Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: julho

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

24jul2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

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Os carros dormem na garagem

Carros adormecem na garagem. Ninguém circula.  Daqui de cima, ele é o único em movimento pelo pátio do condomínio. Um ponto que se desliza pelo chão. É um ponto ruidoso “roc-roc” de vassouras, tesouras de poda, mangueiras, carrinhos de lixo. Ele pisa na terra e seu corpo executa tarefas “imprescindíveis”. Naquela quietude fúnebre, move-se, logo existe?  

Privada de “chão”, no quinto andar, assumo feições virtuais. Mediada por múltiplas janelas – computador, televisão, e essa janela da sala de onde eu o vejo -, executo tarefas! Reuniões, lives, recursos de plataformas “imprescindíveis”. Na minha existência pensante, existo? 

Na cota zero, um corpo se desloca em transporte público, atende pessoas, esfrega, descarta lixos. Rotina estafante e de vulnerabilidade ao vírus. Acima, protegida do contágio, dias de pijama, pedidos pela internet e, não menos estafante, uma disponibilidade a “qualquer tempo” para o trabalho. Rotinas empobrecidas pelo isolamento. Para ele, um duplo isolamento – social e sanitário!   

A que está reduzida nossas existências, obedientes ao trabalho “imprescindível” e ao “isolamento”?  

De vez em quando desço à “terra” (com mãos lavadas). O ponto abstrato da janela assume cor – preta – e sotaque – francês senegalês. Sorrimos (acho): a máscara encobre, mas nossos olhos sugerem. Porto um pote impregnado de outras contaminações invisíveis e microscópicas, para compartilhar alimentos e culpas. 

Eu subo para a minha “torre”, ele, para o apartamento de três quartos que divide com outros seis senegaleses.  

Nossos corpos seguem consumidos pelo vírus. Estamos contaminados! Terrivelmente contaminados pelo medo, obediência e indiferença. 

Ana Elísia da Costa (28/07/2020 – Porto Alegre, RS)  

 
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Enquadro 

 

Dentro dos 25m² me encontro comigo mesma. Meu reflexo está nas janelas alheias da parede a frente e delas vejo o recorte diário de vidas em confinamento. É o cigarro que se fuma às 16h40 ou a persiana que se abre as onze da manhã, as sacolas postas ao sol ou máscaras no varal.  Trivialidades da realidade pandêmica ou do novo normal. 

Dentro desse quadrado, assumidamente meu universo em cubículo, percebo que no fim da tarde o Bem-te-vi canta de frente a minha fresta e assim resgata a leveza da natureza e me traz a memória de paz.  

 

Da minha janela, me prendo no pequeno quadro que emoldura o dia e acompanho as nuances que colorem o céu. Do amanhecer ao anoitecer, são mais de cinco tons de azul. Observo-as mudarem gradativamente, ganharem pigmentos de nuvens brancas ou até mesmo as cores do arco-íris que surgem inesperadas. Me atenho ao que me relembra dias completos e assisto sentada frente ao computador ele nascer e findar num torpor de quarentena sem fim.

 
 
Kelly Kristiny (28/07/2020, Rio de Janeiro, RJ)
 

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Adotei um gato

Sou professora, moro sozinha e estou de quarentena desde março, com muito medo, pois tenho bronquite asmática crônica. Sempre gostei muito de escrever, então tenho aproveitado o tempo para isso. É uma ótima forma de lidar com as emoções. Também, no decorrer da quarentena, iniciei um namoro com uma mulher com a qual já estava saindo desde o inicio do ano. Adotei um gato, o Frederico Pudim, pra não me sentir tão só. Tem sido um momento de me permitir, estar em minha presença, me aceitar. Comecei a pintar, escrever mais e aos poucos estou perdendo a vergonha de expor meus pensamentos, seja através da escrita ou de lives, por exemplo. Aqui estão algumas coisas que escrevi até então:

