Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: junho

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

24jul2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

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Prática #2

Querido 203,

Sinto sua falta e, apesar dos meus sorrisos, talvez você não saiba que muito me alegravam os seus elogios. Você está bonita com essa camisa às 8h, esse cabelo ficou bem em você às 19h, gostei da nova bicicleta aos fins de semana. 

Me agradava que me contasse, quando nos cruzávamos pelo sofá de couro falso e vermelho da portaria, que foi convidado a alguma festa. Sim, 203, sente-se o seu perfume desde o corredor. Mas te confesso agora que me ofendi um pouco quando preferiu as escadas, mesmo com seu andar torto e custoso, quando abriu a porta do elevador e me viu dentro.

Cruzei com sua mãe hoje pelos corredores, ela sempre me dá notícias de você: o excesso de pessoas te incomoda, toda essa gente perambulando pelo prédio te rouba o sossego e isso certamente abala o eixo da terra. Se o 301 acendia a luz às 21h e agora passa todo o tempo em casa, o prédio não é mais o mesmo e era bom o suficiente antes. Se o Carlos vem agora na sexta-feira a quarta-feira sente, e a semana toda desanda. Agora eu sei, 203, o desajeitar das coisas também anda me atravessando esquisito.

Da onde te escrevo ouço o seu choro, seu corpo contra o duro da parede e o estalar das porcelanas. O que te assombra? Penso que são os meus passos, e por isso te peço desculpas, a ansiedade me pega pelos pés.

Os peixes também se debatem quando encontram o fundo do barco, e, 203, duas coisas têm em mim o mesmo efeito: a quietude e o amor.

Luiza Oliveira (30/6/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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Confeccionando origamis

Em virtude do atual cenário – a pandemia de Covd 19 –, viajamos em casa pela cultura japonesa: confeccionamos origamis, preparamos temakis, tivemos inspiração na criação de poesia haicai e, por fim, mergulhamos na literatura oriental.

Primeiramente, quando se deu o início da quarentena, ficamos um pouco sobressaltadas, então, eu e minha filha tivemos a ideia de confeccionar origamis, pois, recordamos da lenda do Tsuru, que é uma ave que, na cultura japonesa, simboliza saúde, sorte, felicidade e longevidade. E precisávamos dobrar 1.000 tsurus para que nosso desejo se realizasse: saúde para todos. Os tsurus foram dobrados e conseguimos concluir a meta de 1.000 aves de origami; estão todos em um vaso em cima do aparador na sala de jantar.

Com isso, lembramo-nos também da culinária japonesa e resolvemos fazer temakis, rolinhos com a mão, que é um prato rápido, tem o formato de cone recheado com arroz e peixe cru. A receita foi retirada da internet e assim saboreamos na janta o delicioso cone.

Dando continuidade à nossa viagem pelo Japão, depois do origami e da culinária, chegamos à poesia. Haicai é uma técnica japonesa de criação de poemas compostos por três versos, com cinco, sete e cinco sílabas poéticas. Os temas são relacionados à natureza e às estações do ano. No momento, estamos elaborando um livro de origamis e hacais. A obra será composta por todas as letras do alfabeto, sendo que cada letra terá um animal de dobradura e uma poesia haicai. Com esse livro, pretendemos ensinar dobraduras e também difundir o haicai para crianças e professores.

Por meio da poesia haicai, aproximamo-nos da literatura; estávamos pesquisando sobre haicais na internet e encontramos informações sobre o Centro Cultural Japonês Japan House, com um clube de leitura, que incentiva a apreciação de obras japonesas. E justamente neste mês, tratavam do livro chamado “Trilhas longínquas de Oku”, de autoria de Matsuo Bashô, que conta sobre a vida e obra do principal e mais importante poeta de haicai. Foi incrível! Pudemos ler o livro no Kindle e também conhecer o brilhante poeta Leonardo Fróes, que nos abrilhantou com seu conhecimento sobre essa técnica poética. Agora, estamos lendo o livro Beleza e a Tristeza, de Yasunary Kawabata, para debatermos no próximo encontro do clube de leitura.

Enfim, com a quarentena, ficamos todos aflitos, mas, ao mesmo tempo, foi um momento de grande aprendizado e conhecimento para nossas vidas, o que nos levou a viajar para o oriente sem mesmo sair de casa!

