Viagem à roda de meu quarto,

Depoimentos sobre a quarentena: agosto

Leitores enviam relatos sobre a experiência do isolamento

06ago2020

Gostaríamos de saber como você está enfrentando estes dias de isolamento. Envie o seu depoimento – a tribuna é livre e está aberta. 

Queremos saber o que passa pela sua cabeça nestes dias, quais estratégias você inventou para enfrentar a ansiedade e o tédio, um trecho de uma coisa bonita que você leu ou ouviu, que comida preparou para quem está ao seu lado, ou para você mesmo.

Envie o seu depoimento para [email protected] e nós o publicaremos (trecho ou completo) nas próximas edições da nossa newsletter, no site ou nas redes sociais da Quatro Cinco Um.

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O sabor especial da quarentena

Particularmente a quarentena tem sido de períodos que oscilam como ondas… que vêm e que vão. Ondas ora de dúvidas, ora de certezas e bravuras… Ora de medos e angústias, ora de alegrias bobas, cotidianas!

Para mim tem, no entanto, um gosto especial quando se trata de poder ficar muito tempo (todo o tempo do mundo) com meu filho… Quer coisa melhor? Quase um ano de boas conversas, comidinhas, filmes, oportunidades de resgatar abraços, carinho, afeto, perdão, compaixão, sabedorias… e silêncios também. E todas as maiores dúvidas sobre o que o futuro nos reserva…. Resgate, oportunidades. Este é o tempo de viver resgates e oportunidades.

Lucia Tomsic (21/8/2020, Santos, SP)

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Quarentenas

Dois episódios sanitários, uma "hemorroidinha" fora de hora apareceu e mais tarde, distraído com o celular, ao fechar uma janela quase esmaguei um dedo (agora roxo). Ao me preparar para dormir, para atenuar os incômodos corporais, resgato uma pomada para cada lesão; acontece que, novamente distraído, troco os correspondentes locais de aplicação, o que me leva quase ao pânico pelo risco de uso inadequado das medicações. De noite, sonho: rinoceronte no jardim, ameaçador, estamos acuados, até que tenho um estalo: viva Ionesco!

Alfredo Schechtman (21/8/2020, Brasília, DF)

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Um compêndio de aflições

A alegria muito deve à tristeza. Como um rosto que é lavado rapidamente por um jato de água fria de uma pia gélida e manchada, acordamos de sonhos intranquilos, os olhos repletos de secreção que condensam os cílios. Abandonamos o leito quente para passar lânguidas manhãs apertando calos dos dedos. Cara amassada. Não mais do que o peito, talvez haja um furúnculo cavado no jardim do viço. Tenho dor de estômago quando bebo Coca-Cola pela manhã. O Cantagalo inteiro escuta o meu chiado, enquanto desço as ruas apertando os braços contra a barriga como um filhote de cruz credo, como aquele corcunda de Paris que acabaria no garrote.

Charada: “Posso ser belo, ao mesmo tempo que sou asqueroso”. Está nas escrituras sagradas. Por um cheiro de rosa e tempero indiano, um vizir surge de uma nuvem como um emissário do mau. Tudo não passa de um sonho e a charada me acompanha por um mês, dois. É uma constante cadeia de problemas. Mas não é exatamente tristeza. Prefiro mudar de personagem e ser um tenista com o braço quebrado. Talvez, de pronto, ele não reconheça a beleza de ficar parado, e mande ao inferno a gravidade e os deuses do Olimpo. Do outro lado da cidade, um homem sofre de vertigens, tão fortes que é impossível se quer dar um passo sem estar em um rodamoinho. Ele invejaria o tenista em outros tempos. A água cai de uma boca de torneira em uma tarde feia num rincão. As pás do moinho giram lentamente a água do filete. O tempo está cada vez mais seco.

As flores tristes abrem pela manhã. As cheias de felicidade começam a abrir nos finais das tardes. Elas são secas e gordas e parecem com naturezas mortas tipo óleo sobre tela. Um dia precisei sair para comprar um ramalhete de flor e acabei me perdendo no meio do caminho. Tinha lavado o rosto, estava com um braço quebrado por causa do tênis. Tomei Coca-Cola pela manhã. Me dava gastura e vertigem e nesse momento senti um calor.   Estava no ônibus pensando tão rápido, tão rápido, que não ordenavam meus pensamentos. Pense et nominus, avec m… eu sou amor da cabeça aos pés.

Foi um dia rubro. Tão alaranjado que, assim, parecera plutão. Plutão não, Marte. Eu pensava em coisas malucas assim, enquanto limpava minha flauta transversal para pedir esmolas no centro da cidade. Agora a história começa. Preciso de uma boa voz para contar meus versos, talvez acompanhe um ritmo maluco que não seja propriamente humano. Seja coisa do sobrenatural. Da cruz torta, das galinhas mortas, das tardes quentes, das danças frescas, dos homens crentes. Minha história começa assim:

I

No dia um do descobrimento

Um’Alma pousou na flor, com arrependimento

Arramalhou-se pelo quintal, tocou o umbral

Verteu à terra,

Abriu como flor no inferno

No planeta glacial, fez-se fugidia rameira em busca dos cascos

Como uma égua a parir de Pégaso

Ela mastiga as folhas e flores do destino.