Entrei em um portal, fui parar em um lugar onde o tempo não existe. Sem compromissos, horários a cumprir. Não importa mais que roupa visto ou mesmo se visto algo. O que restou é o mais importante: sobreviver. O que penso sobre viver? Respiração, alimentação, hidratação. Quanto tempo conseguimos viver sem tocar outro ser humano? Quantos já faziam isso antes, tocando peles e não pessoas? Agora não tenho escapatória, vou precisar me encarar. Sem fugir, nem desculpas. Não é mais possível disfarçar o medo, a sensação de abandono, a solidão, que já faziam parte da minha vida. Uma vida cheia de afetos, artes, movimento, mas mesmo assim com tantas coisas por resolver, tantas inseguranças, dores e novamente o medo. Precisamos dele. Para continuarmos vivos precisamos abraçar tanto nosso medo quanto nossa esperança. (16/03/2020)

BASTA

Não sei nem o que falar
Não posso sair
por medo de não conseguir respirar.
Mas também não posso ficar
parada.

BASTA

Morte
Fome
Injustiça
Preconceito
Sangue
Lágrimas
Estou queimando
Fervendo de indignação
Assim como já foram queimados
Sonhos
Esperança
Vida
Dignidade
Não sei bem o que fazer
Só sei que BASTA.

(01/06/2020)

Pássaros, céu, nuvens, sol
Ar, somos, sentimentos
Vento que parece falar:
Onde isso vai parar? 
Medo, confusão, indiferença
Maldade, ignorância e morte
Outro dia, ainda há vida
Ainda é possível desejar
Ainda é possível desejar?

(21/06/2020)

Isolamento sem selfie
Cabelo que cresce
Pijama no corpo
E muito estresse
Todo o tempo do mundo
Pra criar paranóias
Um pé na cama
E outro nas bóias
Imagino histórias
Ativo memórias
Surto, durmo, relaxo
Não sei bem o que faço
Escrevo, leio
Nem me olho no espelho
Encontro comigo
Acabou o rodeio.

(08/07/2020)

Harmonia

É preciso coragem
para ser inteiro
Quando você
já foi partido tantas vezes
a ponto de não saber mais quem é
Partir
Parto
Participo
Escolho meu ouvir
e compartilho.
Não basta a doçura
quando a realidade é dura
É preciso dar voz
É preciso ser voz
Para que
Talvez em algum momento
nem que seja por um instante
Haja harmonia.

(20/07/20)

Essa última poesia escrevi para ler após minha participação em uma live sobre gênero e sexualidade na escola. Falei sobre minhas vivências na escola e na familia em relação a minha sexualidade. Foi um momento muito marcante, pois não faz nem um ano que precisei sair escondida de casa. Mas foi um alivio poder ser eu mesma, compartilhar minha história, ser ouvida e receber o apoio das pessoas.

Vamos abraçar a distância?
Distância do outro
Mas perto de si
Isso é fazer o possível
Agora

Josicler Formenton (27/07/2020, São Leopoldo, RS)

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Tempo do “re”

É o momento de olhar com outros olhos o tempo que passou e o tempo que virá. Nos dias de hoje, aprendi que vivemos no tempo do “re”: refletir, reconstruir, ressignificar, reaprender, reinventar… É tempo de mudanças na vida de cada um de nós, de sermos pessoas melhores quando tudo isso passar. Tempo de sermos mais amigos de nós mesmos e dos outros, claro. É tempo de ter mais empatia sim, mas também de ter mais compaixão, respeito, amor e entender o lado do outro, seja lá qual for esse lado. Hoje, vivemos o tempo de esperar. Muitas vezes, temos que aprender a ser pacientes. Não é nada fácil, mas precisamos aprender que tudo tem seu tempo. Tudo vai fazer sentido no tempo certo de Deus. 

Não tenho dúvidas que os dias melhores chegarão. Então, vai ser o tempo de outro “re”, o realizar, de fazer com que os sonhos de hoje sejam realidade no futuro. Graças a Deus, pude realizar sonhos neste começo de 2020, pouco antes da pandemia aparecer no mundo. Tudo que vivi permanece aqui dento de mim. Infelizmente, muitos outros sonhos tiveram que ser suspensos, mas sei que é somente uma pausa, uma vírgula, e não um ponto final. Em breve, eles vão acontecer. Até lá, fico por aqui. Escrevo. Colocar no papel ajuda a abrir o coração. 