Finalizo este relato com um provérbio japonês:

“O bambu que se curva é mais forte que o carvalho que resiste.”

Simone Cristiane Schiavon Ayres (29/6/2020, São Caetano do Sul, SP)

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Curtir um moletom

Moletom de manga comprida. Que cobre as mãos. Uns dois tamanhos maior e cobre as mãos. O aconchego de cobrir as mãos. A gente pega e embola aquele excesso de pano, envelopa as mãos, dobra os braços e leva as mãos juntas cobertas até o queixo. Depois aos ombros. Auto-abraço. Descobrir essa sensação, nesse ficar em casa. Antes a vida estava com pouca pausa, não tinha tempo de curtir um moletom, em casa. Que cobre as mãos.

Caroline Lauar (29/6/2020, Munique, Alemanha)

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Pandemônia
 

Nestes tempos de confinamento, os dias com suas noites não têm favorecido o sono. Dormir tranquilamente é uma dádiva do passado que venho tentando recuperar aplicando algumas técnicas. Ontem tentei a prática de relaxamento de um Guru do Sono que vi na internet. O Guru recomenda deitar numa posição confortável, fechar os olhos e pensar na cor azul.

Eu: Cor azul? Será que pode ser mar azul ou céu azul?

O cérebro: Tanto faz! Pensa só no azul, no azul! Se concentra em algo azul!

Eu: Tudo azul. Azul. Vestido azul. Bolsa azul. Por sinal, por onde anda o meu tênis azul? Faz tempo que não o vejo! Será que esqueci na academia antes do isolamento social? Quando voltaremos à academia? Será que voltaremos um dia? Vai ser tão complicado. Hora marcada. Passar álcool gel nas máquinas, nos pesos. E fazer os exercícios com máscara! Vai ficar toda suada…

O cérebro: Psiu! Vamos dormir! Volta para a cor azul. Pensa então num quadro azul. Todo azul. Azul.

Eu: Azul, um quadro azul. Capote azul de médico. Os médicos. Os enfermeiros. Os hospitais. Os medicamentos. A OMS diz uma coisa, depois desdiz, o governo diz outra. O que a gente faz? A gente tá perdido! Qual é mesmo o nome do remédio novo que disseram que está curando os casos graves do Covid? Já me esqueci? Eu li hoje mesmo num post!

Acendo o abajur, pego o celular, pesquiso no Google: Dexametasona! Dexametasona!

O cérebro: Ótimo! Agora tudo certo! Vamos nos concentrar no azul! Mar azul, mar azul!

Eu: Mar azul. Mar. Ondas do mar. Cabo das Tormentas. Bartolomeu Dias rumo às Índias. Pimenta, cravo. Humm, arroz doce com cravo e canela! Vou fazer amanhã! Humm, mas acho que não tenho canela em casa. Humm, tenho que comprar canela. Meu Deus! Eu me distraí por um segundo e saí do mar azul para o arroz doce! Estou comendo feito uma louca nessa quarentena. Cinquentena. Ointentena. Centena. Uma centena de quilos!

O cérebro: Volta! Vamos dormir! Esquece isso! Lembra do azul, daquele lindo mar azul bem calmo.

Eu: Mar azul. Água azul transparente, calma. Calmaria. Está tudo tão calmo! Será que eu desliguei o forno? Será? Bom, isso é algo que precisa ser verificado urgentemente!

Levanto e vou até a cozinha, checo todos os botões do fogão – tudo desligado. Aproveito e fecho as janelas – pode chover. Tomo um gole de água e volto para o azul.

Eu: Azul… Bom, mar azul não está dando certo. Melhor mudar. Céu azul! Isso, céu azul! Céu azul, sem nuvens. Céu de Brigadeiro. Bolo com cobertura de brigadeiro com confete colorido. Confete. Serpentina. O carnaval deste ano deveria ter sido cancelado. Como pode? Um perigo! O contágio iminente do corona vírus. Um absurdo! Esses políticos! Esse caos na política! Cada dia é uma notícia pior que a outra! Meu Deus! De novo não! Do céu azul para o inferno astral da política! Assim não dá! Desse jeito não vou conseguir mais dormir em 2020! Desisto! Tchau Guru Azul! Me perdoe, mas vou voltar para a solução escarlate e infalível de Baco!

