóscopo repousa na mesa ao lado da garrafa de café preta de plástico. Ao lado dela, uma caixa de bombons finos, lacrada. E ela é para mim. O horóscopo está bom, Netuno e Plutão estão em trígono, é a primeira vez que provo aqueles bombons, daquele jeito.

Taiguara se mistura com Debussy, o sol renasce e a cortina já não encobre mais nada. Sou um desses bichos de concha que saem da areia e andam de lado. Às vezes como um vulto entre quarto e banheiro, às vezes como certos fantasmas que vivem entre o espelho, a rua e a alma. É encantador o retrato que vejo naquele quadro.

O dia nasce, a nuvem se dissipa. Calço os sapatos ao som de Madonna, mexo no emaranhado de fios caracol e rio, novamente, sem dizer uma palavra. Elas estão espalhadas pela cama, pelo chão, pelas paredes do apartamento e os caminhos pelas ruas, pelo centro da cidade, pelos restaurantes, padarias, cafés, pela loja de bugigangas japonesas, pelas travessas, vielas, pontes, periferias. Pelo idílico e o natural, pela selva e o asfalto. Pelo tempo e tudo que há fora dele, irreversível. Pelo que simplesmente é e está ali no suspenso do silêncio. Abrimos os olhos e já é de manhã. É um bom dia para nascer.

Matheus Lopes Quirino (22/5/2020, Taubaté, SP)

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Quarentena em Salvador

Sou Verônica, arquiteta urbanista, pedestre. Estou em Salvador e cumprir o isolamento para mim não está sendo difícil. Tenho o privilégio de ter uma estrutura e poder ficar em casa, trabalhar home office. Me manter em casa é o mínimo que posso fazer sabendo que essa é a realidade de uma minoria. 

Observo que muito da angústia externalizada por determinadas pessoas sobre a dificuldade do isolamento, é sobre a falta de liberdade, da privação do direito de ir e vir.

Não posso deslegitimar a angustia e o sofrimento de ninguém. Mas tenho refletido bastante neste período de pandemia, e tentado racionalizar e ponderar meus sentimentos. 

Além do cenário alarmante no mundo, vivemos em um cenário distópico no Brasil. Desigualdade social, insegurança e a ignorância crua em constante crescimento. 

Empatia? Amor? Compaixão? Paciência? Compreensão?. Não vejo isso nos jornais, não vejo isso nas redes sociais. Como ter esperança? Como posso fazer algo últil? (que não se resuma apenas à caridade…).

Acabei de ler o livro do Ailton Krenak, "O Amanhã não está a venda". É necessário. Não podemos sair dessa pandemia e voltar ao que eramos antes, não podemos. É inaceitável, é imoral.

Verônica Vaz (22/5/2020, Salvador, BA)

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Meus pés ainda lembram do asfalto

 

Poderia encontrar diferentes maneiras de preencher o dia. terminar as vinte páginas restantes do “ano do pensamento mágico” seria uma, ler a quatro cinco um do mês seria outra. e poderia fazer tudo isso ouvindo pela sexta ou sétima vez o novo disco da fiona apple “fetch the bolt cutters”, tentando decorar a letra de “ladies” ou de “under the table” – há quanto tempo não decoro a letra de uma música querida? num dia como esses, marcaria hora com a manicure, caminharia a paulista toda, veria um filme, jantaria fora, tomaria uns drinks. e possivelmente faria isso tudo com um desejo secreto de ficar em casa, ler um livro e ouvir música em silêncio – por que há muito tempo não tenho a calma necessária para decorar música alguma. o meu único elo com a vida pré-quarentena parece ser esse copo de gin com tônica e gelo de fôrma de geladeira. eu tenho bebido. possivelmente menos que antes, mas essa modalidade alcoólica solitária estática, quase rotineira, e sem zimbro, é nova. hoje de manhã, quase coloquei o líquido do gin sobre o filtro de café. 

 

kick me under the table all you want, I won’t shut up, I won’t shut up”. 

 

ontem à noite contemplei seriamente a possibilidade de enviar uma mensagem ao miguel, que ainda me segue no instagram e reparo no horário dos seus likes nas minhas postagens. possivelmente é o único que ainda deve achar bonitas essas pálpebras inchadas, e não se importaria com a sobrancelha por fazer, a recusa em andar maquiada dentro de casa. eu não me lembro como conheci o miguel. um dia ele curtiu uma foto antiga e na noite seguinte, estava em casa, fumando no meu cinzeiro, marcando o seu corpo na minha cadeira, oferecendo a sua pulseira para que eu me lembrasse dele. o miguel não tinha cartão de crédito para pedir um uber de volta para casa, e eu não me importei de bancar a sugar mama. eu cresci para ser o que a cher chama de “marido rico”. só que achei tudo muito suspeito e era mesmo. mas o miguel seria capaz de apaziguar alguma coisa dentro de mim. qualquer coisa que nem o álcool, nem os livros, nem as ligações por video-conferência com fantasmas do presente, nem o sol cenográfico do outono conseguem preencher. e desconfio, é o que os que gritam pelas janelas, amassam suas panelas, buzinam em seus carros com a bandeira do brasil também carecem. a falta de um afeto que não seja tristeza, essa angústia pela incerteza de um futuro qualquer. 

 

aos que não sabem gritar e detestam barulho como eu, resta silenciar com a crença cega em uma rotina. acordar, abrir as janelas, observar o movimento da rua, alongar, passar café, tomar banho, trabalhar, almoçar, trabalhar, pausar para o chá, trabalhar, ler um livro, encostar o celular, dormir. parece ser uma obrigação para quem ainda tem um abrigo, uma ocupação, um salário e pode se preocupar com os excessos de delivery e álcool. nos grupos de whatsapp de amigos da classe média culpada, a palavra privilégio poucas vezes foi tão empregada. como sofrer de forma consciente? e eu ainda durmo. nos dias de hoje, sofrer de insônia ainda me parece uma maneira digna de se demonstrar preocupação com o mundo. no entanto, não tenho a falta de sono ou a ansiedade e sequer a depressão para oferecer como chagas. 