Vinicius Lopes Dotti (26/7/2020, São Paulo, SP)

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A vida através da janela

Quase todo fim de tarde quando o céu se pinta em aquarela, eu me pergunto: “Que foi que eu pedi dia 31 de Dezembro de 2019 quando o relógio bateu 00h?” Te juro que tento lembrar pra ver se encontro alguma fala, frase que talvez tenha sido mal interpretada pelos organizadores de 2020. E é assim que estou vivendo esse isolamento social: Com xícaras cheias de bom humor e aroma de alecrim pela casa. Inclusive, te deixo essa sugestão: Pega um raminho de alecrim e queima. Depois, espalha pela casa pois isso afasta todas as más energias e impurezas espirituais de nosso lugar. Prática de vilarejos milenares mundo afora, recomendo.

Também venho saboreando a vida pela janela. É ali, na calma e no caos que a gente entende a vida e chega até parecer poesia, mas é verdade. De manhã cedo o sol invade nossas casas e abrimos a janela para que ele entre e irradie. Mais tarde, vejo a senhora que mora em frente preparar uma xícara de chá que chego a ver a fumacinha saindo e me pergunto qual será o sabor escolhido… Mais ao lado, um senhor que está concentradíssimo trabalhando de casa desde Abril. Sei porque ele senta em frente ao computador pela manhã e sai só a tarde. Acredito que ele tenha terminado pois agora não existe mais um computador sobre a mesa e sim um vaso de orquídeas que espalham graça e beleza para meus olhos. Passa o ônibus do bairro, o senhor que vende ovos frescos e o tão familiar apito do afiador de facas (quem lembra?).

Pela janela eu vejo se o céu será de azul infinito ou de chuva necessária para a terra. Aviões de passageiros, ah… Esses passam poucos mas os cargueiros é todo fim de noite, um evento com todo seu majestoso tamanho e luzes piscando. Dia desses, teve até carro de mensagem daqueles que faziam a gente correr sem nunca mais olhar pra trás na década de 1990. Cantamos parabéns e vibramos junto com a nossa vizinha…Que nunca tínhamos visto. Quando minhas pálpebras começam a pesar e a melatonina se ativa, deito um pouco e vejo o céu corajosamente estrelado e me mostra o quão pequenos somos. Esse sentimento me traz medo, um vazio. Mas também
uma coragem e potência que só quem é humano entende, (não estou escrevendo para aliens, licença poética por favor…).

Da janela eu vejo as pessoas, as árvores nuas de inverno, a chuva, a vida. Eu sou grata por ter uma janela para onde olhar. Mas quero muito poder voltar para as janelas da alma: Os olhos das pessoas. Com riso frouxo, sem máscaras, sem medo e com humanidade. Estamos tateando na incerteza e espero que a gente saia melhor do que entramos porque o ser humano é bicho triste: Só aprende na dor. Enquanto isso, abre tua cortina e contempla seja qual for a vista. Seguimos!

Victória Almeida Vieira (24/7/2020, Porto Alegre, RS)

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Quarentena

Acorda. Levanta. Banho. Trabalha. Café. Trabalha. Almoça. Trabalha. Café. Trabalha. Aula. Comida. Aula. Banho. Dorme. Repete. Repetir. Transitivo direto. Transitivo. Passageiro. Transitório.

Nesses dias de distanciamento nada parece transitório, a ansiedade persiste enquanto os dias se repetem. Iguais. Eu acordo me obrigando a ser produtiva, porque as contas precisam ser pagas, as gatas precisam ser alimentadas e sempre há louça para lavar.

Eu evito pensar nas viagens canceladas, planos, investimentos. Eu não penso nas minhas avós ou no meu padrasto que compõem grupo de risco. Não penso que agora, enquanto escrevo ocorre mais de uma morte a cada minuto. Eu evito pensar na estimativa de 20 milhões de desempregados, enquanto conecto a VPN do trabalho. Eu não penso em qual delírio pueril eu realizei que uma segunda graduação era uma boa ideia. E também não penso no que me trouxe a Campinas, para este apartamento sozinha com duas gatas.