Daniela Barreto Duarte (29/6/2020, Recife, PE)

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Apenas uma melodia 

A melancolia escorre enquanto me levanto, em fuga dos perigos que navegam os mares dos lençóis. A luz solar entra pelas frestas da janela, formando estranha geometria na parede. Contemplo a luz como arte abstrata, ainda que minhas retinas sintam o incômodo do olhar direto. Há tempos que o Sol só chega oblíquo. 

Tiro o bloco de seu repouso na escrivaninha, na iminência da concretização da ideia. Penso em rascunhar as formas da parede, o lápis trêmulo em êxtase ganhando vida própria em minhas mãos. Um piscar. Um suspiro. A crônica da morte anunciada da ideia. 

Toadas de uma música irreconhecível chegam de fora. O mundo em sua surdez que traduz o silêncio quase religioso. A melodia que ousa interromper esse pacto de mudez, não consigo escutar em minha incompreensão. Desaprendi a ouvir, mas sou compelida a sacada. Daqui de cima, vejo o Fora. O Mal estar freudiano me vem a mente, nunca me senti tão separada desse lugar. Desse Ovo,  sou como gema, matéria viscosa que foge à casca rompida. 

Os vislumbres do inalcançável, a rua – terreno mais cotidiano – que se vê, em um rodar do disco, minado. Andei por essa rua todos os dias. Só não mandei ladrilhar porque não era só minha. Cena repetida, da janela, todos assistem a ausência da rua. Mais do que na mesma página, estamos na mesma linha de um livro esquecido na prateleira. O asfalto em nossas memórias, em uma manhã fria, sobre ele desfilam nossa saudade e nossa nostalgia. De espaço longínquo, quebra o silêncio de um mundo interrompido apenas uma melodia. 

Giovana Proença (26/6/2020, Taubaté, SP)

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Fritação com o nada

Sofro mentalmente o peso de não pensar. O ócio chegou ao seu limite e, sem dúvida, é uma das piores sensações. Sentir o cérebro fritar sem óleo os pensamentos, e de tanto revirar o conteúdo, não se sabe mais o que foi dito ou ouvido, visto ou sonhado, se era consciente ou é subconsciente.

A caixa de labirinto confundiu seus próprios caminhos e me deixou de olhos arregalados a encarar as paredes brancas de vizinhos, pois as minhas já não fazem mais sentido.

Bom, mas vale também avaliar que é chegada a época dos sintomas do meio do ano manifestados no presente, aliás, estaria assim, bem de saco cheio, de qualquer forma, mesmo com meus "comuns" afazeres ocupando todas as linhas do meu bullet journal.

Esperemos mais um pouco.

Beatriz Lopes (26/6/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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Como escrever em meio à destruição 

Como escrever mensagens de esperança em meio à destruição do Estado Democrático de Direito e do nosso país?

Logo no nosso momento mais fragilizado devido à pandemia.

 É uma luta diária para não desmoronar, junto com o desmonte do Brasil.

É sobre ter um olhar que mira o horizonte longínquo que está por vir.

É sobre saber que não somos um povo revolucionário, mas que todos os dias enfrentamos o mundo para sobrevivermos.

É sobre lembrar do sorriso de cada brasileiro que acorda de madrugada para colocar comida na mesa.

É sobre erguer nossos punhos e resistir porque o amanhã nascerá todos os dias.

É sobre não desistir, pois é isso que eles querem.

É sobre acreditar na força que temos como comunidade.

Eu acredito, e a esperança em nós jamais morrerá.

É sobre resistência!

Vitória Fachin (26/6/2020, Belo Horizonte, MG) 

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As coisas estão estranhas

Nunca pensei que dois corpos pudessem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, isso é fato. Mas não sei, as coisas estão estranhas. Parece que até as leis da física se desdobraram nesse estado de exceção pandêmico e acredite: agora até um mesmo corpo ocupa dois espaços ao mesmo tempo. Isso mesmo, como gatos de Schrodinger? Sim, como os donos dos gatos na verdade, presos em casa e sozinhos. Estamos dentro da caixa de areia de quatro paredes e, ao mesmo tempo, estamos fora, porque o mundo lá fora – proibido – se refez inteiro dentro da caixa. É como se nós, a mais refinada versão desse Homo Sapiens que tem qualquer informação em segundos, estivéssemos criando de novo uma ficção para acreditar nesse mundo coloidal: uma mistura heterogênea que sempre se finge uniforme.