 

“I'd like to buy you a pair of pillow-soled hiking boots to help you with your climb 

or rather, to help the bodies that you step over along your route so they won't hurt like mine.”

 

e no entanto, escrevo da cozinha, pois não suporto mais a sala de estar, que virou sala de fixar há 35 dias. por que preciso desesperadamente dos raios de sol, que só batem desse lado nessa hora do dia. por que a vista do fogão e da chaleira ao menos representam alguma mudança de paisagem, de temperatura, de cheiros. penso na minha avó que viveu períodos longos de reclusão e repressão muito piores na coréia durante a guerra. mas sou a neta que se educou para ter autonomia, que acreditou no progresso individual e no auto-desenvolvimento, e nunca precisou apelar a deus como recurso último. uma geração analfabeta na solidariedade, em sacrifício pessoal em prol da comunidade. não conheço meus vizinhos. e não há ninguém tocando violão nas janelas ao lado, à frente apenas a monotonia das roupas secando, dos farelos de pão sobre a mesa, das cortinas balançando com a brisa. para contemplar é preciso natureza, e a humanidade é entediante. 

 

Agatha Kim (21/5/2020, São Paulo, SP)  

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Um diário meio atrasado 

As nuvens voltaram. Os números cresceram. O meu olhar é circular, mas ainda vejo pouco. Fizeram uma poda nas árvores da praça. Talvez o sol penetre um pouco mais. Ainda prefiro as amenidades climáticas e dos assuntos. Os assuntos não são amenos.

 Escrever diminui a confusão mental, traz um novo tráfego de pensamentos. Faz parte do processo de autoanálise e permite uma melhor compreensão da cena externa. Por isso sentei aqui num canto, com a testa franzida e esse aparelho multitarefas na mão direita.

Hoje é sexta-feira. Nem sei se é. E o que representa? Um xis a mais na folhinha. O calendário não é lógico. Nem cronológico. São dias dispersos dentro de mim. Noites.

Nada de escrever muito. Vou desligar esse pequeno equipamento. Desligarei a TV. Volto a me dedicar à leitura dos livros que acumulei. Vou retomar à leitura da vida, nada simples, nada pura.

Mais tarde lerei as notícias mais recentes, que chegam tão céleres… em proporção exata ao aumento da contaminação, em proporção contrária ao avanço civilizatório deste país em que ainda sobrevivemos. 

E voltarei a esse diário de páginas umedecidas e amarrotadas.

Lívio Oliveira (22/5/2020, Natal, RN)

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Constante ausência

Eu conheci o amor no caos. Ele é belo, gentil, e de longos cabelos negros. Poucos dias antes do início da quarentena, começamos a namorar. Se tinha visitas com filmes, pratos chilenos, andados pela Paulista, “Ibira”, silêncios no IMS, abraços no metrô e fora dele. Amor que nasce e encontra sua rotina dentro da rotina que não mais.

Dados passos ao aconchego que chega, de pouco nos foi podado o toque. Quando num dia, me vi sair da cidade, com ele esperando o último olhar pelo espaço estreito no vidro da Spin branca; enquanto mensagens corriam nos cliques dos dedos e caixas da mente, pensando no que dizer e na saudade que começara a habitar.

Mas lembro bem, quando ainda era possível beijar o pacote de cartas sortidas, para desejar-lhe sorte; e não apenas o pacote de cartas.

Logo foram nos dando datas. Final do mês, mais uma semana, mais duas e o mês que vem inteiro. Um dia, amor. Espere. E até então. Não vou culpar o tempo, a distância, muito menos o que há de mais óbvio para ser culpado. Pois o sentimento puramente polido, mesmo que machucado, não se esvai por mentiras ou julgamentos de culpa envenenados. Ele nasce ali e assim cresce, cresce em si, no que torna e no que nada mal há de alcançar tamanho volume.

Datas erram, pensei. Assim como tirei a prova, ainda mais agora, pelo tremendo atraso da encomenda. Ele uma compra, eu outra, porém uma blusa igual em partes, para usarmos juntos. E se usarmos juntos, pessoalmente. A dele chegou, a minha ainda não. E de pensar que cogitei ter pedido para entregarem em sua casa, pelo extremo gosto de já estar lá para receber. Sendo o real sentido de estar lá, em meu âmago, significar: vê-lo.

Entretanto nada mais que um capítulo se fora, à cada novidade contada, ideias sonhadas, música compartilhada e os próprios capítulos. Digo, pois descobrimos algo curioso, e de certo encanto. Estamos assistindo à uma novela juntos, chilena e antiga. De um a três capítulos por noite. Para assim espairecer, lembrar-nos de nós, de suas raízes, das comidas preparadas e daquelas músicas outrora compartilhadas – inclusive, uma que se tornara nossa.

Agora no aguardo. Não apenas de tudo, é o que digo. Mas do encontro. Do encontro que irá render sorrisos e o abraço. Abraço de mãos que não se permitem a tempos, tocar. Abraço de blusas, ao que se espera a encomenda assim chegar. Abraço de sons, à nossa música, juntos ouvir tocar. Abraço de mente, ao poder encontrar de perto, o teu olhar e te olhar.

Meus avós gostaram dele, por uma mensagem de voz. Logo receitas brilhando se envolviam de manso gosto. Meus pais gostaram dele, por seus gostos musicais – e por seu cuidado comigo. Logo, embalos enfeitiçados me deixavam de queixo no chão. Meu irmão gostou dele, por estilo e apreço. Logo, me faltou aleatória, assistir a conversa. Eu gostei dele, por gestos que transparecem a bondade que emana, cuidado, vibe, nerdices e proteção; além de que eu, sou eu, e ele é ele. Logo, tudo o que carrego e sou, não se podem tornar um com ninguém além do que ele é.

