Laut, Liberdade e Autoritarismo,

5 livros para entender as eleições dos Estados Unidos 

Lançamentos recentes explicam o que está em jogo na corrida à presidência: das recentes ameaças à democracia ao papel do liberalismo

02out2024

Eleitores vão às urnas no dia 5 de novembro nos Estados Unidos para eleger o próximo presidente do país. A eleição, que inicialmente seria uma revanche de 2020, tomou outro rumo em julho, quando o atual presidente, Joe Biden, desistiu de sua candidatura, após fortes pressões do partido, e apoiou a de sua vice, Kamala Harris, que pode se tornar a primeira mulher (e a primeira mulher negra) a ocupar a Casa Branca.

Numa disputa acirrada, Harris agora tem uma pequena vantagem na média das pesquisas sobre Trump, que tenta o segundo mandato. Embora sejam um termômetro da corrida, as pesquisas nacionais nos EUA não são necessariamente uma maneira de prever o resultado das eleições, já que o país utiliza um sistema de Colégio Eleitoral estadual para definir o presidente. 

Nesse modelo, importa menos quem consegue a maioria dos votos do que onde eles são conquistados. A maioria dos cinquenta estados norte-americanos quase sempre dá vitória a um mesmo partido e só sete deles, os chamados estados-pêndulo, costumam decidir o resultado das urnas. 

Separamos cinco livros para entender melhor o que está em jogo nas eleições estadunidenses: as recentes ameaças à democracia, a história do pensamento autoritário no país e as questões culturais que influenciam as decisões dos eleitores.


Como salvar a democracia. Steven Levitsky & Daniel Ziblatt. 
Zahar, 2023. Tradução de Berilo Vargas.

O aspecto mais dramático das próximas eleições norte-americanas é, sem dúvida, a ameaça autoritária representada pelo candidato republicano Donald Trump. O que chama a atenção de observadores internacionais é que, mesmo que Trump seja eleito, é improvável que ele conte com a maioria dos votos populares. Assim como em 2000, quando George W. Bush venceu sem conquistar a maioria, e 2016, quando o próprio Trump fez o mesmo, o sistema de colégios eleitorais pode levar à vitória um candidato sem apoio majoritário. Além disso, excentricidades do sistema político dos EUA, como o gerrymandering (manipulação de limites distritais para distorcer a representação política), o filibuster (tática usada no Senado para obstruir votações) e o poder desproporcional da Suprema Corte, comandada por uma maioria conservadora muito distante dos valores e visões do eleitor médio, tornam a política democrática particularmente hostil no país.

Essa é justamente a análise de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que argumentam que o sistema institucional dos EUA, herdeiro de um legado de escravidão e exclusão, favorece uma “tirania da minoria”: governos radicais que não prestam contas à maioria eleitoral. Segundo os autores, o problema da tirania da minoria se tornou particularmente grave nos últimos anos por conta de um fato inédito da política no país: a transição demográfica e cultural rumo a uma democracia multirracial na qual eleitores brancos com valores cristãos tradicionais se tornaram, pela primeira vez na história, uma força social minoritária. Segundo os autores, uma ampla agenda de reformas institucionais e a elevação dos custos políticos e legais para quem desafia resultados eleitorais e mantém laços com grupos extremistas serão tarefas fundamentais para proteger a democracia, independentemente de quem vença as eleições.


White Rural Rage: The Threat to American Democracy. Tom Schaller & Paul Waldman.
Random House, 2024.

O voto rural tem se consolidado como um dos mais confiáveis preditores eleitorais nos EUA nas últimas décadas. As votações expressivas em Donald Trump em 2016 e 2020 foram alimentadas por regiões majoritariamente brancas e rurais, onde o eleitorado conservador se manteve consistentemente fiel ao Partido Republicano. A regularidade desse padrão é tão forte que, ao analisar imagens de satélite dos EUA, a densidade e uniformidade do voto republicano podem ser inferidas pela cor do solo: quanto mais verde ou marrom o pixel, maior a probabilidade de ser uma área rural que favorece Trump. No debate sobre o apoio às políticas antidemocráticas e populistas de Trump, o cientista político Thomas Schaller e o jornalista Paul Waldman apontam para a “fúria rural branca” como um dos principais vetores desse fenômeno, destacando a América rural como um bastião de apatia e ressentimento. Enfrentando declínios industriais, a crise dos opioides e a perda de competitividade internacional, essas comunidades rurais tornaram-se terreno fértil para o discurso populista.

O paradoxo da América rural, no entanto, está na aparente contradição entre os interesses econômicos desses eleitores e as políticas que eles apoiam. Mesmo diante de crises socioeconômicas como a redução de empregos agrícolas e industriais, os eleitores brancos rurais continuam a endossar candidatos que rejeitam programas redistributivos e ambientais que poderiam beneficiá-los diretamente. Para Schaller e Waldman, isso se explica por uma política simbólica de ressentimento fomentada por elites conservadoras, que exploram a sobrerrepresentação histórica do eleitorado rural branco no sistema político dos EUA para resistir às mudanças sociais e econômicas experimentadas pelas áreas urbanas, ampliando assim as divisões sociais e culturais do país.