E no meio desta revolução química, declarada por uma copiadora genética de um virus micrométrico, ocupamos mais uma fronteira incólume. A fronteira exata, bifásica, entre um passado tão frágil que já se foi e um futuro que já nos espera. Como se esse passado tão documentado, que nós falhamos tantas vezes em acreditar, nos punisse se pulverizando. E como se o futuro tão chato e distante, distante socialmente falando, já não nos suportasse e fugisse. É difícil a metafísica… mas tudo que queria saber, se pudesse perguntaria aos coaches quânticos, é: como sair da caixa dualista se estamos dentro e fora dela?

Larissa Zipoli (25/6/2020, São Paulo, SP)
 

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Aqui dentro suspiro

As coisas têm feito mais barulho ultimamente. Ouço um galo cantar, pontualmente, às três e meia da manhã. Penso, estão os galos ansiosos como o ser humano ou cantam em desespero porque o mundo dos homens está suspenso? Às três horas da manhã, normalmente, ainda estou acordado (por isso sei do galo), e a madrugada é uma hora estranha, guarda um mistério sedutor, um medo lânguido, me deixa alerta. Se ouço vozes na rua, penso que falam de mim — não que saibam quem sou, provavelmente nunca viram meu rosto, mas deixo sempre uma lâmpada acesa como quem comunica "olha, tem gente em casa, está acordada e alerta", então talvez pensem que tem gente na casa acordada e alerta. Ou talvez: por que a pessoa está acordada e alerta?

Acordado e alerta, suspiro: quem canta em desespero pelos homens deste mundo suspenso?  

Caíque Gomez (21/06/2020, Niterói, RJ)

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Segundos de silêncio

Por alguns segundos, hoje, fiquei em silêncio. Foi um silêncio contemplativo. Nem foi depois da meditação, foi antes. E eu já estava no computador. Por alguns minutos, consegui ficar tão presente no momento presente que o silêncio não foi constrangedor ou incômodo. Foi simplesmente como foi: silêncio. Por alguns minutos, não me distraí com o que eu tinha que fazer, com a roupa esborrotando a máquina de lavar desligada, incapacitada de funcionar por causa da chuva: vou lavar pra quê se não vai secar? Por alguns segundos, fiquei compenetrado na leitura que nem sequer pensei no tempo que estava pensando há uns minutos, logo após o despertar do despertador. Agora, tento emular, tento imitar: quero o mesmo silêncio. o físico, consigo desligando o som. Tirando o fone. Deixando minha irmã dormir mais um pouco e prestando atenção na chuva que cai nessa manhã. O imaterial, que só estava na minha cabeça, esse, já foi. As notificações já chegam e eu começo e me distrair a cada nova informação que tenho. Rolei o feed por alguns minuto e postei vídeos no stories, esperando por resposta fico ainda mais distraído. Berenice, minha gata, agora passa pela minha frente mais de 5 vezes, em busca de atenção. É como eu. Não posso olhar pra ela. tenho que fingir desinteresse.  

João Hiago Peixoto (21/6/2020.Natal, RN) 

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O dia da marmota, ou o Feitiço do tempo

Caminho pela casa inspecionando cada canto de cada cômodo. Na pia da cozinha não há um copo sujo sequer. A sala está perfeitamente arrumada. Afinal, há meses nenhum amigo querido se senta em suas poltronas. Nos banheiros, as toalhas estão frescas e penduradas com aprumo. Na cama, lençóis perfumados de lavanda me lembram com nostalgia da última primavera em Paris. Nosso escritório está num desarranjo aceitável de quem trabalha em casa. Com certo alívio, verifico que tudo continua em ordem para começar o dia amanhã. 

De repente, me vem um certo pânico de não haver amanhã. Uma canção soa nos meus ouvidos: I got you babe! Levo um choque e descubro que estou emboscada numa espécie de armadilha do tempo. Como naquele do filme de Bill Murray. E a canção continua martelando meus ouvidos: I got you babe. I got you babe.

Não sei se você se lembra do filme Feitiço do tempo, se tem idade para tê-lo assistido. Nele, Murray é um repórter meteorologista, Phil. Muito a contragosto, Phil terá de cobrir pela quarta vez o “Dia da Marmota” numa cidadezinha da Pensilvânia. Reza a lenda que todo dia 2 de fevereiro uma marmota prevê se o inverno vai durar ou não, por mais seis semanas.  