Eu terminei meu segundo livro autoral, voltei com o hobby antigo de pintar telas, ganhei um capotraste para treinar violão, também relíquias antigas de família, e conheci o amor – assim como seus videgames e coleção de robôs.

Eu conheci o amor no caos. E me deleito na saudade todos os dias, esperando.

Safira Ferreira (16/5/2020, Caraguatatuba, SP)

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Só um asmático sabe o que é ficar sem ar

A sensação é de estar no limite, choro e rio com a mesma facilidade. Por sorte estou trabalhando de casa, o que me dá um norte, mas ao mesmo tempo é um desgaste estar em casa e não ajudar nas tarefas, dispensamos a faxineira e o marido tem feito tudo, eu só cozinho, como sempre. Sou asmática, então não posso limpar nada, alergias mil, sou do grupo de risco, o que me apavora, só um asmático sabe o que é ficar sem ar. 

 As mudanças que ocorreram com a ordem das coisas e as que ainda virão – e que ainda não sabemos — nos deixam a todos inseguros e com um fio de desespero. Como a sociedade irá se reorganizar daqui para a frente? É um 11 de Setembro de proporções planetárias. Todas as relações irão mudar. Não saber o que virá nos causa uma perda de chão, não sabemos o que esperar. 

A única preocupação é sobreviver. Tantas coisas deixei para trás e que acho não vou mais pegar, lente de contato, unhas feitas, maquiagem, brincos, anéis, enfim, me despi de tudo para me manter segura, quanto menos, mais fácil são os cuidados. Comer bem, frutas, legumes, pratos cheios de salada, mas também muitos doces, bolos feitos em sequência, para tentar adoçar a boca, a amargura em que estamos mergulhados. 

Tentando dosar a quantidade de notícias para não chorar em posição fetal, mas me manter informada de bloqueios, o que funciona, como sair de casa, sair de casa? Medo de. Só tenho saido para passear com os cães duas vezes por dia, aqui na minha rua mesmo, que está deserta, mas mesmo assim de máscara, trocando de roupa antes de entrar em casa, trocando de calçada quando avisto alguém sem máscara.

Casa, essa é outra vantagem, moro numa, então tenho um lá fora, sol, plantas, quintal, árvores, olhar o céu. Ler um livro lá fora. A sensação de estar presa diminui consideravelmente, às vezes acho que viveria assim pra sempre. Sou meio avessa naturalmente a multidões, gosto de ficar em casa, ler, ver um filme, curtir meus bichos, oito gatos e três cachorros. O que já é um facilitador para esse confinamento, digo que treinei para isso a minha vida inteira. 

Carla Andréa Frederico (13/5/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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A dificuldade de ser

"Senhor Fontenelle, o que o senhor sente?"
"Eu sinto dificuldade de ser."
George Minois | História do Riso e do Escárnio

Os dias vêm aparentados a fragmentos de mármore esquecidos pela varredura das tempestades, mínimos vestígios de um paraíso largado às próprias ruínas; ou é essa a imagem de como consigo representar a sensação que percorre os músculos nas últimas semanas. Toda manhã demonstra-se uma tentativa de recuperar um pouco da sanidade que tem agido como uma puma intensa, focada e voraz atrás da presa despreocupada na relva, à luz dos brilhos findos.

Procurando uma forma de estabelecer alguma conexão real no meio da virtualidade, e falhando em pensar que a fisicalidade não tem diferença, quando é ela quem temporaliza a intensidade dos instantes; afinal, esse constante resmungo de voltar a um estágio recentemente extirpado da expectativa para uma nova experiência, não é senão a vontade de congregar, partilhar, entreter, sorrir, abraçar? De voltar a sentir? Se não voltará a ser como antes, como recomeçar sem seguir largando as importâncias e lembranças que poderiam vir a ser arrebatamentos inesquecíveis?

Nem abrir o navegador e pesquisar qualquer notícia tem surtido um efeito apaziguante no meio da ansiedade generalizada e das desinformações ininterruptas, alçando um ruído já barulhento a um espetáculo de caixas distorcidas, guitarras desafinadas e percussão sem o menor senso de harmonia. Inconscientemente, temos um mecanismo de afastamento da realidade eficaz e que com rapidez impressionante assume o palco, e transporta a multidão para um estado de êxtase onde o banal é ungido com a profecia do descabimento e supostamente a vida reconecta-se, e a potência é restabelecida; mas fugir não é, inclusive, o que levou a nos encontrarmos neste ponto nevral da linha histórica da humanidade? Não foi a retenção de foco em assuntos frugais, quando poderia ter sido "e eu, no meio deste emaranhado, onde me encaixo?" Seguir acreditando na redenção apoteótica das consciências não tem entrado muito na lista das tarefas diárias, mas não há como saber com precisão: a crítica só pode vir depois das luzes do palco serem desligadas. Venho pensando neste depoimento desde sábado. Uma versão rascunhada no sofá, quando, à noite, os pensamentos decidiram que era chegada a hora de tomarem forma concreta, e até arrisco dizer, valeriam entrar neste apanhado mental, tal como este trecho:

"São perguntas e mais perguntas em acúmulo constante, que em breve receberão a poeira do esquecimento que o sono traz, ficando parecidas com os livros dispostos nas estantes e prateleiras espalhadas por quase todos os cômodos do meu apartamento […]".

Embora haja uma ligeira correlação, me peguei relembrando[rememorando] dos pés cruzados no sofá, com o feixe claro da tarde entrando por sobre os ombros com a timidez de quem só queria ser visto pelo que é, sem entrar em um circuito de conceitos e obras e vivências para sair do outro lado com a sensação consagrada da conquista; os fios cobrindo os olhos compenetrados na tela do celular, os dedos ágeis tecendo aproximações em tempo real, os pés descobertos expondo detalhes essenciais da personalidade diante de mim: contrações, estalares, alongamentos, conversas nada didáticas e amplamente expressivas.

