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Por dentro dos mistérios

Episódio narrativo mergulha no universo de Lygia Fagundes Telles e traz texto inédito de uma pioneira na literatura brasileira

23jun2021 | Edição #47

Como se formou a maior prosadora brasileira viva? Lygia Fagundes Telles é uma das autoras mais populares do país, premiada e reconhecida pela crítica. Mas como foi o percurso dessa paulistana que desbravou os territórios onde pisou e subverteu expectativas e dogmas da vida literária brasileira? Um episódio especial do podcast 451 MHz busca responder essas e outras perguntas por meio de depoimentos de grandes leitores, de textos consagrados e inéditos e da criação de uma atmosfera sonora inspirada na ficção de Lygia.

Nesta sexta-feira (25), o 451 MHz faz uma pausa na rotina habitual de entrevistas para prestar uma homenagem a Lygia, que completou 98 anos no último dia 19 de abril, no segundo episódio da coleção Narradores do Brasil. Depois de traçar um perfil da vida e da obra de Rubem Fonseca, o 451 MHz investiga a trajetória de Lygia Fagundes Telles, autora de As meninas, Antes do baile verde, O seminário dos ratos e diversos outros marcos da literatura brasileira.

Depois de ler uma antologia de contos para uso escolar, a editora da Quatro Cinco Um Paula Carvalho, que narrou e roteirizou o episódio, arriscou-se, na adolescência, a escrever um conto marcado pela atmosfera de mistério e terror. Após a  leitura de Lygia, ficou claro que o caminho para uma literatura brasileira com tons góticos estava aberto. No programa, ela conversou com escritoras e escritores, críticos, amigos e também com a neta de Lygia, que a ajuda a editar e organizar seus escritos, para decifrar esse mistério da obra da autora, que é bem explicado pelo escritor e cineasta Nilton Resende, professor da Universidade Estadual do Alagoas e que estuda os escritor de Lygia.

Desbravadora

Nascida em 1923, em São Paulo, filha de um delegado e promotor e uma dona de casa, Lygia desde cedo foi uma desbravadora. Ainda criança, viu seus pais se desquitarem, pelo fato de o pai apostar em jogos de azar. Sem o divórcio legalizado, o desquite era a única saída para casais que quisessem se separar — e um estigma para os filhos. A adolescente foi morar com a mãe numa pensão. Ao entrar na faculdade de direito, ela era uma das poucas mulheres a estudar ali.

“Ela é um marco feminino e feminista também”, disse ao 451 MHz a presidente do tradicional Centro Acadêmico Onze de Agosto, Leticia Chagas, que vem de uma nova geração que está transformando a vida acadêmica da instituição. Em seu depoimento no episódio, Leticia conta que Lygia foi a primeira mulher a ser homenageada na faculdade, dando seu nome a uma das salas da São Francisco.

Também na literatura Lygia foi pioneira. Uma historinha contada no episódio mostra como o machismo do meio literário foi — e ainda é — uma dificuldade adicional para as autoras no Brasil, de Lygia a Giovana Madalosso, uma das entrevistadas do programa. Madalosso conta que, ao publicar seu primeiro livro, recebeu um conselho semelhante ao que Lygia ouviu de Clarice Lispector — que procurasse não sorrir, para não passar a impressão de falta de seriedade.

“Ela sempre foi uma mulher de luta”, comenta o amigo Ignácio de Loyola Brandão. O episódio mostra como a escritora desde cedo se dedicou a escrever e a publicar seus livros. Não demorou a ser notada pela crítica e pelo mercado editorial. Seria publicada no exterior e ganharia uma coleção de Jabutis, instalando-se no primeiro plano da literatura brasileira.

Os entrevistados do episódio especulam sobre os segredos do funcionamento da ficção de Lygia — os meios-tons, as zonas cinzentas, o erotismo quase pornográfico, a capacidade de imprimir tinturas de horror ao cotidiano, a arte de “dizer escondendo”, o poder de síntese, o talento para escolher títulos, a inveja e as mentiras dos personagens “humanamente desumanos”, como define o escritor Marcelino Freire. “Não confiem na Lygia!”, alerta ele. Cidinha da Silva, Julián Fuks e Tércia Montenegro são outros escritores contemporâneos que prestam sua homenagem a Lygia no episódio, assim como a crítica e booktuber Tamy Ghannam.

Para trazer para os nossos ouvidos um pouco desses segredos e da atmosfera estranha da prosa de Lygia Fagundes Telles, foi acrescentada uma nova camada de som ao roteiro: as ilustrações sonoras de Maria Beraldo, multi-instrumentista catarinense que foi convidada pelo 451 MHz a fazer uma interpretação instrumental e experimental da obra da escritora. Essa textura sonora se completa com uma participação especialíssima de uma atriz que interpretou uma criação de Lygia no cinema: Adriana Esteves faz leituras de trechos de textos de Lygia.

O programa apresenta preciosidades que foram localizadas por Paula Carvalho durante a pesquisa para o roteiro. Lucia Telles, neta da escritora, cedeu para leitura no episódio um texto inédito de sua avó, que aguardava numa pasta o momento certo de vir a público. Lucia ainda encontrou nos arquivos da avó dois poemas e uma carta de 1977 de Carlos Drummond de Andrade, consolando a amiga que acabara de perder seu grande amor, Paulo Emílio Salles Gomes, com quem se juntou nos anos 60. A relação com Paulo Emilio resultaria em projetos a quatro mãos e na luta pela preservação da Cinemateca Brasileira, fundada pelo crítico e defendida sem descanso pela escritora, que chegou a presidir a instituição.

Décadas depois de Paulo Emílio, Lygia perdeu outro amor: o filho, Gofredo Telles Neto, em 2006, aos 52 anos. O baque foi profundo na obra: se a morte, “modelagem contínua da vida”, já era um elemento central em sua ficção, agora ganhava feições mais trágicas. A escritora reagiu como sabia: escrevendo. Alguns belos livros saíram dessa experiência de luto.

O episódio tem apoio dos Ouvintes Entusiastas do 451 MHz e da editora Companhia das Letras, que publica a obra de Lygia. Ao participarem do desafio proposto nos minutos finais do programa, os ouvintes podem ganhar quatro livros da autora. A coordenação geral do episódio é de Vitor Hugo Brandalise e a produção, de Gabriela Varella, da Rádio Novelo, start-up de podcasts que produz o 451 MHz.

“Os mistérios de Lygia Fagundes Telles” será publicado às 4h51 do dia 25 de junho, no site da Quatro Cinco Um, nos principais tocadores de podcasts e no canal da revista no YouTube. Em 2 de julho, o programa volta com um episódio especial de aniversário de dois anos do podcast. A coleção Narradores do Brasil, que homenageia grandes autoras e autores da literatura brasileira em formato narrativo, não tem periodicidade fixa. Mais alguns episódios roteirizados serão publicados no segundo semestre, no feed do 451 MHz. Outros projetos de podcast estão em produção na Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.