Depois de gravar a previsão da marmota, Phil e sua equipe estão prontos para pegar a estrada, quando são surpreendidos por uma tempestade de neve e obrigados a voltar a seus hotéis. 

No dia seguinte, Phil acorda outra vez com I got you babe tocando no despertador. E se dá conta de que o dia é exatamente igual ao da véspera. Resumindo a história, dia após dia Phil experimenta a repetição do dia da marmota. E aí a ficção engole a realidade, a minha  realidade. 

Nesse tempo de pandemia, todo dia tem sido assim a repetição do anterior. Tenho como auxiliares apenas Matilda, a lavadora de pratos e Margarida, a lavadora de roupas. Por sua vez, a tábua de passar ainda não conversa com o ferro, nem o aspirador de pó aprendeu a andar sozinho. 

Se por um lado a repetição das tarefas domésticas parecem cansativas, de outro a ficção aqui também encontra a realidade. No filme, Phil descobre as armadilhas do tempo e aproveita a repetição desses dias para aperfeiçoar alguns dos seus talentos. Torna-se um bom pianista, excelente escultor em gelo e perde o mau humor, fazendo-se empático e generoso. Você percebe alguma semelhança com os vídeos que pipocam no WhatsApp?

Bem, apesar da repetição dos meus dias, sou ainda pianista medíocre e estou aqui arriscando uma crônica, talvez sem sucesso. Meu tricô ainda não saiu do básico. Mas o cardápio diário está cada dia mais caprichado e não há mancha que resista às novas misturinhas caseiras. Passar aquela toalha de linho da mamãe já não é mais mistério. Descubro, enfim, que são com essas pequenas coisas que o tempo brinca conosco. E apesar disso, continuo acalentando meu sonho de consumo mais recente: uma máquina de lavar… compras.

Mara Rúbia Arakaki (20/6/2020, São Paulo, SP)

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Os olhos vermelhos nas fotos

Corrigir os olhos vermelhos nas fotos, era o que ele queria. Fotos antigas, analógicas, acervo de uma vida, que ele vinha digitalizando. Libertas do celulóide, até o amadorismo com que foram feitas poderia ser retocado. “Agora selecionem Purple!”, disse o jovem professor. “Purple, a cor, como a banda, o Deep Purple, tan, tan, tan, tan, tan, ta-ran…!”, continuou o rapaz, que sabia comunicar-se com todas as gerações presentes em sua aula de Gimp. “Vô, é aquela música de que você gosta!”, e os olhos do menino brilharam ao dizê-lo, deslocando-se da tela do computador para o rosto do avô ao seu lado, recebendo como resposta uma piscadela marota do homem, e juntos continuaram: “Tan, tan, tan, tan-taaan!”. Ao neto já havia contaminado com o rock’n’roll, sem esforço, pois o moleque nascera com o espírito inquieto, adotando naturalmente a trilha sonora dos contestadores… Como ele mesmo havia sido um dia, o espírito em chamas, pronto para mudar o mundo! O mundo mudou, foi tão longe que até parece ter-se contornado a si mesmo e voltado ao mesmo ponto. Fingindo ser diferente, continua igual. Os mesmos problemas ainda, mas transfigurados, sorrindo de volta a quem inadvertidamente os encara, conduzindo os incautos para longe dos perigos da lucidez. Parece que o fogo aceso por sua geração tornara-se brasa adormecida. A geração seguinte não aceitou conduzir a chama. Às vezes lhe parecia que um vapor opaco emanava de seu filho, quando ele se deixava cair pesadamente no sofá, depois de um dia exaustivo no escritório. Uma geração inteira virou fumaça… Mas o neto era diferente! Ah, essa criança tinha uma vivacidade, uma clareza de pensamento, tanta coragem… “Vô, as coisas do mundo são como água, tem que espalhar, se acontece um lago num canto, acontece um deserto no outro”. O avô percebeu que sua verdadeira herança já havia sido passada e aceita, herança que vai além de músicas e fotos, que não pode ser digitalizada, nem precisará de retoques, nunca: a chama, o fogo da vontade que incendeia o espírito e acende o olhar!… Desistiu de remover o brilho vermelho nos olhos das suas fotos antigas.  