Todo esse fluxo passa com um dinamismo – tantas e repetidas vezes – que ocorre uma transição imperceptível, deflagrando a transformação da incerteza em uma nova forma de conduta existencialista. As respostas não acompanham a velocidade da ansiedade e sua ausência agudiza a inesperada falta de fôlego, as batidas cardíacas saem caminhando em descompasso e a boca seca – com a garganta áspera – indica a perda energética da resistência, abandonada ao longo do caminho, na busca imortal do desconhecido. O exterior caótico e o interior desordenado debatem-se com polaridades semelhantes e chocam em pontos variados detrás das retinas e íris: o momento da convivência encarar, frente a frente, a preguiça conveniente de esquecer de se observar.

Algumas imagens marcam uma manifestação indelével na nossa mente; não necessariamente um grande evento, ou um acontecimento que desempenhou cento e oitenta graus e determinou um novo rumo, ou nem mesmo uma mudança repentina, de dimensões drásticas. Pode somente ser: notar o matiz mármore das íris e espantar-se com as esperanças e sonhos e ideais compondo essa profundidade tão grande de querer ser a autenticidade incorporada, de natureza intrépida, porém depondo contra as virtudes que sabe possuir. Atentar-se a certos deslumbramentos imaginários, sabendo da sua abstração e da transposição causada em nosso espírito enquanto transitamos entre uma vertente de pensamentos. Andamos em círculos dentro de nós, cada vez mais enovelados pelos nossos ressentimentos.

Àquelas perguntas, nenhuma das respostas serão encontradas aqui, [in]felizmente. Acabo por constatar que minha mente é regida pela perseguição dos questionamentos e as possibilidades de acalentar essa "dificuldade de ser" do paciente moribundo, estupefato em como a vida pode ser traduzida em uma parcela invisível de significados e simbolismos, com pesos incomensuráveis. As perguntas estarão sempre postas; algumas esquecidas pela impaciência das estações e as movimentações tectônicas inclinando alguns milímetros a mais o globo para onde não deveria apontar, outras serão escavadas daqui milênios, ou permanecerão como agora estão: em um repouso, um constante estado de espera para ser feita – nem solucionada, quanta ousadia! –, apenas querendo existir novamente, na infinitude proporcionada pela lembrança, e expiração, de outrem.

Admito haver uma resposta apreendida nesta incerteza espacial: os deslumbramentos estão onde sempre estiveram, esperando você entrecruzar os momentos de observação apurada com a abertura do seu espírito aos acasos de vivenciar a experiência de sentir.

Os olhos marmóreos translúcidos, a janela entreaberta e o silêncio que invadiu a tarde e viu, hoje, à luz artificialmente constituída no quarto, esta história tornar-se uma provável memória.

Até onde resvala essa escolha consciente de ser, sem dificuldade? De sentir, com verdade?

Glauco Mazrimas (13/5/2020, São Paulo, SP)

PS: O texto é a material convergência de dois eventos: um recém-apaixonamento e a leitura de "A Dificuldade de Ser", de Jean Cocteau.

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Sobre o beija-flor no incêndio

Vou resgatar aqui uma história que imagino ser popular. Uma dessas curtas narrativas que contam às crianças no intuito de perpetuar nelas alguma lição de moral. Sei dela porque meu pai me contava. Não procurei saber de onde vem, qual a autoria ou se ainda é hoje tão popular quanto me parecia na infância. Acho que parte da graça se perderia se eu buscasse a precisão dessas informações. Quero compartilhar a memória de uma herança oral, com toda a falta de acuro e detalhamento que uma lembrança nostálgica merece.

A tal história se passa em uma floresta em chamas. Em meio a um incêndio de proporções bíblicas, um beija-flor vai ao rio pegar água com seu bico e levá-la até o fogo. Tem algum outro animal nessa história que não entende que diferença esse gesto fará em meio a todo aquele fogo, mas esqueci qual bicho era. Diremos que era um esquilo, porque consigo imaginar perfeitamente um esquilo sendo inconveniente e insensível a esse ponto. Enfim, o imediatamente detestável esquilo pergunta ao beija-flor o que raios ele acha que está fazendo, dada a observável inutilidade prática daquele esforço. O beija-flor responde: "estou apenas fazendo a minha parte". 

Evidentemente a mensagem aí visa inspirar algum senso de cidadania e altruísmo, onde a intenção por trás da ação se basta, independente das suas consequências práticas. A ação é simbólica, ideal. E eu já entendia em linhas gerais essa mensagem quando ouvia a história na infância. Dito isso, não conseguia deixar de pensar que, ainda assim, aquele esquilo canalha tinha um ponto. Ainda me parecia redudante o esforço do beija-flor. Mais do que isso, sinto que atribuí a ele uma imagem de altivez antipática. Talvez o beija-flor, sabendo que seria incapaz de conter o fogo, quisesse só inflar seu ego, ostentar alguma superioridade moral em relação aos outros animais, dar carteirada nos stories. Me parecia muito conveniente ao beija-flor fazer a sua parte, enquanto aos outros animais seria um suplício gigantesco. 

Eu estava enganado. 

Corte brusco para 2020. O que sinto hoje é que a interpretação literal desse tipo de alegoria tende a ser, dentre as perspectivas possíveis, a mais desinteressante delas. Sinto que o conto é ressignificado quando se está diante de uma catástrofe natural maior do que você ou do que todo o fragilizado conceito de comunidade construído à sua volta. Sinto que se aquele esquilo em negação se juntasse ao beija-flor junto dos outros animais da floresta, muito maiores, mais fortes e mais numerosos, ainda que o avanço do incêndio não pudesse mais ser totalmente impedido, seguramente o sacrifício conjunto diminuiria a extensão da tragédia. 