No ano seguinte, nasceu Salvador Dali,

Aquele que domou o diabo e soube plantar a semente exata no vaso

Principiou chuva, sorriso escasso, terra seca, vá embora!

Homem perneta, flor amarela, algo debaixo do braço

II

Era uma menina linda que fazia inveja nas outras com sua caminhada. Tão terna, delicada, fazia as flores suspirarem, com medo de que enveredasse a canteiros terrenos. Como podia, jovem menina, arramalhar-se com o cravo vadio. Aquele espécime que crescia como erva daninha, bico de harpia. Vazio, ali no jardim do vizinho. Esperando o beijo tácito da menina que passava com a pasta do grupo escolar debaixo do braço. A história se estendeu até o jardim ser consumido pela mata, a mata pela floresta, a floresta pela promessa, a promessa pelo fogo, o fogo pelo ocidente e o ocidente por um pássaro proibido que partia das margens do mundo. Como um aviso prometido ao cravo, que murchou ao fim do dia, quando não foi colhido.

III

A colher que leva o remédio até à boca é um tanto cruel. Não é de porcelana ou barro, ouro ou prata, não é de plástico ou de papel. É uma colher de madeira, cuja concavidade suja é lavada por água fria, da mesma pia que lava o rosto quente pela manhã. Que desperta da vertigem o homem ensandecido, que dá água ao tenista depois do jogo, quando a tarde é tão quente, mais tão quente, que mais se parece Saturno a terra, embora as matas cresçam ao meu redor.

IV

Mentira. Eu não quis dizer isso.

Mas disse.

Eu não quis fazer.

Mas fez.

Não faria outra vez.

Não acredito.

A culpa não foi minha.

E de quem diabos foi?

A culpa é do destino.

O destino. Esse menino caiçara sem mar, essa flor que murcha nos finais das tardes, este tenista com os braços quebrados. Este homem que cambaleia até ir ao chão. Esta torneira emperrada que não lava a cara. A colher que derruba o veneno antes dele penetrar minhas veias, minhas vísceras, contar meu viço, me fazer serpente.

V

Eu o amo na medida do inexpressável. Como um universo que é feito por uma força, não remedeia as ordens de deus, esse anfitrião do destino, que serve uns uísques para cada astro na sala escura. Ele está comigo neste momento, uma mão sangra e a outra reluz.

VI

Arrependimentos. Sofrimentos. Paixões aterradoras. Casos fugazes. Um bom currículo. Uma fixa meio limpa, meio suja. Uma garrafa de cerveja enterrada em uma praia deserta, onde nenhum ser humano nunca pôs os pés. Uma nota baixa no colegial. Os planetas alinhados. A primeira mordida. Um pão de fermentação natural. O primeiro sexo. O segundo sexo. O terceiro sexo. O último sexo. Uma casa com encanamento de gás natural. Uma mulher perfeita, como a virgem maria. Um vago pretexto para escapulir. Muitos perigos que rondam os sonhos. Uma perna quebrada em um jogo de tênis. Um monstro inventado para me por a dormir. Um outro dia nascendo. Uma cor diferente. O vermelho e o negro. Uma possibilidade de amor sincero. Um saquinho de frutas secas caídas. Um chá de cúrcuma que mata insetos. Uma frase sem sentido dita depois da outro. Um arrepio do avesso. Um soluço que imita um sussurro. Um tempo pecaminoso à frente. A eterna culpa descansa.

As aves põem ovos nas praias desertas. As almas trafegam pelas vias férreas. Uma mãe chora no rosto do recém-nascido, recém morrido. A cabana é destruída pelo vento. O ardor é um dos ingredientes da prosa afobada. O lírio é um homossexual enrustido. O cravo, um canalha. A begônia é uma dona obesa e tímida. A calêndula é uma senhora transcendental.

Sexo tântrico. Musica alta. Açaí, avião. Djavan, Djavú. O carro anda uma milha no escuro até parar no meio da estrada.

Há um buraco entre a próxima estrada e a pausa.

Uma lebre rasga o caminho e é arremessada feito uma corça por um bisão.

Estamos trabalhando sem acidentes há 48 dias, exceto pelo coelho, que não deveria estar onde está.

Matheus Lopes Quirino (24/8/2020, Taubaté, SP)

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Preces sem pressa

Descobri que meu vizinho ouve música clássica, religiosamente, às três da tarde. Aquele encontro caloroso com o caleidoscópico feixe de luz d’Oeste começa pelas quatro. Existe um sino que ressoa aqui no Alto da Lapa no mesmo ritmo da minha respiração. Ainda não entendi muito bem os horários deste.

Rezo para que eu tenha a resposta até o fim da pandemia.

Fabiana é o nome de uma das moças que recolhe o lixo do prédio e fiquei sabendo também que ela gosta muito de vinho gelado em lata — mas só do tinto, que esteja claro! Dia destes, vi pela primeira vez o cachorro escandaloso da vizinha dos fundos e agora que eu sei que ele é um poodle branco tudo fez muito mais sentido.

Reparei em quatro gavetas embutidas na mesa da cozinha que ninguém usa e pensei: “Como que #¿$?%! eu nunca vi isso antes?”. Dentro, jogo americano de macramê, rolhas, panfletos, um maço de cigarro.

Rezo para que eu encontre mais esconderijos até o fim da quarentena.

