Literatura infantojuvenil,

Um conto de fadas ilustrado

Cartunista dá vida a pedaços de madeira em uma história generosamente ilustrada, cheia de personagens e objetos a serem descobertos

28jul2022 | Edição #60

Era uma vez um rei e uma rainha… assim começa O robozinho de madeira e a princesa-lenha, saga ilustrada do cartunista Tom Gauld. Protagonizada por um casal sem filhos que milagrosamente passa a ter dois — um gentil robozinho de madeira e uma destemida princesa lenha. As crianças tinham, contudo, suas peculiaridades — o robô hospedava uma família de besouros em suas engrenagens, e a princesa todas as noites se transformava em lenha — deixas para a aventura que segue. As crianças se perdem no distante e perigoso Norte e precisam encontrar o caminho para casa. Os tropos comuns dos contos de fada funcionam, e todos vivem felizes para sempre, claro, mas não sem antes passar por uma série de adversidades, sentimentos amedrontadores e aventuras ricamente ilustradas, com direito a elementos que o autor-ilustrador adora desenhar: prateleiras empilhadas de coisas estranhas, um grande mapa, uma floresta escura e profunda.

O encanto vêm mesmo dos quadrinhos de Gauld, que tem uma coleção de livros no currículo, venceu o prêmio Eisner com o livro de humor Baking with Kafka (Cozinhando com Kafka) e colabora para veículos jornalísticos, inclusive com capas para a New Yorker, cujo padrão editorial das ilustrações dispensa comentários (até houve um site, o The Not Yorker, que se divertia com obras recusadas). Em entrevista à Quatro Cinco Um, Gauld compartilha como ler e contar histórias para suas filhas na hora de dormir deu origem a esse seu primeiro livro infantil, suas inspirações criativas, o papel da imaginação e a descoberta dos livros infantis.

 


O cartunista Tom Gauld (Divulgação)

Seu primeiro livro foi publicado há duas décadas. Como você entrou no mundo dos cartuns e começou a escrever livros infantis?
Sempre amei desenhar. Desde pequeno, nunca fui mais feliz do que quando estou imaginando coisas e fazendo desenhos a partir delas. Fui para a escola de arte e, enquanto estava lá, percebi que contar histórias e fazer piadas com imagens era o que eu mais gostava. Comecei a fazer cartuns para divertir meus amigos e depois trabalhei com uma colega, Simone Lia, para autopublicar alguns zines dos nossos desenhos e histórias. Esses zines levaram a trabalhos profissionais de cartuns para nós dois e eu tenho feito isso desde então. Agora faço dois cartuns por semana, um sobre ciência e outro sobre livros, e tento encaixar outros projetos (graphic novels, este livro infantil) em torno deles.

De onde veio a ideia para O robozinho de madeira e a princesa-lenha?
Eu queria fazer um livro infantil desde que estava na faculdade, mas nunca consegui encontrar uma história que parecesse certa. Levei mais a sério quando tive filhas e li histórias de ninar todas as noites durante anos. Aprendi muito naqueles anos: tanto o que fazer com os grandes livros, mas também o que não fazer com os ruins. Uma das coisas mais importantes que percebi foi que um livro ilustrado para a hora de dormir como o meu precisa soar bem quando lido em voz alta. É realmente um roteiro para uma performance. Então, eu li muito minha história em voz alta enquanto trabalhava nele.

Por que você optou por uma princesa de lenha e um robô de madeira como personagens?
O livro começou como uma história de ninar que inventei para minhas duas filhas. Minha filha mais nova dorme tão profundamente que a chamamos de the log (a lenha — em inglês, dizem sleep like a log para o que diríamos como dormir como pedra), então, uma noite, inventei um conto sobre duas princesas, uma das quais se transforma em lenha quando dorme. Percebi que daria um bom livro ilustrado, mas enquanto trabalhava nele, decidi que um robô de madeira traria mais divertimento visual do que uma segunda princesa. Eu amo os contos de fadas dos Grimm, então tentei tecer muitos dos meus elementos favoritos de seus contos nos meus.