E, acima de tudo, hoje sinto que não havia nada de altivez ou petulância naquele beija-flor. A história não narra o que sente quem procura fazer o que está ao seu alcance para frear algo inexorável que transcende qualquer noção de justiça. A sensação de impotência de tentar dar o exemplo a ver multidões em marcha fúnebre na direção oposta, jogando fichas de forma displicente em uma aposta que cobra em vidas cada desvio de percurso, cada atalho falacioso. Não há nada de conveniente ou oportuno na atitude do beija-flor. Certamente ele teria preferido estar em qualquer outro lugar que não ali, se dentro dele fosse mesmo uma questão de escolha, e não um dever imposto pela índole.
 
Pensando nisso, vejo que meu pai nunca me disse como aquele beija-flor estava angustiado. E, se tivesse dito, eu também não teria entendido àquela altura. Mas esse é outro lado bom de alegorias desse tipo: às vezes elas crescem junto contigo em meio à adversidade.

Marcellus Vinícius (12/5/2020, São Paulo, SP)

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Síncrono

Comecei a quarentena preocupada com os encaminhamentos, num futuro bem próximo, de meus projetos, inclusive um estágio fora do Brasil com bolsa, conseguida a duras penas, sob a égide da completa inutilidade das ciências sociais no Brasil. As incertezas me acometiam sob diferentes formas: o cumprimento dos prazos legais, os encaminhamentos burocráticos, os trabalhos inconclusos na universidade, uma viagem longa e minha mãe, fragilizada, à minha espera. Atormentava-me a disposição física e mental dos brasileiros, a minha, de meu companheiro, dos meus irmãos, dos amigos, dos estudantes, dos poucos, mas muito queridos, colegas de trabalho; muitas informações e desinformações contribuíram para que eu transpusesse a ansiedade que tal desassossego gerou e começasse a rever minha forma de ficar e trabalhar em casa, como muitas outras pessoas, o isolamento social já fazia parte da minha rotina.

Refreei uns dias, retomei os cuidados com minha mãe, eu havia parado quando as aulas começaram, o que, de início, me fez maus tratos, e prometi que, após o repouso, iria adiantar os relatórios e prestações de contas que precisaria entregar em junho próximo. À perna solta não conseguia iniciar os relatórios, fiz leituras que estavam atrasadas e segui o que a universidade indicou, “continuar os trabalhos com atividades remotas”. Alheia ao significado disso, desconhecia como proceder, sobretudo, porque na estrutura administrativa da instituição, reitoria e centro, do qual meu departamento é parte, não se entenderam, posso dizer que, em termos fantasmagóricos, optaram por uma relação tal como a do atual presidente da República com a Organização Mundial da Saúde. Nestas condições, quedamos, meus estudantes e eu, assim como todos os brasileiros, para não abandonar a imagem do pesadelo, experimentando alguns equilíbrios.

Baqueados, fracassamos, ambos. Frustrada, conversei com meus colegas, evocavam os mesmos embaraços e controvérsias. Resisti e optei por ombrear o malogro. Acompanho duas estudantes, de uma turma de 42, que assumiram as “atividades remotas”, e tento no meio do deserto vender areia aos meus orientandos de pós-graduação, estimulando-os, solidarizando-me etc. Hoje não consegui escrever uma linha relevante para minha pesquisa atual, só faço leituras esporádicas e tomo notas de poucos pontos. Por outro lado, todas as manhãs leio os jornais e blogs que sempre quis ler, todas as noites assisto filmes (um prazer sublime, jamais imaginei que faria isso sem que fosse uma crítica de cinema), em todos os banhos, e ao cozinhar, ouço os discos que nunca ouvi e, todas as tardes e inícios de noite, banho, visto, maquio, arrumo o cabelo da minha mãe, além de fazermos exercícios físicos, de fonoaudiologia e cultivarmos sua memória. Dispus de tempo para cadastrar, e acompanhar o penoso processo de pagamento, meu ex-babá, hoje um amigo querido, na lista de beneficiários para o recebimento de seu “auxílio emergencial”.

Para não mencionar o ensejo para a escrita deste relato, o fato é que, hoje como nunca, ninguém desfará em mim a crença na relevância do ócio, desde que remunerado, é bom que eu deixe claro. Sobre minha mãe, vivemos como todo brasileiro oriundo de uma classe média interiorana, que se estabeleceu na metrópole, se desdobra para cuidar de seus idosos, agora, sem a ajuda das pessoas contratadas, que nos auxiliam desde o início da nossa intensa travessia de envelhecimento de nossas gerações familiares. Minha mãe nunca foi uma pessoa fácil, carrega desde sempre muitas agruras, como toda uma geração de mulheres que viveu o período de transição entre o trabalho dentro e fora de casa, automedicou-se e foi medicada por anos a fio, tem sérias limitações e vulnerabilidades, desde muito antes de seus hoje 83 anos. Atualmente, colhe um pouco das raras escolhas que pode fazer e muito daquelas que recusou-se a realizar.

Nas tardes com ela concentro-me em algumas ideias: em como somos sozinhos, apartados uns dos outros; em como muitas vezes corremos atrás de coisas inócuas; em como estabelecemos e aceitamos, ao longo da vida, relações aflitivas, cujo alívio causado pelo desaparecimento da convivência rotineira obrigatória é capaz de transmutar-se, justamente em razão de tal sumiço, num prazer profundo, liberdade momentânea, capaz de se sobrepor ao peso que é carregá-las por quase toda uma vida. Quando quieta e calada, um hábito adquirido recentemente e, talvez por isso, intermitente, seus olhos me fazem ver que percorre outro mundo, apuro o que ela pensa sobre o futuro; sobre nós que sobramos e que somos agora, hoje, tudo o que ela conseguiu acumular na vida; sobre o lugar de tudo que viveu, vida materializada em tantos bens, largados para trás, e que, agora, se concentram em suas memórias fugidias, tais como a luz do farol do Mucuripe que ela me aponta todo início de noite perguntando de onde vem.