Ignorei o pedido de socorro do meu ciático — vê se pode? Já aos vinte e cinco — e trabalhei largada no sofá molenga da sala furado por brasas. Acompanhei uma cinza que deslizava lentamente e caiu bem pertinho da minha perna. É engraçado… O pouco que a gente olha para a própria perna. Sempre coberta por um tecido: linho, sarja, zibeline, jeans? É o tal do dress code.

Bem, a minha perna estava cinza. Dum jeito que só São Paulo sabe ser vezenquando. Meus pelos camuflavam um grande borrão na panturrilha. Algo parecido com uma… lua? 

Uma lua!

Uma lua em quarto minguante.

Uma lua em quarto minguante que tatuei aos dezoito e nem me lembrava.

Rezo para que eu olhe mais para mim até o fim do mundo.

Assim que caiu a noite, aquela forma rabiscada na minha pele se materializou divinamente no assento etéreo que eu também já não olhava há um bom tempo. E foi assim que, despretensiosamente, apoiada na tela de proteção da varanda, com as pernas para cima, ouvi a vizinha da frente se aproximar.

– Bonita a lua, né?

– A minha ou a do céu?

Júlia Cabral (19/8/2020, São Paulo, SP)

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Já faz um tempinho

Mas está louco. Triste. Eu não consigo acreditar nesses cinco meses arrastados. Numa casa enorme. À espera de boas notícias pra eu me inteirar melhor.

Respirar esperanças, daquelas que me levem ao um país diferente. Com um líder de verdade. Que nada, querida, você, eu, tu, elas e eles estão no quinto mês de escassez. Escassez de vidas, pessoas espionando no lugar de aquietar-se. Talvez um pouco de quietude seja o diferencial.

Hoje não tem praia. Não tem aula. Não tem galera nos botecos. Não tem geral gritando no show de pagode, de rock, de rap, de Chico, de Caetano, de Teresa. Ora bolas, eu até imagino verdades em partes disso tudo. Mas… O povo é dividido: uma parte tá em casa, outra tá no mar curtindo o sol, escolas reabrindo, uma porrada de gente sem máscaras caminhando pra lá e pra cá.

E eu? Convivendo dia a dia com esse novo mundo, velho mundo, vasto mundo, já nem sei mais o significado desse viver. 

Minhas rotinas tomam porres de café, de tantas coisas. A vacina não chega o remédio certo não chega. Por favor, cloroquina não!

Não cura Covid, não cura a estupidez do presidente.

Quarentena, companheira de todas as horas, chega aqui, me abraça. A gente vai se entendendo. Apesar de tudo. Com pesares pelas cento e cinco mil mortes. Por enquanto. Não sabemos até quando haverá tanta dor.

Eu choro calada abraçada comigo.

Já faz um tempinho.

Sandra Lucia Modesto (14/8/2020, Ituiutaba, MG)

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Relatos de um confinado

Quem diria que nossas vidas tornariam-se um roteiro de filme de Hollywood. Confesso que já não sei mais quantos dias se passaram dentro dessa mesma rotina, a do confinamento. Os sentimentos se amplificaram, a ansiedade, o medo e a solidão já não sabem dar adeus, no fim do dia a sentença é sempre a mesma, mais um dia de reclusão. Mas por que não pensar então que fomos contemplados com mais um dia de vida! Eu sei, é difícil acordar e ver tudo se repetir todo dia . Mas para bem pra pensar, já são mais de 100 mil vidas perdidas. Sonhos, planos e famílias subjugadas pela dor. Pense bem, vale apena agradecer por ainda respirar, por poder se levantar e trocar o sofá da sala, a cadeira da mesa de jantar pela cama quando mais um dia vivo você terminar. Persista e acredite que esse bug no jogo da vida irá finalmente acabar. Liberte-se e conhece-te a ti mesmo!

Rômulo Montan Costa (13/8/2020, Juiz de Fora, MG)

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Quando tudo começou

Quando a quarentena começou, meu filho, um bebê de 6 meses, ainda dormia em meu quarto. Estávamos prestes a fazer a transição para o quarto dele, para testar se ele se adaptaria. A cama dele é um colchão de solteiro no chão, sobre um tatame de EVA bem grosso. Um dia à tarde, brincando com o Camilo no chão de seu quarto, me deitei e me deparei com o céu azul cálido de outono. Olha filho, podemos ver as nuvens daqui. A antiga moradora deixou um “pendente” de material translúcido na janela. À tarde, quando o sol o atravessa, formam-se vários mini arco-íris pelas paredes e pelo chão. Meu filho sempre se encanta sempre com o espraiar das faixas coloridas. Tenta agarrá-las, ainda não sabe de que matéria é feita a luz. Será que eu sei?

No meu puerpério, descobri o mundo dos podcasts. Durante os passeios, ninando meu filho, acolhendo seu choro, seu sono, posso também ouvir pessoas conversando sobre um livro, análises da conjuntura política, o último convidado no Roda Viva. Ontem ouvi o podcast da 451 com o Antônio Prata. Lembrei de como ri lendo o “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”. É bom poder rir de si mesmo. O texto escolhido para leitura, do bar ruim, é realmente um deleite. Sinto que nos divertiríamos no bar ruim, tomando uma cachaça de Salinas – eu até poderia dar dicas, já que sou mineira raiz e também meio intelectual, meio de esquerda. Meus pais eram do MR-8, minha mãe me levava para as reuniões do PCB, com 5 anos eu já entoava: “Força, ação, aqui é o partidão”. Com 8 já fazia boca de urna. Acho que meu passaporte pra turma tem chances de ser aprovado.