Eu não penso na saudade que sinto da minha família e amigos, nem  na vontade de ir ao forró com litrão a dez reais. Eu não penso na mensagem enviada sexta e não respondida há dois dias. Eu não penso que procrastino até onde posso e não produzo com todo meu potencial.

Mas é tanto esforço para não pensar, que a única coisa que eu consigo é pensar. É contraproducente. É um autoengano. É disfarçar que estamos vivendo bem, quando estamos apenas sobrevivendo, porque as contas precisam ser pagas, as gatas precisam ser alimentadas e sempre há louça pra lavar.

Carol Reolon (24/7/2020, Campinas, SP)

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Daqui do alto

Penso em colocar os óculos pra enxergar melhor as histórias da varanda. Daqui de cima a miopia não me deixa decifrar o que fazes ali, diante de um objeto vermelho-fogo. Acho melhor assim. Parece uma porta, ou será uma tábua que estejas pintando e reformando pra virar uma prateleira da casa nova? Aliás, o que estás achando da nova morada? Não faz muito tempo que a mudança começou. Reparei na movimentação intensa no terraço, obras no telhado. Tinham dias que o som das marteladas e da furadeira chegavam até aqui e invadiam o meu silêncio sagrado. Dias esses que me fizeram acelerar os planos de me juntar à natureza. Como seria acordar todos os dias com os sons da mata? Respiro, sinto forte o cheiro da terra, acalmo. Quando a barulhada começava muito cedo e eu estava na iminência de ceder à irritação, pensava nos trabalhadores que estavam no teu terraço, trabalhando em plena pandemia e se expondo ao vírus. Será que eles moram muito longe? Me perseguiam as perguntas ao longo do dia. Quantas conduções eles deveriam pegar pra estar ali. Quantas aglomerações deviam passar no transporte público pra poder martelar teu telhado e te proteger da chuva. Confesso que gostei de ver vocês se mudando e ressignificando esse espaço-céu. Há quatro anos não via uma movimentação tão intensa nesse terraço em frente à minha varanda. Hoje vou estender roupas e posso te ver folheando papéis antigos. Quais pastas de escritos te interessam e guardas com afeto? Gosto de ver a vida se balançando entre os concretos que nos cercam. Tem dias que você persegue o sol e aproveita pra se sentar na fresta iluminada que banha o terraço. Ah, e tem as fotos. Já vi você pedindo pra tirar fotos suas enquanto seu rosto é tocado pela luz. Arte silenciosa. Fiquei curiosa com aquela arara cheia de roupas brancas que um dia você colocou ao vento. Trabalhas na área da saúde? Fazes algum trabalho de cura? Melhor ainda, são roupas de ir pro terreiro? Desculpe a intromissão dos meus olhos, são tempos de ressignificar as relações e, no momento, além de mim, minhas plantas, meus guardiões, o sol e a lua, você é quem eu tenho de mais próximo. Hoje você estava de vermelho. Laroyê.  

Livia Medina (21/7/2020, São Paulo, SP)
 
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A vida própria das casas

Cês tão ligadxs que a casa tem vida própria né? 
Nunca desconfiaram que “lar” parece verbo?
Pois então: é vassoura arremessada de dentro do armário na cara da gente, é louça que brota do nada suja na pia, é internet que cai, é camisa que mancha na máquina de lavar, é água que evapora em minutos do filtro, é internet que cai de novo, é, enfim, a misteriosa ponta do “plástico filme” que some quando ele embola, e ele embola sempre.
Esse mal humor se explica: ela, a casa, pegou ranço de vc, de mim, de nós. 
Ou ce achou que ia ser fácil reabitar um lugar que vc sempre tratou mais como passagem do que como destino. Lugar do qual vc sumiu nos últimos meses (saudades férias de janeiro e carnaval) e agora fica inacreditáveis 24hrs, direto.
Apesar de meio parada no tempo, a casa tem orgulho próprio. Não espere receber dela flores e cheirinho de desinfetante “lavanda” se, em troca, vc era pura indiferença.
Já alertava aquele pagode 90:

 “Eu não dei valor
Não me dediquei
Ao meu grande amor
Como eu vacilei
Tô doente de saudade …
(…)
Foi preciso perder
Prá aprender a valorizar
A Mina de Fé, a Mina de Fé”

 

A reconquista demanda demonstrações de que “voltou pra ficar”. 
Comece por instalar um home-office, passe por reparar as pequenas coisinhas estragadas aqui e ali e termine por se animar com um dia de sol não porquê vai dar praia ou churrasco com a rapaziada, mas porquê vai dar pra lavar e secar a roupa!
Em retribuição, verá que aquela quina onde antes vc topava o dedinho do pé, serve agora como apoio para a perna numa posição que nunca imaginou pudesse existir.
É a casa te agradecendo: um livro que tomba da estante e parece calhar exatamente praquele momento, uma nota de 50,00 que vc encontra no bolso da calça na hora de colocar na máquina de lavar, a luz do sol que entra pela janela da sala às 15:23 e dura apenas até 15:47 como um eclipse às avessas feito só pra vc.
Como esse poema da Ana Martins Marques que, eu sei, sempre gostou de ficar em casa. E a casa sempre lhe foi grata servindo como “anteparo contra os golpes do dia“: 

 

“Ela procura estudar o modo como a luz se distribui
pelos cômodos a certas horas
e dar-se conta dos pontos de convívio entre o dentro
e o fora, o trânsito pesado nas horas comerciais
a rapidez dos ruídos os acidentes de percurso
sua imagem refletida que vem sujar ainda mais as janelas
que ela não sabe limpar
uma casa, uma membrana entre o corpo e a noite 
um filtro para as formas do mundo
anteparo contra os golpes do dia, onde as vigas
se põem a cantar
ela aqui se sente mais exposta
mais exterior do que interior
como se a casa não fosse doméstica
como se morar fosse uma afronta
à intensidade do dia”

Matheus Brant (21/7/2020, Belo Horizonte, MG)

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Cansaço existencial

Estou cansado. Não é algo puramente físico, muscular, que pode ser amainado por uma noite de sono reparador. O cansaço é existencial. Sou médico psiquiatra e testemunho de forma sorumbática a paulatina deterioração do estado mental de meus pacientes nesta pandemia. Depressão, ansiedade, medo, desespero, paranóia, falta de ar, formigamentos, dores de cabeça, raiva, ressentimento, luto, desejos reprimidos, relações infelizes, carência, desejo de morrer, vontade de aniquilar-se frente ao caos. As palavras são meu instrumento de trabalho. Não possuo estetoscópio ou métodos tecnológicos avançadas para desempenhar meu ofício. Dependo daquilo que é mais simples e mais complexo, e que nos define como humanos. Dependo das palavras, e do léxico dos indivíduos que me procuram em um momento de grande sofrimento. Léxico pautado por condições sociais, por uma política colonialista de dominação de corpos e almas, de desigualdade, racismo, misoginia, culto à morte e ao extermínios dos indesejados. Sou um tradutor entre esse discurso orgânico, espontâneo e real com um conhecimento muitas vezes engessado e preconceituoso da medicina. A palavra, como nos ensina Ossain, é remédio e veneno. Negar a crise, negar o sofrimento, negar as mortes, é uma estratégia meticulosamente delineada de envenenamento em massa. O que fazer então? Resistir, hoje, amanhã e sempre. Estarmos juntos. Sermos a resistência contra um mundo que nos força a ser quem não somos. Palavras entoadas a plenos pulmões, e não somente em expirações sincopadas, possuem o poder mágico de nos transformar, e mudar o mundo.

