Memória,

A flor necessária

A editora e poeta Sofia Mariutti escreve sobre suas lembranças, poéticas e pessoais, do poeta carioca Armando Freitas Filho, morto nesta quinta (26), aos 84 anos

27set2024
O poeta Armando Freitas Filho (Bel Pedrosa/Divulgação)

Há uns dez anos, numa praça que minha memória acredita ser a São Salvador, comprei um pé de buganvília para o Armando Freitas Filho. Eu estava fazendo uma hora antes de mais uma visita a sua casa na Urca. Naquela época, Armando e eu trabalhávamos juntos nas novas edições dos livros da Ana Cristina Cesar que sairiam pela Companhia das Letras, primeiro Poética (2013) e depois Crítica e tradução (2016). Melhor amigo de Ana C. durante a vida, ele ficou responsável pela obra da poeta depois da sua morte precoce, em 1983. Ao longo dos três anos em que trabalhei nas edições desses livros, Armando foi se tornando um interlocutor como nenhum outro, e muitas das nossas conversas se aprofundavam durante essas visitas à sua casa.

Naquele dia, eu queria levar algum presente para o Armando e a Cristina, sua esposa, e meio contrariada acabei escolhendo o pé de buganvília, que na época eu ainda conhecia só pelo nome popular, primavera. Aquela planta, que me pareceu tão errada na hora da compra por ser volumosa demais e exigir cuidados, foi bem recebida pelo casal e logo plantada junto ao muro da casa. Mais do que isso, virou um motivo recorrente da nossa correspondência, o que me permite hoje precisar que ela “pegou na terra” em 2015 e só foi florescer em 2021, quando o poeta me escreveu: “A flor de bouganville brotou no muro da casa. Linda, necessária”.

Buganvília não foi a única palavra que aprendi com o Armando. Foi também com ele que comecei a dizer “malungo”, termo de origem controversa, usado a princípio para designar companheiros escravizados que vieram juntos na mesma embarcação, e que aos poucos foi ganhando outras acepções, até nomear duas pessoas que nasceram no mesmo “ano, mês, dia e, se possível, hora”, determina o Houaiss. Bem, Armando e eu só nascemos no mesmo dia, 18 de fevereiro, e isso nunca fez de nós menos malungos.

Armando foi se tornando um interlocutor como nenhum outro, e muitas das nossas conversas se aprofundavam durante visitas à sua casa

A correspondência com ele era saborosa. As saudações de despedida vinham sempre acompanhadas de um comentário sobre o clima ou seu estado de espírito: abraço carioca chuvoso, abraço de um Rio friorento, beijo ao natural, no ar fresco da tarde impecável, beijo implicante. Não gostava do frio. Um tanto hipocondríaco, sempre relacionava a temperatura ao seu estado de saúde, e se preocupava com a integridade física de seus afetos — detestava saber que eu andava de bicicleta pela cidade sem capacete.

Na Urca, éramos recebidos com um belo lanche, e ele contava histórias, como aquela célebre do dia em que ficou sete horas ao telefone com a Ana C. Mostrava para todo mundo com orgulho a unha do Pão de Açúcar, que foi como apelidou uma pedra gigante no seu quintal. Levava a gente para o segundo andar do sobrado, onde ficava a oficina: a máquina de escrever, os rascunhos e edições de seus próprios trabalhos. Ali, contava que escrevia os poemas primeiro à mão, depois à máquina e só então no computador, como que percorrendo o avanço tecnológico na sua criação — mais tarde esmiuçaria esse processo num poema do livro Arremate (Companhia das Letras, 2020). A reescrita nos vários suportes era sua forma de assegurar que o poema seria relido o bastante, e seus textos sofriam marcas até a última prova de cada livro, até a prova final se fosse possível. O importante era que fossem lidos com a “faca nos dentes”, como ele mesmo dizia.

Às vezes ligava no escritório e conversávamos longamente. A fala vacilante deixava a gente mais atento, esperando o que viria do outro lado da linha. Sempre achei que a gagueira combinava com o ofício do poeta, que não é resoluto, mas vai e volta, experimenta e erra, se detém. “A muleta do gago/ é outra voz, uma gag”, diz um poema de seu 3×4 (Nova Fronteira), livro vencedor do Jabuti em 1986.

Armando era um dos maiores poetas em atividade, e nos ligava a Drummond, uma de suas maiores referências, com quem manteve longa correspondência. Como o poeta mineiro, Armando trabalhou em órgãos públicos (Fundação Casa de Rui Barbosa, Instituto Nacional do Livro, Biblioteca Nacional e Funarte, entre outros). Gostava de contar que conheceu e homenageou Drummond ao dar o nome Carlos para o filho.

Armando era um dos maiores poetas em atividade, e nos ligava a Drummond, uma de suas maiores referências, com quem manteve longa correspondência

O poema “Para este papel”, que sairá em seu livro póstumo, Respiro, anunciado pela Companhia das Letras na ocasião da sua morte, é exemplar de sua criação por ser metalinguístico e formalmente rigoroso, com duas estrofes simétricas de sete versos cada. Um dos eixos de sua produção é essa reflexão sobre o próprio ofício, o papel e sua materialidade. Seu trabalho rítmico era exemplar, como fica claro no inesquecível “Cão feroz”, que repete o aviso da placa na porta da sua casa até esgotar a expressão. O poema foi publicado em 2014 na revista piauí.

A grandeza de Armando não está só na poesia afiada, mas também na generosidade. Do mesmo modo que me acolheu na Urca com suas histórias e sempre comentou detidamente os poemas que mandei, foi um farol determinante para ao menos duas das poetas mais importantes dessa geração, Alice Sant’Anna e Laura Liuzzi, às quais dedica o poema “dois brincos”, do livro Rol (Companhia das Letras, 2016), vencedor dos prêmios Rio de Literatura e APCA.

Alice acabou se tornando sua última editora, e um baú que guarda suas pérolas: “O poeta não tem temas, tem problemas”. Lembro também da amizade que criou com Francesca Angiolillo a partir de um perfil que ela escreveu para a Ilustríssima, e de como vibrou com os seus livros. E com os livros de incontáveis poetas. Armando acolheu uma geração em sua casa junto à unha do Pão de Açúcar e também em seus textos, dedicando-os aos mais jovens e dialogando com eles.Talvez alguns poetas, jornalistas e editores que foram acolhidos por Armando, como eu também, sintam hoje ter se afastado nos últimos anos, com a comunicação e as visitas cada vez mais esparsas. Sinto-me farfalhar. dói — foi o anagrama que fiz com o seu nome, e ele disse “obrigada pelo belo verso que você fez de mim”. Armando partiu nos primeiros dias da primavera, e espero que a essa altura a buganvília já tenha florido de novo. Você é a primavera chegando/ colorindo o seu abrigo/ onde as cores se beijam/ antes de se transformarem, na extensão/ de sua mão, em oferecidas e saltitantes/ buganvílias vermelhas.

Quem escreveu esse texto

Sofia Mariutti

É autora de Abrir a boca da cobra (Círculo de Poemas), Tem um gato no frontispício (Baião) e A orca no avião (Patuá).