Hoje amanheci com 40 anos. Quarentando numa quarta de quarentena. Sem comemorações efusivas planejadas, posto que sou do time que respeita o conhecimento e a ciência. Junto às minhas companhias preferidas, marido e filho, dono da risada mais gostosa, espero desfrutar meu dia. Sigo tentando me conectar aos que buscam saídas coletivas para esse lugar difícil que nos encontramos da vida nacional, nesse redemoinho de tantas lutas que precisam ser enfrentadas. E nem podemos sentar num bar ruim, receber os abraços dos amigos, fazer a análise da conjuntura política e reclamar do juiz nos jogos do brasileirão. Mas seguimos sonhando um Brasil melhor.

Marina Ferreira Gonçalves (12/8/2020, Brasília, DF)

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Vazamento de gás
 

Você está na sua casa cumprindo a quarentena da melhor forma possível e só sai para ir ao supermercado. O ápice de sua transgressão é pedir comida delivery depois de dois meses cozinhando todos os dias, mesmo não gostando de cozinhar. Com um faro clínico, você começa a sentir cheiro de gás de cozinha, mesmo com todas as bocas do fogão desligadas. Você passa a fechar o registro de saída do gás sempre que termina de usar o fogão e faz de conta que consegue ignorar o vazamento.

 

Um dia você esquece de desligar e sente um cheiro muito intenso de gás. Percebe que não pode continuar ignorando o vazamento e que, provavelmente, você poderá morrer, seja por asfixia, ou por uma explosão assim que te der na telha de fazer o próximo delicioso prato culinário dentre tantos que adora fazer. Você vasculha sua agenda telefônica para encontrar o contato da pessoa que instalou e conectou seu fogão à saída do gás em seu apartamento há anos atrás. 

  • Sim! Trabalho com instalação de gás, amanhã meu pessoal irá até aí. 

Você fica morrendo de medo de receber alguém em casa, mas lembra da possível explosão e da asfixia. 

  • Por favor, diga ao seu pessoal que venha de máscara. É a regra do condomínio. 

Você abre a porta no dia seguinte e lá estão dois homens mascarados. Eles entram e começam a procurar onde está o vazamento com seus equipamentos tipo caça-fantasmas. Um deles, pelo jeito o mais experiente, logo ao iniciar a busca, abaixa a máscara pra debaixo do queixo. 

 

Você olha de longe e não diz nada, mas o orifício de saída do seu intestino poderia cortar um prego, caso você quisesse tentar a peripécia. 

 

Vazamento encontrado, mangueira trocada, até desentupir uma boca do fogão que já não funcionava há tempos e dar um up nas demais o homem desmascarado desentope. Você é medo e gratidão, tudo misturado, apesar de não saber o que fazer com quatro bocas de um fogão funcionando, duas já bastariam.

 

O homem continua com a máscara no queixo enquanto preenche os papéis de realização do serviço para você assinar. Você tenta ficar a pelo menos 1,5 metro de distância na hora de pegar a caneta e o papel. Você assina o papel e dá dois passos para trás. Seu apartamento é pequeno e os dois passos quase te levam à sacada. Quando você menos espera, ouve e vê a movimentação corporal do homem, toda a curvatura armada para colocar para fora um sonoro e perdigotoso:

  • A A ATCHIIIIIIM!

Você não acredita no que acaba de ver e ouvir. A máscara dele no queixo, leva o antebraço e passa no nariz e na boca para logo em seguida dizer:

  • Usar máscara é muito ruim. Não sei como as pessoas conseguem.

Você fica estarrecida, paralisada, junto com o outro homem, mais jovem e aprendiz, que não havia tirado a máscara nem por um minuto. Só o silêncio paira no ar, junto com os vírus que você consegue enxergar a olho nu, maciços, esverdeados, olhando para a sua cara de trouxa e dizendo:

  • Vai, idiota. Não saiu para nada e agora a sua cozinha está infestada por uma legião de nós. 

Você encaminha os homens para a porta de saída e tem tempo de ver o rebelde da máscara colocá-la novamente, cobrindo agora o nariz e a boca. Você é tão idiota que diz:

  • Obrigada. Espero não vê-los tão cedo.

Eles riem e te acham uma cliente engraçada. Assim que vão embora, você limpa o chão da cozinha com Q-boa, lava de novo toda a louça que estava no escorredor e embebeda as coisas com álcool 70. Você só sabe agora xingar e pensar na sequência de mortes possíveis: asfixia, explosão, coronavírus. 

 

Na hora de cozinhar a próxima refeição, o ódio, que já estava arrefecendo dentro de você, retorna em dose maior, porque o maldito, além de ter espirrado sem máscara no meio da sua cozinha, ao dar uma otimizada nas bocas do seu fogão, te faz queimar a comida porque você já não sabe mais lidar com um fogo tão deliberadamente potente. 

Isloany Machado (14/08/2020, Campo Grande, MS)

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Hoje é domingo

Hoje é domingo. Mas importa? Todos os dias são domingo ou todos os dias são segunda-feira. Todos os dias me espremendo em um canto do apartamento para pegar o sol que entra pela janela. Janela em que meto minha cara e olhando lá embaixo vejo pessoas pegando sol na rua, em bandos, egoístas. 

