História,
Uma história que começa pelo fim
Historiografia portuguesa virou as costas para a questão do sebastianismo, mas Brasil renovou o tema, diz André Belo
08nov2023 | Edição #75Pode uma história começar pelo ponto final? No caso de Morte e ficção do rei dom Sebastião, do historiador português André Belo, sim.
Belo explica que, ao escrever sobre o mito do retorno do monarca — e dos impostores que se passaram pelo rei —, optou por iniciar a jornada apresentando as provas da morte de dom Sebastião, em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir.
Morte e ficção do Rei Dom Sebastião, de André Belo
“Ao ler relatos e testemunhos das fontes que estiveram presentes no Marrocos e falam do que aconteceu, não encontrei nenhum que diga que o rei não foi reconhecido pelos nobres presos após a batalha”, disse o historiador no lançamento da Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, em 1º de novembro, no Rio de Janeiro.
Nascido em Paris e criado em Lisboa, o escritor afirmou no evento que a historiografia portuguesa “virou um pouco as costas” para o sebastianismo nos últimos anos. “Não que haja uma competição, mas o Brasil renovou bem mais o tema.”
Travada no contexto das Cruzadas, a batalha de Alcácer-Quibir esmagou as tropas portuguesas. A derrota sepultou as ambições cristãs sobre o norte da África e gerou uma crise política pela sucessão da Coroa que culminou na União Ibérica e na perda da independência para a Espanha, sob o reinado de Felipe II.
“Entre as testemunhas se encontrava um juiz de dom Sebastião, que tinha ido para a guerra oficializar aspectos que derivaram da batalha. Ele foi escolhido pelos fidalgos para enterrar o rei na casa do alcaide de Alcácer-Quibir, seguir para Tânger, escrever a Lisboa e dar a notícia da morte de dom Sebastião. Circulavam versões, mas, quando a carta chega, os homens que governam não têm mais dúvidas”, disse o autor na conversa com os professores Jacqueline Hermann e Marcos Guedes Veneu.
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No dia seguinte, o cardeal dom Henrique é aclamado rei. Ele governa até 1580, ano da unificação da Coroa portuguesa à espanhola. Apesar da certeza oficial, se todos tivessem acreditado na desgraça do jovem monarca, abatido aos 24 anos, não haveria o que contar após o “ponto-final”, explicou o autor.
Após o desaparecimento de dom Sebastião, começam a surgir rumores de que ele não teria morrido. No transcorrer do tempo, o retorno do soberano, para os portugueses, passou a representar a vinda de um salvador capaz de resolver os problemas nacionais, a nostalgia de uma época de independência e as glórias que haviam findado.
André Belo e Marcos Veneu no lançamento de Morte e ficção do Rei Dom Sebastião, no Rio de Janeiro [Daniel Pinheiro/Divulgação]
“O rei morreu. A partir disso, podemos investigar as razões do sebastianismo, separando o fato do mito, o que tem muita importância”, disse o historiador. “O sebastianismo é uma realidade histórica, que tem a ver com crenças, posição política, momentos de crise, constituição de identidade, mobilização de comunidade e pensamento religioso.”
Segundo Belo, alimentado por interesses políticos e uma crença genuína do povo, o mito messiânico do retorno do monarca cresceu. Atravessou os séculos em Portugal — influenciando até mesmo Fernando Pessoa, autointitulado um “sebastianista racional” —, chegou a outras regiões da Europa e cruzou o Atlântico, adquirindo novos contornos no Brasil.
“O mito do Encoberto [dom Sebastião] não se restringe a Portugal. Há venezianos antiespanhóis e com convicções messiânicas, de diferentes grupos sociais, que entram na história e suscitam a impostura de um falso dom Sebastião. Depois os portugueses tentam libertá-lo”, disse Belo.
Trata-se da fascinante saga de Marco Tulio Catizone, o falso de Veneza. Com a ajuda de clérigos e nobres, durante cinco anos, de sua prisão até a condenação à morte, sustentou-se que ele era dom Sebastião — apesar de o impostor, natural da Calábria, mal falar português e nem sequer guardar semelhança com o falecido.
“É uma história rica de detalhes e protagonistas. Uma das coisas que explica o sucesso relativo e a duração da farsa é precisamente ele ter sido preso. Ninguém podia vê-lo. Portanto, podia-se dizer tudo e mais alguma coisa a seu respeito”, afirmou o historiador.
Mas por que o calabrês decidiu embarcar na fake news? Belo considera difícil saber o que Catizone queria exatamente, embora anteriormente ele tivesse entrado em jogos de simulação, fazendo-se passar por um grande senhor aragonês do norte da Itália.
“Mais do que ser realmente o rei, fugir e promover um golpe de Estado, ele queria dizer que era dom Sebastião. Pedia aos frades portugueses que lhe comprassem roupas, distribuía dinheiro entre os companheiros de galé [Catizone foi preso em um barco durante determinado período], que o tratavam por rei. Tinha um secretário e um tesoureiro. Era um protagonista”, disse o historiador.
A professora e historiadora Jacqueline Hermann [Daniel Pinheiro/Divulgação]
No Brasil, segundo a historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jacqueline Hermann, que participou da mesa de lançamento, o sebastianismo esteve principalmente associado a dois movimentos do século 19: a rebelião da Serra do Rodeador, em Pernambuco, em que um grupo de soldados desertores das tropas monárquicas se refugia no local e diz se comunicar com o falecido soberano por intermédio de uma santa dentro de uma pedra; e os messiânicos da Pedra do Reino, na Serra do Catolé, também em Pernambuco, onde existe um arraial de fiéis que acreditam no regresso do rei. Este último inspirou o Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, publicado em 1971.
“Os dois movimentos agregam elementos novos ao sebastianismo, como a questão da pedra sagrada. É muito rico observar como eles reatualizam cultos e rituais”, disse Hermann. “A plasticidade do sebastianismo permite sua longevidade, além do fato de ele jamais ter sido enquadrado como religião, passível de ser perseguido pela Inquisição, ou como uma seita política organizada.”
O evento de lançamento de Morte e ficção do rei dom Sebastião, do historiador português André Belo, publicado pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, foi realizado no dia 1º de novembro, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. Nesta quarta, 8 de novembro, o lançamento será em São Paulo, na Casa de Portugal (Sala Fernando Pessoa), localizada na avenida da Liberdade, 602, 3º andar. O autor conversa com a professora Ana Paula Megiani, da Universidade de São Paulo (USP). Na sequência, haverá sessão de autógrafos.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.