
A Feira do Livro,
“O homem branco que inventou que as nossas terras têm linhas”, diz Txai Suruí sobre o marco temporal
Na mesa Os territórios, as jovens líderes Paiter Suruí e Jerá Guarani convidaram as pessoas a entender que a luta indígena também deve ser uma luta dos brancos
10jun2023 | Edição #70O quarto dia d’A Feira do Livro começou com uma conversa inspiradora com duas jovens lideranças indígenas: Txai Suruí, do povo paiter suruí, da Terra Indígena (TI) Sete de Setembro, em Rondônia, colunista da Folha de S.Paulo e grande voz do ativismo climático indígena; e Jerá Guarani, do povo guarani m'byá da cidade de São Paulo, liderança feminina e educadora formada em pedagogia pela USP.
Conduzida no Palco da Praça pelo jornalista Bernardo Esteves, da revista piauí, a conversa passou pelo inevitável tema do marco temporal, tese de que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam em 1988, no momento da promulgação da Constituição, tema de um projeto de lei (PL) 2903 (antigo PL 490) que foi aprovado a toque de caixa pela Câmara e que agora tramita no Senado.
“Muda de nome, mas não muda o projeto de morte”, afirmou Txai. “O homem branco que inventou essa coisa de que as nossas terras têm linhas. Antes a gente andava livremente por toda Abya Yala [América na língua do povo cuna, que vive no Panamá e Colômbia]. Tudo isso aqui onde estamos era terra guarani. Era não, é, porque tem guarani aqui, temos guaranis aqui entre a gente hoje”, afirmou, sob aplausos.
Jerá convidou os jurua (não guaranis na língua guarani) a buscarem no Google sobre o marco temporal e também sobre as terras indígenas, para ver nos mapas que “onde tem terra indígena, tem mato. Não é porque a gente é evoluído, mas porque a gente entende que precisa garantir a continuidade da vida. O jurua pode continuar no apartamento, na cidade, pedindo pizza pelo telefone. Mas tem que entender que essa tese do marco temporal significa a morte de todos, não só dos povos indígenas. Eu falo que os jurua têm que estudar”.
E concluiu: “Eu fico pensando que se todos os jurua de São Paulo parassem a cidade, nossa… A gente vive no pouco de Mata Atlântica que está de pé, mas essa Mata Atlântica não é só dos guarani, é também dos jurua".

Txai Suruí e Jerá Guarani [Sean Vadaru/Divulgação]
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Txai apontou que “esses homens que estão no poder vão ter que explicar no futuro não para a gente, mas para os próprios filhos, por que praticaram essa política de morte para as próximas gerações. Tem que entender que essa não é uma luta só nossa. Isso chega primeiro em quem vive às margens, mas vai chegar em todo mundo. Já está chegando, é só ver as enchentes nas cidades. Então eu convido vocês a cobrarem também, a participarem dessa luta”.
“Vocês também têm que entender a parte de vocês”, argumentou. “Parece que a gente está aqui para salvar todo mundo. Vocês têm que se mobilizar para defender a terra de vocês”, completou Txai. “Quero convidar vocês a sonharem conosco um mundo em que não só os povos indígenas possam ser livres, mas todos possam ser livres.”
O marco temporal também está na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal), em julgamento que se arrasta desde 2021 e foi mais uma vez interrompido na última quarta, 7, pelo pedido de vistas do ministro André Mendonça. Txai classificou a interrupção como “forma de manipulação política pelo ministro do Bolsonaro”. “Porque eles estão tentando fazer o mesmo que fizeram na Câmara, adia o julgamento no STF e acelera a votação no Senado”, disse.
A liderança do povo paiter suruí ressaltou que o PL 2903 também trata de mais do que o marco temporal: também tira do Poder Executivo e passa para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas, libera o garimpo dentro das terras indígenas, ferindo o Tratado 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) — que versa sobre o direito dos povos indígenas de consulta e consentimento livre, prévio e informado e de boa-fé em questões que possam afetá-los —, e permite que se faça contato com povos que se mantêm em isolamento involuntário.
Ela então explicou o que significa território para o seu povo. “O território para o não indígena ainda é visto como patrimônio, algo econômico só. A nossa luta pelos territórios é a luta pela vida, é isso que significa território para a gente, é a continuidade da vida”. E deu um exemplo: “Os rios continuam nas nossas veias. E talvez os brancos só entendam isso quando beberem água contaminada por mercúrio e perceberem que o rio continua nele, que não é só o rio que está envenenado, é a água que está no corpo dele”.
“Se isso é ser civilizado, eu não quero ser civilizada, quero ser selvagem”, concordou Jerá.
Txai, que havia iniciado sua fala recitando um poema que publicou em sua coluna na Folha de S.Paulo, encerrou a mesa com um canto de acolhimento, acompanhada por Jerá e Esteves. “Eu cantei para que as pessoas acolham aquilo que a Jerá e eu falamos. Porque, como o Davi Kopenawa diz, o não indigena tem dificuldade de ouvir”, explicou, depois de deixar o palco.

Retrato de Txai Suruí [Sean Vadaru/Divulgação]
As ameaças aos povos indígenas e ao meio ambiente também foram assunto da mesa de abertura, O espírito da floresta, em homenagem ao indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e ao jornalista britânico Dom Phillips, assassinados no vale do Javari, em 2022, com participação das antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Hanna Limulja e do músico e jornalista Xavier Bartaburu. Na mesa Ficções amazônicas, os antropólogos e escritores Pedro Cesarino e Aparecida Vilaça e a atriz e ficcionista Rita Carelli também trouxeram a questão do marco temporal na conversa sobre representações amazônicas na literatura, com mediação de Iara Biderman, editora da Quatro Cinco Um.
A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.