Thiago Fernando da Silva (17/7/2020, São Paulo, SP)

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O apagar dos vaga-lumes

Acabou a ternura, e não é por falta de aviso. Nesses dias de isolamento caímos em um alçapão, coisa de filme de Velho Oeste, de produção hollywoodiana do século passado. Cá estamos no escuro, sem pavio para procurar acender. E, quanto mais procuramos algo que se pareça com a luz, pouco enxergamos, e não somos animais que se adaptam fácil à escuridão. Nem vaga-lumes que se acendem para se proteger. Por hoje, apagou-se a chama. Repito, acabou a ternura. Não existe mais toque. Amores estão separados por léguas, abraço virou uma triste lembrança de porta-retrato, quando ainda é possível o toque no quadrinho em vidro. O afago virtual nada substitui. Já vi gente que piorou tudo com uma incessante e contínua teclação de bips. 

Sinto falta de andar por São Paulo, fazer o roteiro sentimental, ali pela avenida Paulista, ir trabalhar no Instituto, depois encontrar com o Nathan e ir para Xangri-La, ou, como fizemos nas últimas quartas-feiras, sair para tomar um gin tônica com a Vana. Parece um outro tempo, uma fotografia muito amarelada, um filme antigo que custa a ser revelado e, se não bem anotado e enaltecido, perde-se no espaço tempo. Por isso é importante lembrar, preservar a memória e, sem medo, enaltecer sim o passado. 

Reluto em usar o espaço dedicado a crônica para comentar  outros assuntos que não são as trivialidades que aqui cometo, sem ressalvas. Só neste espaço posso esquecer do mundo, que ainda sou gente de carne e osso, me transformar em um sabiá que toca bandolim ou num gato sagaz que anda todo imponente por uma cidade fictícia, de gravata borboleta, até mesmo um velho mágico que tenta ver cores brilhantes saltando de prédios cinzas da cidade opaca. Resisto como posso para não macular esse pequeno espaço onde posso pincelar um pouco de graça, com ternura, mesmo quando parece que falta matéria para se escrever. 

Não quero pensar no futuro. Vivo falando isso ao Nathan, mesmo que, nos últimos tempos, por causa da distância entre nós, só nos resta enaltecer as ternuras do passado, ou projetar um futuro que julgávamos longe, mas agora nem sabemos se distância é a palavra certa. Perdi a noção do espaço tempo, em dias como hoje me irrito tendo que podar meus ímpetos, sem poder tomar um ônibus e matar a distância. A saudade sucumbe. Hoje, pode ser o contrario: posso eu morrer pelo ímpeto de matar a distância, é uma roleta russa que o germe produziu, a todo momento julgamos e desjulgamos atitudes, pensamos excessivamente para nos comover com o noticiário de quinta categoria que explora as emoções dos pobres coitados que arfam até o fim de suas vidas. Temos emoções? Talvez alguma, sim,rareia cada vez mais conforme os dias são escuros e turvos. Não há ternura que resista. 

É difícil para um ficcionista vaticinar que as fadas morreram, que os canaviais são meros hectares de capitalismo sujo que mancham as paisagens da infância, como quando eu ou você percorríamos aquelas estradas que cortam os campos de cana de açúcar. Parece um sonho muito, muito distante. Viajar, amar, correr, fazer um piquenique com os amigos, ir a uma festa no sábado à noite, abraçar uma pessoa muito querida que, por acaso, a encontramos depois de dez ou quinze anos, e ao olhar as feições falávamos em alto e bom tom “Como você mudou?”. Hoje não, estamos todos obrigatoriamente mascarados para correr o mínimo risco de estar na roleta russa. 

Não tenho sossego, à noite tem vezes que não prego os olhos, sonho que estou sem máscara andando por uma rua Augusta repleta de fantasmas, turva, suja, sem um pingo de vida, completamente lotada por zumbis que percorrem lojas abarrotadas de roupas, e letreiros luminosos anunciam um mundo diferente. 

Tenho medo do sonho se tornar realidade, do absurdo superar a ficção. De baixar a cabeça diante do vírus, do toque nunca mais ser possível e, a partir de hoje, os computadores isolarem cada pessoa em sua respectiva casa. Dizem que no futuro assim será. Sem abraços, apertos de mão, sem beijos no cinema, na vida real, então? Temo que chegamos aqui, nessa distopia que é 2020. Sinceramente, não quero pensar na possibilidade da ternura ter acabado, mas não sei… Todos os dias insisto em mudar o tema da crônica, falar de outra coisa mais leve, com graça, lembrar os bons momentos, prestar homenagens aos amigos, lamentar o amor quilometrado, e ressaltar a falta que eu sinto, que nem a poesia, nem a esperança, nem o futuro podem me dar, se não o toque. 

