Literatura brasileira,
Iñe-e, presente!
Ao narrar o rapto e a morte de indígenas, novo romance de Micheliny Verunschk mostra como o passado colonial irrompe através do tempo
01abr2021 | Edição #44Muito se dirá que O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, é um romance sobre o destino funesto imposto às crianças indígenas Iñe-e e Juri, ao serem levadas para um castelo alemão pelos naturalistas Spix e Martius após viagens exploratórias pelo Brasil no século 19. Mas sua trama não se encerra aí. Ao destrinchar os horrores cometidos em nome da empreitada colonial e da ciência a seu serviço, a obra desdobra-se em diferentes épocas, emaranha uma sucessão de outras histórias que têm nesse extravio original o seu anúncio agônico e opera uma inversão nessa sina ao vocalizar com impetuosidade vital o que enfim se escuta, como promete o título.
Embora abarque cada uma das violações atentadas contra a vida do menino Juri e sonde a consciência (ou a falta de) dos estrangeiros ou de quem se torna estrangeiro dentro da própria nação indígena, as vozes narrativas do livro estão a maior parte do tempo em proximidade máxima com a menina e as personagens que com ela se irmanam: “Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância”. Vigilância que se projeta para além da morte e atravessa os tempos com um sentido de insurgência e sem chance para reconciliação.
A vida saqueada de Iñe-e, que com a morte não termina, é a protagonista do romance: “porque morrer era só uma parte muito pequena daquilo tudo”. Assim, se a alma dela era levada para o papel enquanto era desenhada para catalogação, passando por um processo de “desencantamento” antes mesmo de sua aniquilação física, também acompanhamos sua sobrevivência a todo tipo de dissecação, para mais adiante reviver onde e quando menos se espera — ou talvez seja mais correto dizer: onde sempre se esperou, porque nunca esquecida.
Mesmo submetidos a violações equivalentes, as distinções feitas entre o menino e a menina indígenas são particularizadas e decisivas para os pontos de vista privilegiados no livro. Essa diferenciação não é apenas fruto do olhar branco; ela se dá no seio das próprias famílias de Juri e Iñe-e. Enquanto o menino sucederia a seu pai na floresta antes de virar prisioneiro e moeda de troca nas mãos dos miranhas, a menina já estava assinalada por uma suposta maldição, antes de ser entregue como prenda a Martius, dado que o alemão, que além de cientista era poeta, trata de rasurar em suas linhas. Na versão dele, Iñe-e foi resgatada de um “horrível cativeiro”.
Juri não pertence a um grupo que come carne humana. Já o alardeado canibalismo do povo de Iñe-e remete à “imanência do inimigo”, para falar com Eduardo Viveiros de Castro, citando a capacidade que esse banquete proporcionaria de provar o ângulo desse outro atroz como uma “estrutura de direito do pensamento, que define uma outra relação com o saber e outro regime de verdade”.
Personagem coletiva
Iñe-e é uma personagem singular, mas também coletiva, pois representa uma série de outras que com ela passam a ser identificadas ou a se identificar: caso de Josefa, paraense que vive em São Paulo em uma temporalidade equivalente à vivida pelo leitor desse lançamento. A propósito, Verunschk não tem medo do risco de datar, com tamanha carga de referências retiradas da atualidade, um trabalho que se destaca pelo apuro com o qual reconstitui e elabora no interior de sua ficção documentos e episódios históricos ocorridos em outro século. Isso porque o cruzamento entre o passado com esse mesmo agora, sem dissociações, lhe é fundamental.
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A transmutação dos espaços de meros cenários a territórios com vida própria e suas sinas é outra escolha formal ao lado de um protagonismo do infante (etimologicamente o que não tem voz) e das figuras femininas, que tanto buscam calar ou aniquilar. Essa eleição espacial e de vozes pode ser observada tanto no romance de estreia da autora, Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (2014), quanto em sua trilogia sobre a ditadura militar: Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018).
O som do rugido da onça é mais um feito de uma certa linhagem da literatura brasileira contemporânea (jamais única nem uníssona), que tem na própria autora uma de suas precursoras. Verunschk já era poeta reconhecida quando Nossa Teresa venceu o Prêmio São Paulo na categoria romance estreante com mais de 40 anos em 2015. E, a despeito da atenta coerência entre sua produção poética e a romanesca, foi com a prosa que ela passou a figurar como uma das responsáveis pelas lufadas literárias atualíssimas a soprar na direção do interior do país, suas gentes, crenças e causas, tantas delas revisitadas do ponto de vista histórico, sem apartá-las das intrincadas relações com os centros urbanos e o presente de sua escrita.
Esse movimento eólico a soprar para o norte e suas interioridades, a se embrenhar nas matas e embolar garranchos no chão sertanejo nunca cessou de todo em nossas letras e sempre trata de atualizar ângulos que não podem ser ignorados no diálogo com a tradição canônica. Contudo, esses ventos trouxeram num curto espaço de tempo livros como Tempo de espalhar pedras, de Estevão Azevedo; A cabeça do santo, de Socorro Acioli; Redemoinho em dia quente, de Jarid Arraes; Céus e terra, de Franklin Carvalho; e se agigantaram no furacão Torto arado, de Itamar Vieira Junior, autor do texto da quarta capa de O som do rugido da onça.
Não podemos deixar de assinalar a especificidade das representações dos indígenas feitas por não indígenas ao longo da história da literatura brasileira. Podemos pensar nos contrastes e aproximações com personagens de Gonçalves Dias, José de Alencar, Mário de Andrade, Raul Bopp, Antonio Callado. O conto “Meu tio o Iauaretê” também não pode ser esquecido. Nele, Guimarães Rosa já nos aproximara da onça como parente e de como ela reage quando alguma coisa ruim acontece: “então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar”. Alguma coisa ruim acontece há muito tempo por essas bandas em que ganha corpo a onça de Verunschk. O tempo todo. Vigilante, ela salta e se faz presente em todo tempo e lugar.
Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.
Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.
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