A Feira do Livro, Literatura em língua portuguesa,

Disputas em torno da língua refletem exclusão e racismo, apontam Galindo e Bagno

Em conversa sobre caminhos do português, linguistas disseram que linguagem neutra não descaracteriza idioma

01jul2024 - 17h34 • 02jul2024 - 10h44
(Matias Maxx)

Os caminhos literários de Caetano W. Galindo e Marcos Bagno percorreram até hoje estradas parecidas: o estudo da língua, a tradução e a escrita de ficção, trinca que pode muito bem fazer os dois serem considerados polímatas da palavra. 

“Palavras, palavras, palavras” foi justamente o título da mesa em que os linguistas, tradutores e ficcionistas se cruzaram no domingo (30) n’A Feira do Livro. Galindo e Bagno discutiram os caminhos da língua portuguesa e suas explorações do que as palavras — e a forma como elas surgem — podem dizer. 

Na conversa mediada pela escritora e professora Luana Chnaiderman, os dois falaram da paixão que sentem por elas desde a juventude e das muitas formas como isso se manifesta em suas vidas.

O linguista e professor Marcos Bagno e o poeta e professor Caetano W. Galindo (Matias Maxx)

“A grande verdade é que eu queria ser poeta. A poesia é a língua em seu estado mais tenso”, disse Bagno. “Mas meu heterônimo linguista foi tomando conta de tudo. É quem paga os boletos”, brincou. Ainda assim, a prosa poética do romance de formação A vida na Grécia, lançado em 2021 pela Parábola Editorial, mostra que Bagno está longe de ter abandonado a primeira vocação.

“A poesia pra mim tem que estar em tudo”, disse ao explicar as mudanças de linguagem no livro, resultado tanto do tempo que levou para ser escrito (33 anos) quanto da maturação do personagem principal, um homem que começa a ver o mundo de outra forma — muito mais poética — quando passa a usar óculos para corrigir problemas de visão. 

Galindo ilustrou sua relação com a língua e as letras lembrando da canção “Ciranda da bailarina”, de Chico Buarque. “Outro dia eu chorei ouvindo. Aquilo é o sublime da linguagem. Como pode uma pessoa se comover porque nenhuma palavra é previsível e todos os acentos e sílabas estão no lugar certo?” A plateia respondeu com uma sonora risada. 

“Acho que meu tesão vem do lado lúdico. Gosto de ver pessoas falando diferente. A brincadeira com palavras nunca deixou de me revelar novas formas, como o teatro”, completou, referindo-se à sua versão dramaturgo, que escreveu para a atriz Bete Coelho a peça Ana Lívia, dirigida por Daniela Thomas, e colaborou na montagem de Molly-Bloom, baseada na personagem do clássico Ulysses, de James Joyce, que Galindo traduziu em 2022 para a Companhia das Letras.

Pó e preconceito 

Ao falarem das origens, do presente e do futuro do português brasileiro, os autores lembraram da enorme influência africana na formatação do nosso idioma e destacaram que o debate sobre modos supostamente certos ou errados de falar o português, inclusive a adoção da linguagem neutra, é reflexo da exclusão social e do racismo.      

“A língua é usada como pretexto para excluir pessoas”, disse Bagno ao comentar as razões que o levaram a escrever Preconceito linguístico, publicado originalmente em 1999 e reeditado em 2015 pela Parábola Editorial. 

O livro, lembrou Galindo, inaugurou um novo campo de estudos sobre linguagem no Brasil, que se expande, ainda hoje, em direção à sociologia, disse Bagno. “Não existe preconceito linguístico, é preconceito social. E com o tempo, percebi que é racismo linguístico. O racismo é a espinha dorsal da sociedade brasileira e enquanto não vencermos isso não seremos uma sociedade democrática.”

Bagno apontou que mesmo pessoas brancas falam esse português africanizado. “E elas sofrem, incrivelmente, racismo linguístico. É uma bandeira antirracista que os brancos poderiam levantar mais”, afirmou.

Bagno e Galindo concordam que as disputas em torno da adoção da linguagem neutra são mais políticas que linguísticas, pois buscam incluir no idioma pessoas historicamente silenciadas na sociedade. “É uma luta por inclusão. A pessoa come no bowl, faz o hair, mas quando alguém fala todes dizem que não pode. Incluir o feminino já é uma complicação”, afirmou Bagno. 

“O que vai acontecer com a língua não dá para saber. Mas [a linguagem neutra] não vai acabar com a língua, com certeza”, acredita Galindo, que no ano passado publicou o ensaio Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras). No livro, ele mostra como o idioma foi “moído, triturado” e recebeu múltiplas influências até se tornar o que é hoje. N’A Feira do Livro, ao comentar a disputa sobre a linguagem neutra, constatou: “Não lembro de um assunto linguístico que tenha dominado a sociedade brasileira como esse. O assunto está em debate, o problema foi levantado e isso já é uma batalha vencida. O que se propõe é que seja discutido”, disse. “E vale lembrar que o problema não é linguístico, há línguas que não têm distinção de gênero e suas sociedades não são menos excludentes.”

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Vitor Pamplona

Jornalista e roteirista, traduziu As aventuras de uma garota negra em busca de Deus (Bissau Livros)