Por um momento, esqueço que os políticos são uns merdas, que a vida está um caos lá fora, que os bancos e os empresários são oportunistas e genocidas, que as coisas não vão bem nos hospitais e os enfermeiros morrem. Que o ano que tinha potencial para ser muito, forjou-se numa vala comum, profunda, fétida, repleta da escuridão. E não há perspectiva ou referencial, nem um exemplo a seguir. E nas ruas muitas pessoas andam sem máscara, uns tolos não acreditam na letalidade do vírus, põem em risco vulneráveis por não terem o que fazer. 

E os ímpetos são impossíveis, não posso embarcar em um ônibus com destino à Vereda do Miocárdio, Minas Gerais. Mal posso me reunir com os companheiros em um bar na Consolação, ou simplesmente dar um aperto de mão no carteiro, até nos sonhos sou assombrado com a peste. O encontro que nunca chega, as valas que abrem, os alçapões misteriosos que temos medo de despencar e de lá nunca mais ver a luz. Cada vez mais vaga-lumes se apagam, e esse seria um lindo texto, não fossem as circunstâncias do fim da ternura definitivamente, lá fora uma noite engole as plantas, as fadas, as outras fadas e o que vier pela frente.

Matheus Lopes Quirino (17/7/2020, Taubaté, SP) 

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Labaredas

o fogo de repente tomou conta de todo o quarto
eram chamas que desfaziam quinas, todas as arestas viravam pó
os gritos que saiam do armário eram de alívio
enfim libertos, mesmo em pó
as labaredas lambiam as janelas
sentiam o gosto doce e fresco da vida lá fora
se alimentavam da brisa
buscavam escapar
cresciam e se espalhavam pelas cortinas
deixavam toda luz entrar
corroíam as paredes que lutavam para não desmoronar
venham ao chão, pilares arredios,
não sejam tão insistentes com o inevitável
as labaredas chegaram e nada ficará,
nem o vazio que antes habitava,
nem o vazio que agora resta
o ar quente levará todo este frio embora
e tudo será uma geometria infinita, indefinida,
entre tempo e espaço
entre dentro e fora
entre eu e você
entre ser e estar
entre ter e deixar
entre, saia

Jana Petaccia (14/7/2020, Florianópolis, SC)

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Um poema

Amar
não restou muito depois que decide, amar
Algumas roupas velhas;
Um livro já gasto
A ultima dança 
Uma lua em câncer 
e talvez, uma lembrança 
O que restou? 
Amar, amar e amar…

Eduardo de Abreu Gregorio (13/7/2020, São Paulo, SP)

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NO RALO

Hoje eu decidi
lavar as minhas mãos.
Pelo ralo vi o medo,
vi a dúvida,
vi a especulação.
E então os vi descer.
E morrer.

SEM MAIS

O boleto
que atrasa
da fronteira
não passa.
A máscara disfarça,
minimiza a garça.
Sem beijo,
sem graça.
Sem mais.

G.R. Slivar (9/7/2020, São Paulo, SP)

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Minha casa é o meu país

Talvez essa frase já tenha sido dita por aí, por alguém. Mas hoje ela saiu da minha boca de forma muito espontânea e ainda foi concluída por uma quase gargalhada. Perguntada sobre como iam as coisas durante a pandemia, pensei brevemente e calculei, num segundo, que tudo se passa aqui, em casa. Tudo que faço é aqui dentro.
 
Já me dei conta que cada cômodo acomoda  duas ou três atividades diferentes, oferecendo cantos distintos para momentos específicos. Multipliquei espaços. Meu escritório, que também é sala de TV, agora mais tem atribuições: dou e assisto aulas, faço grupos de estudos e acompanho e faço as lives relacionadas com esses temas. Além disso, é setting analítico, meu e do meu analista. E, por fim, ainda dá espaço para sala de meditação e curso de mindfulness. Esse lugar rende. Tem espaço bom, iluminação, sol na medida certa.
 