Me espremo na tela do celular e vejo outras pessoas exercendo suas liberdades. Exercendo suas liberdades? Liberdade?

Me espremo no canto da sala do sol com Clarice, Pessoa, Lacan, violão, cinema e lápis de desenho e me dou conta que são 3 da tarde e o almoço de domingo não saiu. 

Me espremo nos corredores do mercado tentando fugir do contato com as pessoas que saíram para fazer compras em família. 

Esfrego um pano com álcool na embalagem de suco e apago sem querer seu nome sua data de validade.

Estamos todos num apagamento.

Esqueceu meu nome?

Que dia é hoje?

Luiza Teixeira (9/8/2020, Novo Hamburgo RS)

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Mais um dia

Mais um dia de reclusão. 

Minto, mais um dia de vida! 

Eu sei, tá difícil acordar e ver tudo se repetir todo dia.

Mas para bem pra pensar, já são mais de 100 mil vidas perdidas.

Rômulo Montan Costa (8/8/2020, Juiz de Fora, MG)

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Sorvete de pistache

Sou psicanalista. Além dos pacientes do consultório, também atendo os profissionais de saúde de um hospital privado de São Paulo.

Enquanto uns sofrem com o isolamento, outros se queixam de estarem exaustos.

Em algumas pausas, tomo um pouco de sorvete de pistache. É um pequeno prazer. 

O sorvete vem em uma caixinha retangular de isopor. Mas falta o sol, a rua, a crocrancia da casquinha fresca. Falta o sorisso da atendente, quase sempre, simpática. 

Sinto falta daquilo que não se transporta. 

Não me arriscaria a chamar isso de o novo normal. É novo, normal é outra coisa. 

Janaina Veríssimo (9/8/2020, São Paulo, SP)

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Quarentena providencial

Dia 21. No chuveiro, durante o primeiro banho do dia organizo as tarefas e os pensamentos. Decido que roupa vestir. Sigo o ritual da água fria no final. Saúde, pele e cabelos. Receita da minha avó. Talvez por isso ela tenha entrado nos oitenta com belos e fartos cabelos grisalhos e pele de pêssego. Parece que ajuda a circulação também e, com isso, põe em ordemos pensamentos.

Tenho perdido a hora com o silêncio perturbador que tomou conta do meu entorno. Logo eu. Sempre busquei e sonhei com o silêncio e agora me assusto toda noite quando ele toma conta do apartamento, do prédio, da rua, do bairro e vara amadrugada. Como se estivéssemos todos em uma longa pausa. Acordo às 7:30 angustiada diante da falta de perspectiva para o dia que insiste em aparecer pela fresta da janela do quarto. Não importa que a casa seja o melhor lugar do mundo ou que eu trabalhe o dobro no esquema home officee, com isso, passe a maior parte do tempo ocupada. Nada disso importa. Ao acordar, antes do banho, os dias parecem sempre brancos. Ofuscam a visão fazendo com que meus primeiros movimentos sejam meramente instintivos. Abro a janela para sentir a mata ao redor do prédio e ter certeza de que ela está ali. Antes de empurrar a veneziana torço para que o céu esteja azul e eu sinta o sol. Dias nublados podem ser perturbadores em momentos ruins. Torço pelos azuis ensolarados que iluminamo quarto e obanheiro no início da manhã. 

A verdade é que a quarentena tem sido providencial. Até vinte dias atrás vínhamos, há anos, meu marido e eu, num ritmo frenético. Ele acordando todas as segundas-feiras às 4:30 para estar no escritório às 7:30. Em São Paulo. De onde só voltava às quintas, às vezes às sextas tarde da noite. Eu me desdobrando – com prazer, registre-se – em algumas funções importantes: a materna, a profissional, a doméstica e aquilo que apesar de tudo insiste em existir e resolvi nomear como função “eu”: desejos; aspirações; afetos; aquilo que me inspira e me faz bem, minhas vontades pura e simplesmente. Escrever, estar com amigos, ter boas conversas, ler, me informar, assistir a bons filmes, beber vinho sempre que possível, fazer yoga, viajar – em toda e qualquer oportunidade. Às sextas-feiras, às sete da noite eu costumava ter a sensação de ter atravessado o oceano Atlântico a nado. Não raciocinava mais. Seguia numa espécie de transe automático que emendava com um fim de semana intenso com mais tarefas e compromissos que faziam com queos dois dias de descanso passassem voando, sem qualquer elemento de repouso e eu me visse, no domingo à noite, sonhando com a próxima sexta-feira quando achava que, então, poderia descansar.

A clausura tem mostrado o erro de algumas escolhas, o acerto de outras, me alimentado com muitas certezas e com um tanto de incertezas também. Não à toa passei a assinar as mensagens para os amigos como “a bipolar da quarentena”. Sinto imensas alegrias e profundas tristezas em intervalos relativamente curtos de tempo.

