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O Carandiru não é coisa do passado

O modo como o Judiciário tratou as vítimas do Massacre do Carandiru, em 1992, permite prever que a Covid-19 promoverá uma devastação nas prisões

20maio2020

A professora Marta Machado, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do AFRO, o recém-fundado Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap, cocoordenou o livro O Carandiru não é coisa do passado, que analisou os processos de responsabilização dos envolvidos no Massacre do Carandiru, em 1992. No episódio, 111 presos foram mortos por membros do Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo. O resultado: muita demora, poucas indenizações e nenhuma punição.

Agora, o sistema penitenciário deverá enfrentar a pandemia de Covid-19 com unidades superlotadas e em condições estruturais ainda piores. Alguns estados já relatam casos de infecção de presos e funcionários, e autoridades projetam estratégias que vão desde o isolamento de novos presos em containers de metal à proibição de visitas. O Conselho Nacional de Justiça recomendou a redução da população carcerária e a adoção de medidas básicas de higiene, mas alguns manifestaram preocupação com a utilização da pandemia como estratégia de “soltura indiscriminada” de presos. Confira a seguir a entrevista concedida por Machado à Quatro Cinco Um, em que trata das permanências do massacre do Carandiru e como elas moldam as respostas atuais à Covid-19 nas prisões.

Você coordenou uma pesquisa sobre o Massacre do Carandiru em 2015, analisando os processos de responsabilização dos envolvidos. O que mais te chamou a atenção no projeto?

O projeto começou em 2011, quando um dos envolvidos no massacre foi nomeado chefe da PM de São Paulo, e o governador, questionado, respondeu: "O Carandiru é coisa do passado". A partir disso, olhamos os processos judiciais sobre o caso, e também no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que emitiu um relatório em 2001 responsabilizando o Estado brasileiro e fazendo uma série de recomendações, ignoradas pelo país. Na Justiça comum encontramos 66 pedidos de indenização. Vários foram indeferidos, e as sentenças já dizem muito sobre como o Poder Judiciário vê os presos.

O que dizem essas sentenças?

Coisas como "se fulano não tivesse roubado, não estaria nessa situação". Tem uma decisão em que o desembargador afirmou que a família não deveria reclamar, pois se estivéssemos na China eles ainda pagariam a bala. Essas são as pérolas, mas no geral duas coisas saltam aos olhos. A primeira é que a vida dos presos não merece ser indenizada, são mortes que não importam. A segunda é que mesmo as concessões de indenização demoraram vinte anos, em alguns casos os pais morreram, os irmãos não conseguiram receber. O Estado brasileiro não conseguiu pensar em nenhuma estratégia melhor do que deixar que cada família procurasse ajuda, entrasse em uma fila e esperasse mais de vinte anos para receber uma indenização.

E nas outras esferas?

Na Corregedoria, foi uma batalha para conseguir acesso. Quando finalmente conseguimos, recebemos caixas com todos os processos disciplinares contra cada um dos envolvidos, nenhum sobre o Carandiru, mas muitos sobre hierarquia, farda amassada.

Por fim, o processo criminal está aberto até hoje, vinte e oito anos depois. E o Tribunal de Justiça de São Paulo foi central na demora. Se a gente contar os prazos, o Tribunal sentou no processo por dez anos, além de anular as condenações pelo Júri contra a própria jurisprudência. O saldo geral é que não existe no sistema de justiça criminal brasileiro nenhuma decisão atribuindo responsabilidade aos policiais que entraram no Carandiru aquele dia, mesmo com fartas evidências de que houve execução. Os policiais têm a tese de que eles agiram em legítima defesa, mas nenhum tiro foi encontrado na direção deles vindo dos presos.

Ou seja, mesmo sob o ponto de vista judicial, o massacre do Carandiru ainda é uma ferida aberta?

O Carandiru é um caso emblemático em vários sentidos. Ele é emblemático de como a sociedade e o sistema de justiça veem o preso. Foram muito marcantes as manifestações de apoio aos policiais, e o comandante da operação ter sido eleito deputado justamente por ter comandado o massacre. E, dando retaguarda à violência, a Justiça arrastou esse caso por todos esses anos, minando qualquer possibilidade de responsabilização. E veja que só conseguimos chegar ao coronel Ubiratan, nunca às altas autoridades ligadas à decisão de invadir o pavilhão.

O caso mostra como a gente tem pouca tradição em imputar às autoridades a responsabilidade pelo que acontece nas prisões. É como se a pessoa estar presa, sob custódia do Estado, não implica a responsabilidade do próprio Estado por sua segurança. Esse ponto é central pra gente tentar entender o que está acontecendo hoje.

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Alguma coisa mudou desde então no apoio social a essa visão?

Desde a década de 1980 é muito presente a ideia de “bandido bom é bandido morto”. Como sociedade, não conseguimos pactuar que a pessoa presa deve ser responsabilizada, mas tem direitos. Essas ideias estão vivas e foram usadas de maneira muito populista nas últimas eleições pelo candidato de extrema direita, e a resposta defendida por ele não cabe no Estado de Direito.

