Literatura,

Starnone: ‘Nunca dei muito peso à fidelidade, mas dou bastante à lealdade’

Autor italiano fala sobre o romance ‘Segredos’, relações amorosas, literatura e o amor nos tempos da Covid-19

03jun2020

Amar o perdido deixa confundido este coração. Não há sinais de que Pietro, protagonista de Segredos, tenha lido os versos de Carlos Drummond de Andrade, mas eles parecem dar o tom desse livrinho magnífico, o terceiro que o autor publica no Brasil, pela editora Todavia, em tradução de Mauricio Santana Dias.

Relações amorosas são exploradas por ângulos distintos, mas jamais são mostradas por inteiro: sempre há alguma coisa escondida. O que escapa? Quais são os pontos cegos na narrativa e nos desejos?

A prosa de Starnone é vívida como grande parte da literatura italiana contemporânea, um dos temas desta entrevista que ele respondeu por e-mail. Segredos traz um retrato quase cruel do homem de hoje — pelo menos aquele famigerado homem branco, hétero, de classe alta — às voltas com seus desejos, culpas e segredos.

"Estamos perdendo terreno", ironiza, ao falar sobre certa literatura masculina, e cita as autoras que "tendem a atribuir um valor cada vez maior à literatura e à escrita como forma de presença ativa no mundo, como compromisso absoluto, onívoro". Segundo ele, para muitos autores homens, os livros "são apenas uma flor na lapela, um lenço bem dobrado no bolso do paletó".

Leia abaixo essas e outras respostas do romancista, habilidoso na arte de administrar outros segredos, de ordem narrativa, a seus leitores. Um narrador infiel, a quem não falta, no entanto, lealdade.

Para o seu personagem Pietro, em que medida devemos fidelidade aos nossos ex-relacionamentos?
Nunca dei muito peso à fidelidade; mas dou bastante à lealdade. A lealdade é fundamental, especialmente nas relações amorosas. Há relações que continuam sendo relevantes em nossas vidas, apesar de o amor já ter acabado há tempos, isso porque, na origem, elas foram fundadas na correção e na sinceridade. Entretanto, lamentavelmente, as relações em que a lealdade é um valor basilar costumam ser as mais tempestuosas. Ao passo que a fidelidade pressupõe, por princípio, repressão sexual e espírito servil de sacrifício, a lealdade exige franqueza, e franqueza causa sofrimento. Pietro e Teresa foram leais até o ponto de se separarem, mas se mantiveram atormentadamente leais por toda a vida.       

Essa fidelidade a relacionamentos terminados é uma traição ao relacionamento atual?
Não sei, eu evitaria falar em traição. Pietro ocultou da mulher grande parte de si, enquanto se revelou integralmente a Teresa. Teresa sabe do que Pietro seria capaz, Nadia, não. Ambas as relações são duradouras, são de fato dois casamentos. Mas com Nadia, a esposa, Pietro é fiel e mentiroso; já com Teresa, a antiga amante, ele é infiel e sincero.

O filósofo Paul B. Preciado escreveu, numa crônica sobre a sua experiência com a Covid-19, que a doença seria uma conspiração dos que perderam o seu amor para reatar com seus ex, nem que seja por carta. Escrito antes da pandemia, de alguma forma Segredos expressa esse sentimento de vínculo com um amor perdido?
A Covid-19 foi, entre outras coisas, um grave problema para as relações extraconjugais. Forçosamente separados da pessoa desejada, muitos se viram trancafiados em casa com a pessoa que não amavam mais. Esta foi uma manifestação não secundária da letalidade do vírus. Descobriu-se que o equilíbrio dos casais e das famílias se sustenta sobre a ausência – grande parte da vida de cônjuges e filhos se passa fora das paredes domésticas –, e que uma presença excessiva não faz bem nenhum. Em meu livro, a ligação mais forte é a que já não se alimenta de nenhuma proximidade física.    

O sr. é um leitor de Philip Roth? A morte dele, há dois anos, o marcou de que maneira?
Roth foi um escritor extraordinário. Amei todos os romances dele, mas para mim seu livro indispensável é um livrinho magro, “The Ghost Writer” [ed. bras. em “Zuckerman acorrentado: 3 romances e 1 epílogo”, tradução de Alexandre Hubner, Companhia das Letras, 2011].  

No Brasil estamos perdendo muitos grandes autores nas últimas semanas (Sérgio Sant'Anna, Aldir Blanc, Garcia-Roza, Rubem Fonseca), de Covid-19 ou não. A pandemia também levou muitos escritores italianos?
Até agora, acho realmente que não. Mas estamos todos expostos, especialmente nós, os velhos, e quem viver vai no final se apresentar à lista de presença.  

De Nathalia Ginzburg e Elsa Morante a Elena Ferrante e Igiaba Scego, a literatura italiana, particularmente de mulheres, vive um boom mundial. Tem mais indicações para quem queira seguir essa linha?
Temos toda uma nova leva de escritoras, muitas, aguerridas, frequentemente de grande nível. Cito alguns nomes: Melania Mazzucco, Elena Janecek, Margareth Mazzantini, Silvia Ballestra, Valeria Parrella, Michela Murgia, Antonella Lattanzi, Teresa Ciabatti, Nadia Terranova, Simona Vinci, Letizia Muratori, Silvia Avallone, Chiara Gamberale, Mariolina Venezia, Donatella Di Pietrantonio, e certamente me esqueci de mencionar algumas. São autoras com fisionomias muito diferentes, algumas já conhecidas no exterior. Além disso, é preciso acrescentar as numerosas estreantes. Pelo menos três me pareceram de grande interesse: Claudia Durastanti, Stefania Auci e Marta Barone.