Tento imaginar, fabular, a respeito de como ela vê a vida e a história que carrega em seu corpo; o que sente sobre ela mesma quando mostro uma fotografia antiga ou atual, quando canto uma música e ela ressoa junto, surpreendida pelas centelhas das lembranças daquilo que tinha como adormecido, quando ouve e comenta atenta, à sua idade, uma história para crianças e quando se vê montando um quebra-cabeças ou detida sobre um jogo da memória para crianças acima de 4 anos de idade. Ao afastar-se, trago-a de volta com uma pergunta cuja resposta sai subitamente: “não penso em nada”. Agarrei a oportunidade do ócio remunerado pelos cabelos, fez bem a mim, mas, em certa medida, me trouxe sentimentos melancólicos, ao evocar que, minha mãe e eu, estamos aprisionadas no presente.

Pouco importa nossa idade, somos duas mulheres assistindo o país desobrigar-se do amparo aos seus, confinadas nos tempos de agora. Na volta para casa, nas poucas saídas para as compras, reparo em como as pessoas são fúteis, medíocres, covardes, feias, indefesas, engraçadas, corajosas, generosas, fortes, noto como minha cidade é menos feia, como árvores, plantas, animais e o silêncio são necessários, imprescindíveis para mim. Em casa, sinto como é pequena, relativamente desconfortável. Impedida de nadar na piscina e no mar, causa de um dissabor pesaroso, minha bicicleta funciona como uma substituta acanhada. No final, a quarentena talvez não tenha alterado “meu estilo de vida”, tornado-me mais ou menos compassiva; seguramente ela me fez enxergar que, nos olhos dos outros, vejo a mim mesma e a minha solidão, da qual nunca poderei abrir mão. Neste período abri uma conta no Instagram para minha mãe, uma forma de lembrá-la da relevância do amor-próprio. Todos os parentes, aqueles dos quais me afastei, reapareceram para seguí-la, me vi repondo o passado num lugar em certa maneira importante para mim (que lástima!), mas isso seria tema para outro relato. Quero só convidá-los para seguir: @etitemumjardim, quem sabe possa inspirar outras filhas e fazer animosas outras mães.

Sora Lechat (8/5/2020, Fortaleza, CE)

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Tempo de ver formigas

Queria que fossem cães, mas são aranhas. E formigas. Dessas ínfimas, que só não passam por pó porque se movem sem que as sopremos; dessas que a gente inadvertidamente esmaga ao fechar a porta de fórmica do armário da cozinha (às vezes me escapa um "desculpa aí").

Tem também o que chamo de "baratinhas" — por falta de melhor investigação taxonômica —, que imigraram, clandestinas, de outro imóvel e que aqui adotaram a quentura do micro-ondas como habitat. Essas eu esmago com o dedo, ainda bebês, mandando o carma às favas, porque sei que, quando crescem, tornam-se criaturas imensas e abomináveis, que têm por hábito devorar o ventre de cebolas semipodres.

Insetos têm sido o que há de vida semovente aqui em casa, além desta que escreve, neste pause planetário. 

Vez em quando entra uma abelha. Deixo que voe, deixo que viva. Abro-lhe a janela, mas ela insiste em ficar. Quer me fazer companhia. Não lhe ofereço café — ela mesma se serve. Noutro dia mastiguei sem querer o corpinho naufragado de uma dessas, que boiava na xícara sem que eu a tivesse notado. Desculpa aí.

Sinto-me enorme. Não só porque sou, infinitas vezes, o habitante de maior volume deste lugar, mas também porque meu universo interior se expandiu. É o mundo que parece confinado lá fora, pois aqui, nesta pátria de seres mínimos da qual me julgo soberano, tudo se tornou descomunal, insuportável até. O silêncio do mundo faz emergir vozes que antes se calavam; algumas bem-vindas, que sussurram desejos esquecidos, outras menos gentis, que vêm te visitar em horas pouco propícias e roubam teu sono, sequestram tua mente e tomam teu café — mas não se afogam nele.

Os insetos cresceram comigo também. Estou atento a eles como nunca estive, descobridor de minúcias como a predileção das moscas pela varanda, a biodiversidade de aranhas por metro quadrado e o porquê de as formigas preferirem pilhar o mel quando guardado dentro do armário, mas não quando sobre a bancada da cozinha. A luz do dia inibe o crime?

É tempo de ver formigas. O vírus invisível tornou visível o que sempre esteve lá, mas eu não enxergava. Ou, quando o fazia, esmagava com a minha arrogância de primata civilizador, só para depois vê-las, as formigas, me rebaterem com sua perversidade sutil, multiplicadas para meu espanto. 

Nos insetos, a conta nunca é negativa. Esmagamos, pisamos, pulverizamos, aniquilamos, mas eles voltam. E voltam patifes, debochando de nossa suposta magnitude — como os vírus, as memórias e os pensamentos obsessivos, tudo aquilo ao qual somos cegos e surdos, mas que, quando se manifesta, é capaz de prostrar uma humanidade inteira.

Monumentais são as moscas, que trafegam em liberdade entre a rua e a varanda e vêm pousar, audazes, sobre a minha perna composta de músculos inúteis, incapazes de atravessar a porta que os separa do mundo. 

Quem é o frágil aqui? Não as baratinhas, que ressurgem tão logo ligo o micro-ondas (e não morrem com a radiação). Não as formigas, que a cada dia redecoram a parede da cozinha criando novos itinerários em sua cartografia volante. 

Pois é. A gente às vezes se esquece desse outro dedo — invisível e imenso — sobre nossa cabeça, sempre teso e a postos para a qualquer momento, quando menos se espera, ploft, nos esmagar como uma chinelada dos céus.