Por outro lado, houve uma mudança significativa na cúpula do Judiciário. O STF tem dado mais atenção à questão das prisões. Isso é uma novidade, pois havia uma tradição em fechar os olhos, “isso é assunto do Executivo”. Há uma virada quando o STF reconheceu que a situação carcerária é um “estado de coisas inconstitucional”, ainda que a eficácia da decisão seja discutível. Depois tivemos o HC coletivo favorecendo as mulheres presas gestantes e mães, então tem um ensaio de mudança.

De cúpula.

É, de cúpula, creio que muito motivada pelo CNJ, que passa a monitorar as prisões, e os ministros que passam por ali tomam contato com essa realidade. Mas ela não chega na base, que continua encarcerando muito. Isso fica claro na resistência a dar cumprimento à decisão das mulheres e, agora, com o problema da Covid, em que o CNJ está apontando para medidas desencarceradoras, e os juízes estão negando os pedidos. A mudança não atingiu a mentalidade das instâncias inferiores, é muito lenta e não acompanha nem de longe o aumento da população carcerária.

Sobre a Covid nos presídios, apesar de todas as evidências, o ministro da Justiça e o próximo presidente do STF escreveram artigos recentes minimizando o problema. O Carandiru não é coisa do passado?

Tem várias linhas de continuidade desde o Carandiru. A resistência das autoridades brasileiras até hoje em reconhecer que foi um massacre é uma delas. Muitas se referem ao caso como “rebelião do Pavilhão 9”. Agora, com base em todos os documentos técnicos e olhando o que está acontecendo em outros países, o impacto da Covid no sistema penitenciário é um massacre anunciado. As autoridades estão novamente minimizando isso.

A segunda é como a vida do preso vale pouco. O CNJ recomendou medidas até tímidas, restritas a alguns grupos. Mas o [ministro do STF] Luiz Fux e o [ex-ministro da Justiça] Sergio Moro chegam a falar em “solturavírus”, que o Covid “não é HC”, que devemos evitar a “soltura indiscriminada que colocaria em risco a segurança pública”. É uma interpretação populista, tentando jogar para a torcida.

As prisões são ambientes horríveis, insalubres, não têm água, não têm a mínima condição sanitária. Os índices de tuberculose já são infinitamente maiores do que na população geral. O pronunciamento do Moro de que “todos devem se isolar no domicílio, e o domicílio do preso é a prisão”, é irresponsável e cínico, porque é óbvio que na prisão é impossível o isolamento.

A terceira é a falta de responsabilidade das autoridades pelas vidas que estão sob a sua tutela. Essas declarações são um atestado da omissão. Eles têm o dever de zelar pela vida do preso, sabem do risco altíssimo de morte em massa, mas vão a público dizer que está tudo sob controle. Surpreende a tranquilidade de confessar um crime omissivo. Se no caso do Luiz Antônio Fleury Filho a gente ficava discutindo se ele deu ou não a ordem, agora a omissão está dada. Toda jurisprudência internacional sobre violação de direitos humanos pelo Estado – a começar por Nuremberg – vai no sentido de que as autoridades devem ser responsabilizadas por ação ou omissão. Aqui, vamos na contramão disso.

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Mesmo fora do âmbito penal, quais as chances desse posicionamento ser um ônus para essas autoridades?

Muito baixas. As autoridades não conseguem se ver responsáveis, e como nunca foram questionadas, têm a tranquilidade de vir a público dizer que nada está acontecendo e tomar medidas que são evidentemente incapazes de resolver o problema. O cenário de estigmatização da população carcerária não mudou do Carandiru para cá, é difícil que autoridades sejam cobradas ou sancionadas politicamente por mais um massacre em presídios.

Temos uma sobrerrepresentação de pessoas negras, pobres e com baixíssima instrução nas prisões brasileiras. Você acha que isso também é uma permanência do Carandiru, mais um dos problemas que a gente não resolveu?

A Covid chega e reforça os cenários de desigualdade, em que os negros já são sobrerrepresentados em quase todos os índices de precariedade de vida. No caso da população carcerária isso já está anunciado. O sistema penal é altamente seletivo. Quem está na prisão, quem é parado pela polícia, quem foi preso por tráfico de drogas, é uma imensa maioria negra. Só por isso já sabemos que a omissão das autoridades fará com que a Covid nos presídios atinja de forma desproporcional a população negra. Sem contar os agentes penitenciários: são quase cem mil funcionários expostos e não se fala muito disso.

É como se a punição fosse um imperativo que justifica qualquer dano colateral.

Gostaria de perguntar para o Fux que tipo de ponderação de direitos ele faz. Porque se a gente olhar o que aconteceu nos EUA, nos estados que adotaram políticas de soltura de presos não houve problemas de segurança pública. Mas um suposto risco à segurança parece valer mais do que a vida dos presos, dos trabalhadores das prisões, dos familiares dos trabalhadores.

Ademais, a ideia de que é possível isolar as prisões é uma ilusão. O preso em estado grave vai ser tratado no SUS e sobrecarregar o sistema público, porque a enfermaria da prisão não terá condições de fazer o tratamento. A menos que eles assumam que não levarão os presos para serem tratados.

Mas daí não teríamos um Carandiru em proporções monumentais?

Exatamente. Sob a omissão criminosa das autoridades.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Luiz Guilherme Mendes de Paiva

Doutor em Direito Penal pela USP, é pesquisador associado do Centro Internacional de Política de Drogas da London School of Economics.