Existe literatura masculina?
Claro que existe, mas deixaria o universalismo de lado. A literatura foi, pelo olhar sobre o mundo, pelo uso de formas expressivas, por hierarquias temáticas, tradicionalmente masculina, e ainda é. Mas estamos perdendo terreno.

Enquanto as inteligências femininas tendem a atribuir um valor cada vez maior à literatura e à escrita como forma de presença ativa no mundo, como compromisso absoluto, onívoro, as inteligências masculinas há algum tempo se realizam mirando outras coisas, mídias mais poderosas. Se a certa altura eles fazem literatura, o fazem a partir de carreiras de sucesso em outras áreas (cantores, atores, diretores, políticos, jornalistas, aposentados etc.). Os livros são apenas uma flor na lapela, um lenço bem dobrado no bolso do paletó.

Isso naturalmente não significa que a literatura masculina esteja morta. Na Itália, temos escritores que merecem todo o respeito: Sandro Veronesi, Walter Siti, Michele Mari, Nicola Lagioia, Mauro Covacich, Edoardo Albinati,  Antonio Pascale, Francesco Piccolo, Diego De Silva, Paolo Teobaldi, Emanuele Trevi, Antonio Scurati, Paolo Giordano, Tiziano Scarpa, e poderia prosseguir com ótimos escritores de séries como Giancarlo De Cataldo ou Maurizio De Giovanni, ou um jovem promissor como Emiliano Poddi. Há uma abundância de autores, e a qualidade é frequentemente muito alta. Mas as mulheres, acho, têm a convicção, a energia de quem sente que é o momento da retomada e que a aposta em jogo é muito alta.      

Com tanto machismo e desigualdade de gêneros ainda por serem combatidos, é possível reivindicar uma subjetividade ou sensibilidade masculina na literatura que não esteja embebida em culpa ou em autocelebrações priápicas?
Possível é, com certeza. O problema é conseguir isso literariamente. É preciso que as coisas mudem de verdade, que deixemos para trás uma cultura plurimilenar e fundemos uma nova. É necessário – e o digo com bastante ironia – que se afirme um além-macho. Mas por ora tudo o que sabemos fazer é “feminilizar-se”, esperando assim nos redimirmos. Ou então exibimos nossa masculinidade arrogante, mas pedindo desculpas, como se disséssemos: perdão, foi a natureza que nos fez assim, somos nocivos e apesar disso inocentes.   

Pietro se mostra confuso, indeciso entre "um gorila sem afetos e sempre à caça, que até quando não caça sonha com suas presas"  e "o melhor dos homens, um bom marido e um ótimo pai". A fantasia de ser um "bom menino" (e a culpa por de fato não sê-lo) ainda é uma questão não superada pelo homem hetero de classe média, pelo menos os que são personagens de livros?
O que dizer? Não sei se é um problema apenas da classe média. Somos fragmentos de matéria viva, todos atormentados por contradições insanáveis. Gostaríamos de nos abandonar desregradamente ao gozo da vida, e no entanto cultuamos a racionalidade, tendemos a distinguir entre bons jovens, que têm desejos razoáveis, e jovens péssimos, tomados por desejos irracionais. Pietro é um péssimo rapaz que quer ser, ou pelo menos parecer, um bom rapaz.   

Termino com duas perguntas ligadas à crise da Covid na Itália. Como foi a sua experiência de isolamento? Como estavam as cidades e as pessoas na Itália durante o auge da crise?
Experiência péssima. Isolar-se nunca é bom; ser forçado ao isolamento é ainda pior. Na maioria das vezes vivo em solidão, por trabalho, mas preciso saber que posso encontrar quem eu quiser, toda vez que quiser. Quanto à cidade, foi um sobressalto de medo e ao mesmo tempo de espanto. Mas logo prevaleceu o espanto. Nunca tinha visto Roma como uma cidade morta:   carros parados, nenhuma buzina, transporte público circulando sem passageiros, os semáforos funcionando inutilmente, raros passantes, todos fechados em casa. Ficamos tão aterrorizados que isso detonou uma forma de obediência cega.  

A pandemia enfraqueceu ou estimulou o nacionalismo de extrema-direita de Salvini?
Todas as direitas, no mundo inteiro, deram uma péssima mostra de si diante da pandemia. No entanto, reforçou-se a ideia de que se fechar é melhor que se abrir, de que nos salvamos sozinhos. Mais que isso, tornou-se quase um lugar-comum dizer que, numa situação de emergência, um regime autoritário pode agir melhor que uma democracia. Sem contar que nós mesmos, cidadãos, demonstramos que, se souberem nos assustar bem, cedemos sem objeções um bom naco dos nossos direitos.  

Por fim, uma pergunta pessoal. Conte um segredo seu. Não precisa ser uma coisa horrível, que se fosse descoberta te destruiria para sempre. 
Só conto meus segredos quando escrevo narrativas e romances. (Colaborou Paula Carvalho. Tradução de Maurício Santana Dias)

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.