No campo das alegrias estar com as crianças vinte e quatro horas por dia sete dias por semana dispara na frente sem concorrentes à altura. Crianças são seres mágicos. Eu já sabia disso, mas acho que tinha esquecido. O confinamento com os meus dois seres mágicos me confirma isso hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo. Eles têm 12 e 10 anos e estão há um mês em casa sem colocar o nariz para fora. Literalmente. Sofrem e se frustram com isso – percebo neles o sofrimento e a frustração. No canto do olho, na mão estendida, no abraço noturno, na demanda por mais atenção, no choro da caçula, no sono excessivo do mais velho. Na escola à distância que não os acolhe ou alimenta como aquela onde se aglomeravam com os amigos e professores.Mas seguem vitais: fortes, amorosos, saudáveis, criativos, malcriados e teimosos. Como eram na vida pré clausura. E isso me parecer ser bom sinal. Me pergunto como serão na vida pós clausura. Como se lembrarão daqueles meses em que não pudemos sair de casa. Quando estivemos tão próximos e tão longe de tudo e de todos. Me pergunto se irão sentir medo ou angústia. Se viverão outras pandemias longe de nós. E fico triste.

No capítulo das tristezas trato de algumas aflições. A primeira delas explora o meu sentimento quando me douconta de que este ano veremos o outono de dentro de casa. Sonhocom as manhãs de abril, com as tardes de maio e com as noites de junho. Com aquela luz enviesada da estação mais linda do ano no Rio. Quando o sol acolhe e não esturrica. Ilumina e não ofusca. Este ano não vamos viver o outono. E isso me faz sofrer. Que bobagem, penso em seguida. Quantas mortes hoje?

Ao ler ou assistir às notícias sinto falta de ar. Respiro fundo algumas vezes. Penso nos meus pais, ambos nos seus setenta, sozinhos em casa. Ligo e mando mensagens. Entrego tudo o que posso. Ovos orgânicos, vinhos, azeites, máscaras, luvas e álcool gel. Peço que fiquem em casa. Que tomem sol. E, em silêncio, apenas peço que não adoeçam, que não morram, que vivam.

O marido e não por acaso pai dos seres mágicos tem sido uma revelação em inúmeros sentidos.  Nos últimos dezessete anos nunca passamos tanto tempo juntos convivendo em casa. Desde o namoro ele passa as semanas fora do Rio a trabalho. Antes da clausura eu costumava brincar que esse era o segredo do sucesso do nosso casamento: a não convivência diária. Sempre alguma saudade, sempre algo a dizer, uma novidade para contar, sempre a expectativa do novo encontro, o desejo de fazermos coisas juntos. A coabitação forçada pela quarentena tem me comovido muito. Ela tem me lembrado da doçura, da força e do caráter do menino que aos nove anos tocava piano comigo e que anos depois de vasta procura eu reencontrei no meio da multidão. Ela tem mostrado o prazer da sua presença.  Olho para ele e me apaixono novamente a cada instante. 

Tudo indica que a nossa quarentena terá mais que quarenta dias. Conformada eu só pediria uma data. Ando modesta nas últimas semanas. Módica, contida. Às vezes. Ela pode estar distante, mas eu gostaria muito de uma data. Saber que no dia tal do mês tal poderemos sair de casa. Alimento em segredo a esperança de ver a luz do outono. Sem máscara, sem luva. Sem medo. 

Eu que em alguma medida sempre pratiquei o isolamento social, sinto saudade de aglomerações. Talvez esteja abalada pelo confinamento. Talvez seja mesmo bipolar. O fato é que sinto saudade de gente, de barulho, de rua, de movimento. De tomar banho de mar e de sol. De sair de casa de cabelo molhado todo dia de manhã para trabalhar. De dirigir. De almoçar e jantar fora. De boas conversas ao vivo. De viajar. De flanar por aí.  

Clarisse Escorel (7/8/2020, Rio de Janeiro, RJ)

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Contração/Distensão

Há quanto tempo seria apenas um mês?

Como tantas outras coisas, o tempo passou a ser elástico. No começo, era quase um ato de bravura: o sacrifício falando mais alto que a autopreservação. Nesse tempo que passa e não passa, a dúvida fabricada aos poucos vai degradando a alteridade em solidão. Tentam fazer meu humanismo ser motivo de escárnio.

O que me move a continuar?

Acabo de encontrar os amigos pelo computador e percebo que a matemática do reducionismo startupeiro não se sustenta: tomar cerveja pelo Zoom ajuda, mas só faz me sentir mais sozinho. Olhando pelo lado bom: jamais chegaria sozinho à conclusão de que na mesa de bar se comunica a comunhão por meio da cacofonia.

Quando foi que o distanciamento virou isolamento?

Não aguento mais esses muros: em uma hora, eles parecem se expandir, comunicando a falta – das pessoas, das experiências, da vida; em outra, me sufoco pelo quão limitado tenho sentido meu universo de possibilidades.

Quanto tempo falta?

Henrique Matsuo (04/08/2020, São Paulo, SP)

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As mãos de Rosa

“As mãos de Rosa Freire d’Aguiar assemelham-se bastante às de Jô Soares”, pensei, enquanto assistia à entrevista da célebre tradutora ao canal da Sudene no YouTube, em que relembrava situações vividas com o falecido ex-marido e ex-ministro, Celso Furtado.

