Festival literário,

Flica, terra indígena

Presença de autores e lideranças de povos originários marcou a 11ª Festa Literária Internacional de Cachoeira, no Recôncavo Baiano

29out2023 | Edição #75

Repleta de convidados oriundos de comunidades indígenas, a programação da 11ª Flica teve neste sábado (28) o dia em que a presença de autores e lideranças de povos originários foi mais marcante nas mesas da Tenda Paraguaçu, a principal da Festa Literária Internacional de Cachoeira (BA) — com o tema “Poéticas afro-indígenas no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia”, esta edição da festa termina neste domingo (29).

O dia em que a Flica foi definitivamente uma “terra indígena” começou reunindo o país de Norte a Sul, passando pelo Planalto Central. Os escritores Eliane Marques, do Rio Grande do Sul, Paulliny Tort, do Distrito Federal, e Yaguarê Yamã, do Amazonas, falaram de seus processos de escrita e do país que “a maioria não conhece”, segundo Yamã, em uma mesa dedicada às memórias e histórias dos diversos povos que formam o povo brasileiro.

Da esquerda para a direita, o autor indígena Yaguarê Yamã, o mediador Heider de Assis e as escritoras Paulliny Tort e Eliane Marques [Diego Silva/Divulgação]

O escritor e ativista indígena contou que usa sua literatura como ativismo e como uma forma de mostrar a identidade dos brasileiros, constituída, segundo Eliane Marques, não apenas pelo lugar geográfico, mas pela linguagem. “Antes de cair no mundo, esse lugar de origem, já somos constituídos em palavras”, disse a autora do romance Louças de família.

“Estamos amalgamados uns aos outros”, afirmou Tort. A autora de Erva Brava falou sobre os apagamentos da memória simbólica dos povos que constituíram o Brasil e de maneiras de resistir preservando a memória individual.

Guardiões de memórias

“A gente tem que divulgar [livros] para saberem que a gente ainda existe”, disse a pajé Japira Pataxó, mestra da comunidade Novos Guerreiros, em Porto Seguro (BA), e autora de Saberes dos matos pataxó, livro que escreveu para a “perpetuação dos conhecimentos ancestrais”.

Mestra Japira, como é conhecida, compôs a mesa “Saberes ancestrais da terra: conexões amefricanas”, que abriu a programação da tarde, ao lado de Elizandra Souza, jornalista e escritora do Sarau das Pretas, e Rutte Andrade, professora cabo-verdiana radicada na Bahia.

Souza relembrou de sua trajetória de autora e atribuiu à cultura do hip hop o conhecimento da sua ancestralidade. Atualmente, a jornalista diz buscar “unir a literatura e a espiritualidade sem ser religiosa” e se considera “uma guardadora das memórias das mulheres negras que vieram antes”. Andrade ressaltou a mudança de paradigma da produção de saberes. Para ela, hoje é possível pautar conhecimento a partir de lugares antes relegados, principalmente do continente africano. “O nosso modo de existir é coletivo por excelência”, justificou a professora cabo-verdiana.

Flechadas literárias

“Não somos colonizados. Somos resistência”, afirmou a artista visual Célia Tupinambá ao se apresentar na mesa “Vozes ancestrais reivindicadas: o sagrado direito de saber quem somos”, a segunda da tarde de sábado.

A escritora Micheliny Verunschk [Diego Silva/Divulgação]

No encontro, ela dividiu o palco com a também artista visual e autora Yacunã Tuxá e a escritora Micheliny Verunschk. “É importante a gente saber de onde veio para saber aonde vai. Não sou autora indígena, mas é essa a história que me interessa”, disse Verunschk, autora do premiado O som do rugido da onça. “Quero saber o que me liga a minha avó e o que a ligava a minha bisavó”, completou. 

“É inevitável que a presença indígena na arte e na política cresça. E a gente não está chegando sozinho”, afirmou Yacunã Tuxá, que usou a imagem da flecha para falar da arte e da literatura como ativismo. Para Célia Tupinambá, a flecha “tem que voar e atravessar [os obstáculos], abrindo caminho para dar o recado.”

Do caos à História

Para falar de cultura e futuro, tema da conversa entre Eliane Potiguara, Maria José Silveira e Tiganá Santana, a mesa chamou-se “Há navio no caos, há cura na cultura, há novas Américas em reconstrução de independência”. O nome foi em parte inspirado numa canção de 2015 do cantor, compositor e pesquisador baiano, que fala de “navios no caos”.

“[O caos] é isso que se chama de Brasil, essa invenção bizarra. Mas o caos é também abertura, vazio e possibilidade de todas as poéticas a partir dessa abertura. E quem precisa se abrir para uma transformação real é quem sempre ocupou os lugares de privilégio”, disse Santana. “Eu me preocupo mais com as pessoas brancas supostamente progressistas que pensam que as coisas já estão resolvidas”, concluiu.

Nascida em Goiás e com uma obra que explora questões ambientais e políticas no Brasil profundo, a escritora Maria José Silveira falou de seu romance Maria Altamira, publicado em 2020 e finalista dos prêmios Jabuti, Oceanos e São Paulo de Literatura. Entre outros assuntos, o livro aborda os efeitos da criação da Usina de Belo Monte, no Pará. “Escrevi o livro como uma alegoria do Brasil. A vida que vivemos vai formando o que pensamos”, contou.

A fala da escritora e ativista Eliane Potiguara foi marcada por um depoimento emocionado. “Eu não seria Eliane Potiguara se não tivesse uma família indígena forte e combativa. Quando somos oprimidos, violentados, assassinados, como foi minha família, não podemos ficar calados”, disse  a autora de O vento espalha minha voz originária. Ela contou ter começado a escrever “com as lágrimas da minha avó” e que vê na literatura um caminho para chegar aos lugares mais distantes.

A ativista de 73 anos, que participou da elaboração da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, disse ainda ter sua voz sufocada, mas declarou: “Não sou violência, não sou estupro, sou História.”

Literatura e democracia

A última noite da programação principal da 11ª Flica terminou com dois hermanos, numa conversa entre o autor panamenho Carlos Wynter Melo e a escritora e advogada mexicana Ximena Santaolalla. O tema foi “Diversidade, arte e democracia: nada sobre nós sem nós!”.

O autor Carlos Wynter Melo [Diego Silva/Divulgação]

“A literatura amplia mundos e horizontes, é fundamental para a construção de uma sociedade democrática”, disse Wynter Melo, que acaba de lançar no Brasil As impuras, romance que conta a história de duas mulheres e também a história do Panamá.

Já a mexicana Santaolalla, que publicou o romance Às vezes acordo tremendo, declarou que quis mostrar para seus conterrâneos a situação dos imigrantes guatemaltecos a partir da ditadura comandada entre 1982 e 1983 pelo ex-presidente da Guatemala José Efraín Ríos Montt, que considera uma das piores da América Latina. Apesar de durar só 16 meses, o regime de exceção assassinou mais de 100 mil pessoas, segundo Santaolalla.

A escritora e advogada mexicana Ximena Santaolalla [Diego Silva/Divulgação]

Ela defendeu que a literatura deve atuar contra o esquecimento. “Há muitos imigrantes guatemaltecos no meu país, mas poucos conhecem sua história. Quis visibilizar o problema da Guatemala e sensibilizar o México, seu país vizinho”, disse a escritora. 

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34).

Luana Miranda

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.