Esborrachados, não veremos as moscas que chegarão em questão de minutos.

Elas às gargalhadas, é claro.

Xavier Bartaburu (8/5/2020, São Paulo, SP)

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Pessoas desconhecidas

Em meio a tantos desconhecimentos do presente e do futuro, um do passado — quase de outro mundo — me tomou a memória e me arrebatou. um tipo corporificado, que passa da pose de substantivo à adjetivação de uma palavra bem mais importante. Hoje senti uma profunda saudade das pessoas desconhecidas. Sobretudo das que polinizam perfumes pelas ruas.

A recepcionista no Recife, que saiu comigo do museu só para me mostrar exatamente onde era o quilo mais próximo. A vizinha em Salvador que treinava teclado todas as tardes, que eu tanto gostava e ia para a cozinha só para melhor ouvi-la. As jovens embriagadas que elogiam o meu cabelo nos banheiros de festas. A aposentada que se sentou ao meu lado no banco da praça e recitou algumas de suas poesias para mim.

As pessoas desconhecidas de transportes públicos constituem uma categoria especial, num espaço de passagem, de movimento, que expele a fixação de qualquer coisa, alguém vai e finca a sua marca. A estudante que saiu do vagão e perdeu o metrô (perdeu?) porque avistou um amigo que não via há meses na plataforma. O passageiro que mudou de lugar só para que um casal se sentasse junto. A dupla que mobilizou o canto de uma barca inteira na volta pra Niterói, numa sexta à noite, jogando qualquer vestígio de cansaço na baía.

Mas nada supera os desconhecidos que subitamente se tornam íntimos.

O casal apavorado que conheci na delegacia e com quem tive crises de riso na mesma noite. O alemão que chacoalhou o meu roteiro de viagem e algumas verdades, no acaso de eu ser a única pessoa do hostel que falava inglês. A menina que pescou palavras na minha conversa e deixou escapar uma risada – e segredos, mais tarde. O contatinho do tinder que no meio do encontro topou cuidar de um gato machucado e que virou o meu namorado.

E há os desconhecidos que nos tomam de uma forma inescapável.

Como o senhor de cabelos brancos que eu sempre via nos primeiros semestres de faculdade, sempre munido de papel, caneta e café, era comum vê-lo concentrado na árvore em frente ao bar. Às vezes, tinha a sorte de flagrá-lo com o sorriso bobo de quem encontrou uma inspiração. Gostei tanto dele que o meti num ensaio poético para uma disciplina e novamente neste texto.

A minha vontade de pessoas desconhecidas definhou nos últimos anos, quase secou. Assédios, decepções, abusos, polarizações, xenofobia aflorada na escuta do sotaque e acomodação minha, também (confesso): tudo isso me afastou de quem não conheço.

No entanto, na impossibilidade de colher pessoas pelas ruas que é a quarentena, tenho engolido livros, séries e podcasts compulsivamente, para me banhar de pessoas, mesmo que indiretamente, através de suas personagens. O desconhecimento paralisante acerca de tudo deu espaço à antiga sede do desconhecimento em forma de gente – que é possibilitado por uma fresta, um pequeno sim. Mas não sacia: tenho tido sede de gente corpórea, à minha frente, materializada nisso que chamamos de realidade.

Tenho passado muito tempo na janela, observando as pessoas em suas casas, procurando trejeitos singulares escapados na espontaneidade. Todo comportamento é performance, eu sei, mas gosto especialmente quando alguém se distrai. Prefiro a coxia ao palco, a janela aos stories. Passei a amar as janelas porque há gente desarmada nelas, como nas ruas de outros tempos. Semear talvez seja isso: dar um voto de confiança ao desconhecido.

Gabriela Falcão (8/5/2020, Niterói, RJ)

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Livros e escrita

Ler um livro faz-me aspirar sentimento. Cogitar lembranças. Intimar a vistoria das memórias aterradas nos túmulos sem lápides, postergadas, mas sempre reviradas. Exulto-me ao saber que um exemplar seja capaz de fazer-me libertar ternura, deixar que aflore gradativamente — como a transcendência da lagarta às asas –, permitir que cada aresta de afeto abra-se ao encontro íntimo da madrugada, que lágrimas aguem as extremidades que deixei secar em minha solidão.

Contemplar os livros faz-me escrever e viver entre as palavras. Jamais saberei se importará, mas deixar-me em cada letra do alfabeto é de venerável estima, que espero saber prover e ser credor. Redigir é uma coisa bela, escrever um verbo que renasce a cada átimo. Conceber é um princípio contínuo, um fundamento da vivência. Por isso, neste tênue momento que impõe-se sobre a humanidade, condecoro-me à companhia de livros, papéis e tinta, os guardiões da imaginação, para assentar no lume de minha própria existência, o poder da narração.

Gustavo H. Araújo (8/5/2020, São Paulo, SP)

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Da janela lateral

Da janela do meu quarto, na Vila Mariana, o hospital deixou de ser paisagem e virou o centro de gravidade do olhar. Desde o começo da quarentena paulista fiquei esperando o caos e as grandes cenas prometidas pelos filmes e noticiários, mas nada. Para quem vê de fora, com exceção das ruas pouco movimentadas, parece que nada mudou: algumas pessoas de jaleco continuam saindo para fumar, e os enfermeiros e enfermeiras continuam com uma expressão cansada. Mas nas conversas com amigos profissionais de saúde, você sabe que o caos é maior das paredes para dentro. Como tenho sentido a pandemia? Com este pensamento de que as coisas vão mudar, mas, que com uma ambiguidade pulsante, ainda não consigo vê-las. 