Marcia Santos (17/6, São Paulo, SP)

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O problema do pixel

Os olhos sempre me atraíram, gosto das pessoas que sorriem com os olhos. Agora, vê-los é tudo o que há. É quase obrigatório sorrir com os olhos. Um riso forçado, doído, algo como uma expressão de “sim, estou rindo, veja em meus olhos.” Os meus são castanhos escuro, tão escuro que quase não é possível ver a pupilas, como dizia meu pai: “olhos de jabuticaba”. É, eu gosto mesmo dos olhos castanhos, aqueles em que a luz se propaga, possuindo o movimento, o mundo, abrigando o espaço-tempo, a música, a cor. Forço-me para buscar a lembrança dos olhos. Só consigo lembrar de bocas e narizes. bocas envoltas de barba que bebem café gelado, boca de barba recém-feita que bebe suco, boca delicada que bebe cerveja e aquela que fala: amiga! Os narizes tristes, os redondos, os grandes, os pequenos, os arrebitados… Sabe de uma coisa? Tenho mesmo é saudade dos narizes e bocas.

Não sou eu

Há 30 minutos estou encarando um reflexo estranho, não reconheço essa imagem. Não me reconheço mais, me perdi em alguma videochamada. estou sempre pixelada, não vejo mais os meus olhos. Não há profundidade e nem vida. Vejo as olheiras, o cansaço, o cabelo branco, a pele seca. É mais do que a perda da aura pela reprodução: é a perda de mim. não existem pixels suficientes, é quase uma realidade abstrata. Não sou eu.  

Bruna Bonfim Guimarães (16/6/2020, São Paulo, SP)

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Cinco minutos

 “Tic tac, ainda é nove e quarenta”. Sabe aquela música? Então… Evidentemente, essa prisão aqui nem se compara com aquela, mas o relógio aqui fora (ou melhor, aqui dentro) também anda em câmera lenta. 

Preciso escolher o próximo livro que eu vou ler. Eu tenho sofrido com a dificuldade de concentração. Acho que é normal nesses tempos, mas a última coisa que eu quero agora é me sentir inútil e alienada. Isto não é uma crítica, se você não está lendo. Eu adoraria não me sentir culpada por isso.

Então, eu bolei uma estratégia: leituras mais rápidas. Poesias, crônicas, novelas, contos. Não exige tanto tempo de concentração, então, solução perfeita. Quando surge na mente aquela imagem de um pássaro azul no lombo de um camelo, pronto, a leitura acabou.

Aliás, eu devo contar, meio em forma de confissão, que eu reli pela terceira ou quarta (ou talvez quinta) vez “Cartas a um jovem poeta”. Sabe aquele relacionamento que você quer muito que dê certo, mas percebe que vocês não tem nada a ver um com outro? Pois é. Mas nunca poderão me julgar por não ter tentado. Tentei, de novo. Não rolou. A primeira vez, eu devia ter meus 18 ou 19 anos, uma professora do teatro disse maravilhas sobre ele. Que a cada vez que ela lia, o livro adquiria um novo significado, que ele se encaixava perfeitamente na vida, na profissão, em tudo. Enfim, a Bíblia não chegava aos pés daquelas cartas. Bem, eu odiei. Devo ter comentado alguma coisa com ela e me lembro vagamente de ouvir um “tenta ler de novo em outra ocasião, pode ser culpa do seu momento”. Sabe-se lá o que ela quis dizer com isso. Poxa, como alguém demora tanto tempo pra responder uma carta? O outro ainda espera? Responde de volta? Olha, Rilke, eu vou tentar novamente daqui uns 5 ou 10 anos. E se não rolar de novo, vou desistir de você. Desculpa, mas… tem outros na fila. 

Aliás, sim, eu vou repetir o “aliás” no começo da frase de novo, porque eu não estou preocupada em ser culta agora. Só quero mesmo desabafar, pode ser? Continuando…

Aliás, um desses que estava na fila era João Antônio. A nova edição de “Malagueta, Perus e Bacanaço” era o motivo que eu estava esperando pra finalmente ler. Antes, eu tinha a desculpa do livro estar esgotado. Mas, puta merda! Ei, eu posso falar palavrão aqui? Bom, se não puder, vocês cortam, tá? É só um “puta merda”, afinal de contas. O fato é que a minha estratégia foi por água abaixo. Olha, acho que tirando a primeira vez que tentei ler o livro de cartas do Rilke, nunca tinha demorado tanto tempo pra terminar um livro tão pequeno. Eu até gosto de sinuca, mas precisava daquela peregrinação toda? Olha, desculpa também, João Antônio, a culpa deve ser minha. Tanta gente gosta de você. Eu não duvido que você seja ótimo e até comprei o “Leão de chácara”. Mas esse eu vou deixar pra depois. Pra não correr o risco de julgar precipitadamente, no embalo desse nosso primeiro encontro mal sucedido. Vai dar certo. Tipo aquele beijo que não encaixou, mas com o tempo vai se ajeitando, sabe?