Iliberal America: A Story. Steven Hahn.
W. W. Norton & Co., 2024. 

A tradição racista e autoritária nos Estados Unidos não teve início, nem se encerrará, com a figura histriônica de Donald Trump. Como argumenta o historiador Steven Hahn em Illiberal America (A América Iliberal), o iliberalismo no país é tão antigo quanto a autoimagem frequentemente enganosa de uma nação excepcionalmente democrática e comprometida com direitos e liberdades universais. Para Hahn, práticas antidemocráticas não surgem isoladamente, mas se fortalecem em momentos de crise e transformação de valores e hierarquias tradicionais. Na história dos EUA, desde a formação da Constituição até a luta atual contra a desigualdade e a crise climática, nenhum movimento progressista deixou de enfrentar contrarrevoluções reacionárias organizadas e motivadas.

Hahn destaca a importância de descentralizar a visão otimista do liberalismo nos EUA para compreender a fragilidade das normas que muitos tendem a associar como naturais ao projeto democrático. Movimentos como o supremacismo branco e teorias conspiratórias, como a “grande substituição”, bem como a repressão política em defesa da legislação segregacionista do Sul durante a era dos direitos civis, compartilham uma genealogia resiliente, que se adapta a novos contextos sociais. Ao explorar essas continuidades, o autor revela como o autoritarismo trumpista está entrelaçado nas estruturas políticas e sociais do país, e representa apenas mais um capítulo — talvez um dos mais críticos — à expansão de uma democracia verdadeiramente inclusiva.


A esquerda não é woke. Susan Neiman.
Tradução de Rodrigo Coppe Caldeira.
Âyiné, 2023. 

Tal como ocorrido na derrota do autoritarismo no Brasil, em 2022, a frente anti-Trump, liderada hoje pela candidata democrata Kamala Harris, é sustentada por uma ampla e complexa coalizão pró-democracia que vai desde republicanos tradicionalistas anti-Trump até as alas mais radicais dos movimentos sociais climáticos e antirracistas ligados a partidos independentes radicais. No entanto, como aponta a filósofa Susan Neiman, se analisarmos os valores e princípios de esquerda à frente dessa ampla coalizão, veremos uma disputa teórica crucial — talvez a mais significativa desde a queda do comunismo no final do século 20 — entre dois setores antagônicos. De um lado, temos formas progressistas e igualitárias de liberalismo; de outro, o que críticos e críticas rotulam como a “esquerda woke”, focada em questões de identidade e desconstrução de discursos de poder.

Posicionando-se como herdeira do iluminismo, Neiman argumenta que a “esquerda woke” representa um impasse para os princípios do universalismo, da justiça e do progresso moral, que orientaram a trajetória da esquerda desde a luta pela democracia, passando pelos movimentos anti-imperialistas, socialistas e feministas dos últimos dois séculos. Sem cair no ressentimento cultural típico de colunistas liberais desiludidos, Neiman insiste que a luta contra o autoritarismo, representado atualmente no país pelo partido republicano de Trump, é uma excelente oportunidade para rejeitar a cartilha woke na qual reivindicações de identidade essencialistas (típicas do tribalismo de direita) e a desconstrução cínica de discursos de poder assumem uma prioridade indefensável em relação ao valor da igualdade, em meio às diferenças e às reinvindicações de justiça social anticapitalistas. 


Liberalism as a Way of Life. Alexandre Lefebvre.
Princeton Press. 2024.

Uma análise dos principais temas da disputa ideológica nas eleições de 2024 nos EUA revela um conceito central, mas pouco intuitivo para eleitores brasileiros: o uso do termo “liberal” como arma retórica pela direita. Diferente da América Latina e da Europa, onde o liberalismo é comumente associado a políticas de direita, como a defesa da propriedade privada e do Estado mínimo, nos EUA o termo identifica políticas progressistas, incluindo redistribuição de renda, direitos sociais, reparação de injustiças históricas contra minorias raciais e étnicas, e a defesa da diversidade social. Enquanto a agenda reacionária do partido republicano, amparada na escolha de J.D. Vance como vice de Trump e no manifesto autoritário “Projeto 2025”, busca “desliberalizar” instituições políticas e valores culturais, a resposta democrata apoia-se nos princípios liberais fundamentais para defender o Estado de Direito, os direitos reprodutivos e os direitos sociais da classe trabalhadora.

Mas o que significa o liberalismo e qual o seu papel nas democracias contemporâneas? Em uma rara convergência entre rigor acadêmico e estilo literário, o filósofo político Alexander Lefebvre argumenta que o liberalismo progressista deve ser compreendido não apenas como um conjunto de princípios constitucionais ou direitos individuais, mas como uma base ética e cultural para um modo de vida que combina liberdade, tolerância e diversidade. Lefebvre entrelaça filosofia antiga, crítica cultural e teoria política contemporânea para defender que o liberalismo deve ser cultivado também como uma virtude pessoal, suficientemente poderosa para resistir a autocratas e transformar radicalmente a vida pública nas democracias.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Lucas Petroni

É cientista político, filósofo, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP - FGV) e pesquisador do Cebrap.