O quarto, esse parece que se manteve como de costume, acolhendo meu corpo para as atividades comumente exercidas lá. Não entrarei em detalhes, cada um sabe para o que um quarto serve. E o banheiro, idem. A sala ficou mais aberta, coloquei os móveis nas paredes dos cantos, virou academia! Yoga, pilates, combat.
 
Meu marido faz caminhada, anda vigorosamente pela casa toda durante meia hora, diz que faz suar. Ele também ocupa a mesa de jantar, ali é o seu escritório. Quando faz aulas, permanece no mesmo lugar. Mas quando vai dar aula, reveza comigo o escritório. Tem funcionado. 
 
Na cozinha comemos e preparamos as refeições. Ela é bem ativa num sujar e limpar infinito. Aproveitei e fiz coisas pela primeira vez: pão de fermentação lenta, essências de laranja e cravo para pães e banhos fitoterápicos e energéticos, e outras receitas de nacionalidades diferentes. Eu e uma amiga trocamos receitas e comidas toda semana, tem sido muito divertido a manutenção de um espaço criativo nesse sentido.
 
A área de serviço permanece com roupas sendo lavadas e passadas e as plantas parecem abaladas pela falta da melhor amiga delas, que limpava a minha casa uma vez por semana e que quarentena também.  No quartinho dos fundos, um cavalete de pintura dele, um espelho para tirar sobrancelha e cortar cabelo, nosso. Atividades básicas de manutenção da vida.
 
Amigos via skype, whatsapp, facebook e instagram. Tá tudo aqui, dentro do celular.

E, como disse eu hoje cedo: minha casa é o meu país.

Simone de Paula (8/7/2020, São Paulo, SP)

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Prumo

Como farelo em queda livre e lenta, letra por letra, ela despenca… E eu, assim, de cabeça para baixo, testemunho a fluidez desse inusitado ato.

R, e, a, l, i, d, a, d, e.

Um dia, quem sabe, a realidade reapareça outra vez, correndo e sorrindo, tentando ajeitar as coisas, rearrumar o que foi perdido, reformar o velho significado que traz consigo.

Talvez, um prumo esteja por perto, reto, pronto para ensiná-la o caminho de volta.

Sempiternamente, haverá uma esperança, ainda que imersa numa graciosa fantasia,

banhada numa iluminada e inexplicável fé. 

Bilhete

Mais um dia dentro da pandemia.

Alguém nos tira daqui, desse lugar incerto,

desse conto funesto, dessa agonia do porvir?

Tempo, será que você consegue? Seja breve, ainda que relute em seguir, ainda que esteja doente também seus pés, seus passos, um puro embaraço. Acelera, Tempo, o seu próprio ritmo. Desfaça seus pesados e bizarros amassos. Encoraja o seu íntimo. Leva a gente e essa doença para dois lugares distintos e longínquos: nós, para melhores futuros; ela, para um passado perdido e amargo. 

Maiana Henriques Almeida Dantas (3/7/2020, Itabuna, BA)

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Como sinto os dias

Frágil. Fragilidade.
é como me sinto. é como sinto os dias.
é como como. é como recolho estilhaços de ontem.
é como tento forçar e forjar uma força. de um hoje. de um amanhã.
mas é difícil.
o mundo. a gente. o tempo. a doença.
estamos vulneráveis.
estamos frágeis.
li, em Briveira, que "ir é o primeiro passo"
e que não se deve pedir permissão para amar.
talvez seja a hora de acolher a insistência da fragilidade.
e amar.
voltar a amar.
seguir amando.
talvez…
talvez ela, a fragilidade,
seja a nossa forma febril de acusar.
de denunciar.
de respirar.
de desarmar desamores.
talvez ela seja a nossa delicada esperança de lutar desarmando as violências do viver em isolado cotidiano.

João Miola (1/7/2020, Porto Alegre, RS)