Olha, não pense você que agora eu vou dizer que desisti de ler qualquer outro livro, que aceitei o fracasso da minha estratégia, que eu vou ler um só daqueles clássicos enormes só de raiva até o fim dessa desgraça de quarentena. 

Não vou…

Nem toda leitura foi frustrada.

Não sei exatamente quando eu comecei a ler crônicas, mas desde que eu comecei, não parei mais. Qualquer coisa que chamava “crônica”, eu estava lendo. Podia ser uma lista de supermercado, mas se tivesse lá “crônica”, eu lia. Numa dessas, eu descobri que tinha uma certa preferência pelas crônicas cariocas. Daí, eu cheguei no nosso amigo Paulo Mendes Campos. Olha, está aí um mineiro que sabe retratar o Rio de Janeiro. Peguei uma coletânea sua e… foi só alegria! Fui engolindo uma atrás da outra sem parar. Rubem Fonseca? Mesmíssima coisa. Uma bela de uma caixa de bombons caída do céu depois de um término de relacionamento.

Que horas são, hein?

Putz!

Ainda são nove e quarenta e cinco

Tatiana Vargas (13/6/2020, São Paulo, SP)

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Dormir? Como assim, dormir?

Nessa pandemia descobri que sou rica. Que culpa, que dor! Confinada, rica e culpada. “Rica, rica mesmo?” — ora perguntareis. Bem, sinto-me rica por não precisar sair de casa, pelo meu mais ou menos confortável home office, por poder seguir pagando as parcelas do IPTU e por ter computador com internet, comida quente, cama macia, lençóis limpos, Netflix e livros, muitos livros ao meu inteiro dispor.

Rica porque posso sentar no meio do quintal (tenho quintal!) e abrir uma cerveja no meio da tarde de um dia no meio da semana. Será que sou meio rica? As imagens da TV e da internet me dizem que sou inteiramente rica. Meu conceito de luxo mudou. Minha filha está com o filho e o marido no sítio da sogra no meio das montanhas desde o início da pandemia. Com vista para um lago e tudo. Sem TV e com pouca internet. Ela é muito rica. Luxo puro nem saber o que é usar máscara, apanhar na horta as verduras para o almoço, ver o filho de dois anos correndo pela grama alheio a vírus, mortes e quarentenas. Mas ambas nos sentimos culpadas e tristes.

É impossível sentir paz no coração em meio a tanta mortandade. Tive a fase da empatia. Entrei em vaquinhas pra comprar EPI’s pro pessoal da linha de frente das UPA’s da minha cidade, pra doar cestas básicas e pra pagar cachês virtuais a artistas que fizeram das lives e podcasts o seu ganha-pão. Depois da empatia, da tristeza e da culpa passei à raiva, muita.

Aí fui pro Twitter xingar. Ninguém sabe quem sou por lá (acho). Tenho muitos seguidores, acho que todos ou quase todos pensam como eu. Seria muito masoquismo seguir alguém que xinga durante horas aquele a quem vocês chamam de mito. Ei, não se ofenda. Aposto que pensou “vocês quem, cara pálida?” Se aquele a quem chamam mito não mereceu o seu voto em 2018, então bora pro Twitter xingar comigo. Ou para as ruas. Muitos não conseguiram esperar a bola do coronavírus baixar, meteram suas máscaras e foram pra rua enfrentar o fascismo. Quem poderia supor que um dia enfrentaríamos uma pandemia viral e o fascismo ao mesmo tempo? Aí vem a culpa de novo com seu dedo acusador em riste dizendo “quem liga pra vírus ou fascismo quando não tem o que comer?” Não tá fácil, mermão. Dormir está fora de questão. Sonhar, então… Só quando a pandemia, o fascismo e a fome acabarem. Fim.

Rosana de Mont’Alverne (2/6/2020, Belo Horizonte, MG)