Henrique Matsuo (4/5/2020, São Paulo, SP)

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A vida miúda é imensa

Tenho chamado a vida, ultimamente, de vida miúda. A vida miúda é feita nos minutos, nas palavras ditas e não ditas, no silêncio que as perguntas difíceis exigem, nos cuidados diários e repetitivos, nos velhos sentimentos que ganharam novo cenário. Quando a chamo de miúda, não é de forma alguma para diminuí-la, ao contrário, é na miudeza que a vida pode ser vivida. Talvez, ao contar algo nosso, preferimos os momentos mais barulhentos e extraordinários, mas isso é apenas história para contar. A vida mesmo é feita de pequenos gestos, sentida quase em silêncio e sempre na iminência de uma escolha. Eu tenho escolhido mais silêncio do que barulho. Menos interação, mais reflexão. A cobrança em ter que participar cessou e o encontro com ela, miúda, está me mostrando que no fim, fechada ou não em casa, a vida miúda é feita do caminho de dentro. E é imensa.

Carla Paiva (4/5/2020, Sâo Paulo, SP)

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Como eu era antes do fim do mundo (tal como eu pensava que seria)

Cada um possui um fim do mundo segundo a sua imaginação. O fim de todos ou só o meu?

De qualquer modo é preciso organizar o seu próprio apocalipse. Dar-lhe um nome e uma feição. A morte não surpreende – o cavaleiro Antornius Bock antes dá-lhe a chance de salvar os que o cavaleiro crê que são merecedores de viver: os saltimbancos, os artistas. É preciso pensar muito na saída de Cavaleiro e de sua escolha. Valerá ela para todos os artistas ou só para os puros do coração?

Quem é puro do coração? Jesus chamava a si os pequeninos e os pobres entram no reino do céu, acompanhados pelo camelo. Mas os ricos conduzem, são os emissários da peste? Ela é independente da vontade dos seres humanos, e um ser mínimo e invisível ( o destino) ri à socapa de todos os esforços e instrumentos que inventamos para enfrentá-lo. O fim do mundo olha de frente e não se esconde. Nós, sim, nos escondemos, voltamos às tocas e às cavernas.

No entanto a Terra respira. Os bichos voltam às ruas, vazias, e nos contemplam vencedores.

Sylvia Leser de Mello (4/5/2020, Cotia, SP)

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Fui feliz, ainda bem

"Dificílimo reconhecer a felicidade quando ela ainda está no recinto. Caso reconheça, é fundamental fotografar, escrever, desenhar filmar", disse Gregório. Eis que reconheci, mas não tomei nenhuma das providências cabidas.

Estávamos eu e você, de banho tomado depois de correr, comendo uma massa que poderia se passar por uma legítima italiana, e um vinho verde gelado que parece muito o Casal Garcia, só que melhor e R$ 10 mais barato.

Eu e você sentados na minha cozinha. Não lembro de nada do que conversávamos porque não era nada essencial ou importante. Conversa jogada fora, sabe? Eu comentei algo sobre a quarentena ser feliz. Você concordou.

Olhando em retrospecto, acho essa brecha de tempo-espaço em que vivemos mais que feliz, bonito. Sincero. Sem pressa. Acho que depois você lavou a louça. Eu te filmei. Aliás, acabei de lembrar que te filmei, o que significa que guardei esse momento de felicidade, que bom.

Você falou sobre deitarmos, eu falei "dormir?" com um sorriso de quem sabe que não é "dormir" o que você queria dizer. Eu cometi o erro de colocar um filme bom demais para dormirmos ou fazermos qualquer outra coisa. O Sal da Terra.

Foi bom. Reconheci a felicidade enquanto ela estava ali. Fui feliz, ainda bem.

Isabella Herdy (4/5/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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Arte, inspiração e livros

É notório o desalinhar extremo que a quarentena proporcionou a todos. Expôs a inimizade humana com sua parte intrínseca, ao fechar as janelas e respirar suas inseguranças, trancar a porta e ouvir o ranger das dobradiças do coração, arrebentando com tudo que deixamos para resolver nalgum momento melhor, que a rotina jamais permitiu chegar e ah! Cadê ela para cobrir meus olhos com a venda dos meus afazeres e metas?

Há infinitas questões para se resolver, finalizar o isolamento, manter-se alerta, coabitar com nossos familiares e existir por meios on-line. Não me adaptei minimamente com essa forma de existência, mas não desvalido sua importância diante de tantas realidades diversas. Seguimos combatendo o tédio e o aprendendo o ócio que não tivemos chance de apreciar pela maratona capitalista de alcunha vida moderna.

Poderes governamentais em confronto, de encontro com a salvação das pessoas. Não é preciso demorar-me nesse ponto, todos já estão envenenados pelos números e gráficos das mortes alheias e trágicas, seja pela covid-19 ou pela negligência em regra no Brasil. Talvez o esforço hercúleo seja sair ileso de tantos problemas externos e internos, violências, assaltos e marketing de morte. Por isso minha estratégia é munir-se de arte, inspiração e livros enquanto sobrevivemos com nossas famílias e amigos no mar de calamidades humanas.

Rebeka Campanelli (3/5/2020, São Paulo, SP)

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Ideias encarceradas

A juventude foi aprisionada em 1968. Cúmplices, as ideias foram encarceradas também. Era o desfecho de uma reunião de rapazes barbudos e moças de minissaias sob a batuta da UNE, nas matas de Ibiúna. O som da grade se fechando e do cadeado sendo passado me abriu a mente para um novo mundo, o da democracia encarcerada.

Passados cinquenta e dois anos, o mesmo som da grade de ferro, do cadeado que se fecha, renasce na pandemia que encarcera o
planeta. Da janela, de novo prisioneiro, a vida se apresenta pelas mesmas velhas lentes, novas: as de quem, em lugar das ideias,
tem por companheira de cela, uma vez mais, a liberdade perdida. Lá fora das residências-presídios há um mundo — tão bonito — que o
vírus nos sequestrou.

Antônio Melo (2/5/2020, Natal, RN)