Já havia reparado em suas mãos antes: tanto nas de Rosa, quanto nas de Jô. Nas dela, começara havia pouco, já na pandemia, durante uma live para a Companhia das Letras em que falava sobre a tradução de 120 dias de Sodoma. Havia algo na eloquência da fala ou na escolha das palavras que, combinadas com aqueles olhos pixelados pela webcam atrás das lentes dos óculos de aros escuros e redondos, me fascinou. Pareceu-me que aquela senhora poderia falar de qualquer assunto que lhe aprouvesse, ainda que banal ou supérfluo, sempre soaria interessante. Nessa primeira ocasião, enquanto falava dos desafios em transpor ao português as aventuras libertinas do Marquês de Sade, as suas mãos me surgiram tímidas, acessórias, talvez pela má qualidade do vídeo.

Somente na segunda entrevista, filmada por uma câmera de estúdio, pude reparar na pele leitosa cujas dobras se acumulavam no dorso, os anéis a dançarem sobre ossos curtos, delgados e – aparentemente – fortes, ricos em cálcio, livres de osteoporose. Tais como as de Jô (tirando o aspecto da força, já que as suas bochechas mais avermelhadas me inspiravam mais fragilidade), sobre as quais eu havia dedicado boa parte da atenção quando lhes assistia as entrevistas em que, mais frequentes, ele era o entrevistador.

Havia uma diferença fundamental, entretanto: o dedinho mindinho da mão direita. O dele, torto, sequela de um acidente que sofrera ainda criança. O dela era reto, linear, seguro. Com os olhos fixos nas mãos que surgiam por instantes intercalados na tela, enquanto movimentavam-se ao sabor dos relatos de Rosa sobre Furtado no interior de Pernambuco, em ato-reflexo derramo um pouco de álcool-gel, cuja viscosidade me remete a sêmen, em minhas próprias mãos, fazendo-as arder como um inferno e redirecionando meu foco para elas, enquanto as assopro e silencio o ardor.

Desde que o distanciamento social se impôs, um regime ainda mais implacável se me limitou: o do pragmatismo. Em função de uma inflamação intestinal oriunda do tratamento que faço contra um câncer de pescoço com metástase nos pulmões diagnosticado em 2019, estava submetido a um coquetel de medicações adicionais e já havia perdido quinze quilos em menos de dois meses. Acontece assim: o câncer exige remédios, que possuem efeitos colaterais, que se complicam, que trazem infecções, como camadas de um fruto amargo. Só isso já seria o suficiente para tornar a minha rotina um script repleto de previsões e orientações, uma receita de bolo (sem glúten, lactose e açúcar), onde não há espaço para a liberdade de se fazer algo livro do peso de um objetivo prático explícito. Mas, com as exigências trazidas pelo Covid-19, inundou-se tudo com uma camada extra de atenções, de necessidades, de urgências, com suas próprias estratificações, categorias e classes de consequências.

Onda após onda, o coronavírus arrebanhou até os indivíduos que não contaminou. Acontece assim: o vírus surge na China, é transportado para os quatro cantos do mundo, debilita os mais aptos, mata os mais cansados, isola os sãos que, deprimidos e ansiosos, somatizam a angústia e ficam com duas doenças para se preocupar: a do corona e a desenvolvida. A rotina diária, então, se preenche com rituais de limpeza e preocupações, e sobram poucas ações isentas de um objetivo prático: os atos descompromissados e desavisados ficam quase banidos, pois tudo o que tocamos ou ingerimos requer um controle e uma cerimônia que lhes destitui a espontaneidade.

Tato, paladar e olfato ficam em suspenso, amarrados em camisas de força.

Restam-nos a audição e a visão, com os quais volto minha atenção às mãos de Rosa Freire d’Aguiar que me surgem como pontos de fuga, e permitem-me contemplar algo que é um fim em si, cuja beleza não me exige justificativa nem asseio.

Mário Barreto (04/08/2020, Fortaleza, CE)

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Crônica de uma quarentena

Meu nome é Matheus Perestrelo Cinzento. Perestrelo e Cinzento, dois sobrenomes de Portugal. Um da Ilha da Madeira e outro do norte português. Ao menos, até onde minha sanidade ainda me permite lembrar, é de lá que minha história começa. Não de Portugal em si, mas de onde vieram meus avós.

A quarentena pegou forte aqui em casa. Estou em quarentena desde o dia 12 de março de 2020, que, por incrível que pareça, foi o dia do meu day-off de aniversário na empresa em que trabalho (embora faça aniversário no dia 18 de dezembro). Foi a última vez que eu saí.

Me lembro que acordei bem cedo e fiz uma tatuagem no antebraço, o sistema solar, pra me lembrar sempre que eu sou parte de um universo muito maior do que o imaginado. Lembrar que sou matéria e não que no relógio do universo, eu sou o equivalente a menos de 5 minutos. Bem menos que 5 minutos. Isso me acalma e tira a pressão das minhas costas. Feita a tatuagem, fui a uma lanchonete, onde comi um lanche de peito de peru e falei com o balconista sobre o assistente do Bolsonaro com Covid-19 depois de ter debochado. Demos risadas.

Segui meu caminho: comprei duas camisetas pensando no Lollapalooza e fui a uma padaria. Nela, passei álcool em gel a todo instante, afinal, já existia o medo da pandemia. Tomei um capuccino e comi uma salada de fruta. Conheci viajantes estadunidenses e conversei com eles na padaria, além de pedir pão na chapa com requeijão para os mesmos. Fiz uma entrevista de emprego na padaria também.

O dia passou e saí com a menina que estava vendo há mais de 3 meses. Começamos a namorar nesse dia.

No dia seguinte, fui para a empresa a qual trabalho e voltei para casa com o Notebook. Ele fica em casa até hoje. A tatuagem precisa de retoques e infelizmente a lanchonete não entrega em casa. Quando tentei replicar o mesmo, ficou muito pior. O namoro continua forte e com muita sinceridade e cumplicidade. Além de cuidado.

Hoje tenho medo de sair de casa. Até mesmo para ir ao mercado ou à feira. Parei de jogar álcool nas frutas e comecei a passar apenas água e sabão. A rotina se encaixa um pouco melhor que antes, minha família, a quem nunca fui muito próximo, se aproximou. Ficamos mais de 30 minutos no almoço e jantar conversando, algo impensável antes. Respeitamos muito a privacidade um do outro, além do espaço de trabalho. É um privilégio isso. Também me abri mais, aviso quando estou fazendo exercícios físicos e deixo a porta fechada. Ouço música de fone e revezamos a louça. Cada um limpa seu quarto.

Enfim, a tática para a quarentena é a mesma que deveríamos aplicar todo dia: o amanhã sempre foi incerto, apenas perdemos a esperança de melhoria. Sendo assim, busquemos melhorar um pouco o hoje. Claro que isso é mais fácil de falar que fazer, mas buscar algo diferente, criar algum hábito. Aprendi a tocar violão, o que me ajuda a focar no momento presente. Acabei livros. Escrevo todo dia e uso celular de menos. Procuro me lembrar que eu sou parte de um universo imenso. Ansiedade vai ter, como sempre existiu. É só deixar a porta aberta pra tudo. Nos lembrar que se não sabemos como é o amanhã e perdemos a capacidade de imaginar, então paremos de imaginar e foquemos no presente e em nós mesmos.

Tomar cuidado, sempre. Ter medo faz parte, é do clima. Não acredito que vou me sentir seguro até tomar vacina – seja ela chinesa, inglesa, egípcia ou qualquer uma. Mas por outro lado, também não me sinto mal ou sufocado. Por vezes cansado. Nesses casos, pego meu violão ou um caderno. Assim, sigo.

Matheus Perestrelo (03/08/2020, São Paulo, SP)

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Tudo o que é justo se foi

Às vezes, me sinto como um trecho de uma canção escocesa: "tudo que é bom, tudo que é justo, tudo que sou eu se foi." É dramático, e talvez mulheres sortudas o suficiente para se sentirem culpadas por estarem conseguindo transformar a quarentena em algo beirando o agradável não devessem ser dramáticas. 

Mas, às vezes, sinto falta do início da quarentena. Talvez você estranhe e se pergunte porque não sinto falta da "vida normal", mas meu mundo encolheu e passei a sentir falta de vídeo-chamadas em vez de abraços.

Lembro-me de estar sentada na varanda, cento e quarenta e um atrás, e de lembrar de um poema que escrevi uns anos antes. O eu lírico não podia se declarar para o menino que gostava e isso não a incomodava tanto; ela achou que isso fosse perder a importância com o tempo, a menos, é claro, que o mundo acabasse no dia seguinte.

E, quatro meses e meio atrás, quando, de repente, não mais do que de repente, o velho mundo acabou, decidi— talvez uma tentativa de manter a sensação de controle, ou apenas a coragem romantizada que me foi ensinada pela ficção — começar a construir uma vida nova para mim… me perguntei: "o que quero tanto que a possibilidade de conseguir chega a ser absurda?", e fui atrás. Afinal, logo, minha nova vida começaria, não é mesmo?

Quatro meses e meio atrás, quando achávamos que passaria rápido, e ainda conversávamos sobre o que faríamos quando a pandemia passasse… e ainda nos restava inocência o suficiente para nos chocar com o distópico… quando ainda acreditávamos que, dessa vez, a humanidade finalmente aprenderia a lição… 

Meu otimismo começou a esgotar-se em junho… comecei a me sentir desconectada do futuro e, consequentemente, do presente… as consequências de assistir às notícias constantemente começaram a pesar e meus sonhos se misturaram às tragédias alheias, aos prenúncios de desastres… e a animação por todas as minhas pequenas vitórias deu lugar às lembranças de todos os sonhos cujas asas foram cortadas pelo implacável tempo.

Me sinto como se estivesse atravessando um túnel escuro e já estivesse bastante longe do início — por isso, não conseguia mais enxergar a entrada —, mas ainda estou longe demais do fim — então não faço ideia de quando a "luz no fim do túnel" finalmente aparecerá…

Dizem as boas línguas, com um otimismo comedido, que a vacina estará disponível no primeiro semestre do ano que vem. No mínimo. Às vezes, me alegro, junto com minha mãe ou minhas amigas, com o sucesso de mais uma etapa…

Às vezes, me pergunto se ainda sobrará algum potencial para mudança positiva ou algum progresso quando finalmente terminarmos a travessia. Ou se a pandemia devorará tudo como um tsunami, e estaremos cansados, desesperançosos e quebrados demais para o período de euforia que normalmente segue guerras e epidemias.

Ou talvez eu tenha me acorvadado. A inércia do pessimismo é uma amiga da onça antiga, a ousadia de entregar-me a um sentimento fora de moda como a fé, apenas uma conhecida. Acho que vou fazer amizade com ela, não é como se houvesse outra alternativa, não é mesmo? 

Luana Minho Rabelo (03/08/2020. Salvador, BA)

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