Ilustrações de Tom Gauld

Em duas páginas, você traz retratos de várias aventuras pelas quais cada uma das personagens passou, sem se aprofundar em nenhuma delas. Por que isso?
Eu esperava que esses retratos dessem a impressão de uma história muito maior, mais longa e mais épica, mantendo o livro curto o suficiente para ser lido em uma noite como uma história para dormir. Gosto da ideia de que a criança possa imaginar essas histórias por si mesma, ou discuti-las com o adulto lendo, ou até mesmo escrevê-las. Gosto de histórias que apresentam mundos imaginários. Eu esperava que essas aventuras, bem como os mapas e planos de fundo das imagens, ajudassem a sugerir um mundo de conto de fadas inteiro, onde muitas coisas fascinantes estão acontecendo.

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De forma curiosa, você traz à tona uma questão contemporânea – a dificuldade de alguns casais em ter filhos. Os personagens também experimentam egoísmo, desespero, medo. Quão intencional foi trazer situações ou sentimentos complexos no livro?
O casal sem filhos que recebe um bebê milagroso é um tropo comum nos contos de fadas, suponho porque algumas pessoas sempre tiveram dificuldades em ter filhos. Escolhi usar o tropo porque funcionou para a história de uma maneira técnica, mas, quando comecei a escrever os personagens, senti simpatia por eles, o que espero que apareça na história. Eu não estava tentando abordar especificamente nenhum problema, apenas queria fazer uma história interessante, mas uma vez que você faz personagens e dá a eles sentimentos, essas coisas surgem.

Você une vários personagens diferentes — uma rainha, um rei, uma bruxa, um inventor, besouros e objetos variados. O New York Times descreve o livro como um “banquete visual”. De onde vieram tantas ideias para detalhes? Como é o seu processo criativo?
Quando criança, eu adorava livros com muitos detalhes. Eu havia lido a história, mas depois me sentava por horas debruçado sobre as ilustrações e procurando por coisas interessantes no fundo ou escondidas. A coisa boa de quando você é o escritor e o ilustrador de um livro é que você pode escrever uma história que contém todas as coisas que você gosta de desenhar. Eu sabia desde o começo que havia certas coisas que eu queria lá: guardas de livro realmente detalhadas, algumas prateleiras empilhadas de coisas estranhas, um grande mapa, uma floresta escura e profunda etc. Passei muito tempo nos desenhos a lápis, retrabalhando-os para espremer mais detalhes, o que espero ajudar a conjurar um mundo mais interessante.

Quem ou quais são algumas de suas inspirações?
Há um escritor britânico brilhante chamado Allan Ahlberg que fez muitos livros ilustrados por sua esposa Janet Ahlberg. Meus pais liam suas primeiras histórias para mim quando eu era pequeno e eu lia outras para meus filhos, e ele ainda publica hoje em dia. As histórias soam maravilhosamente lidas em voz alta e as palavras e imagens funcionam tão bem juntas. Esperava conseguir algo assim. Outra grande influência é o artista americano Edward Gorey, que me inspira desde a faculdade. Seus livros não são muito para crianças, mas a atmosfera estranha e o design elegante de seus livros sempre me atraíram. E, claro, os contos de fadas publicados pelos Irmãos Grimm.

Há algum livro que você gostaria de ter lido quando criança?
Acho que teria adorado os livros de Lemony Snickett (de Desventuras em série) se eles existissem quando eu era criança. Dá para ver que ele é fã de Edward Gorey, e acho que eu teria adorado o drama gótico e o humor seco. Além disso, há muito mais quadrinhos hoje em dia para crianças. Quando pequeno, toda semana eu pegava um livro novo do Asterix ou do Tintin na biblioteca, mas agora a biblioteca e a livraria locais têm uma seleção muito maior de quadrinhos, acho que teria gostado disso.

Como podemos estimular o hábito da leitura nas crianças?
Uma das razões pelas quais escolhi fazer um livro ilustrado é que acho que o ritual de um adulto lendo uma história de dormir para uma criança é uma coisa tão importante e bonita. Há sempre muito a fazer, mas encontrar tempo para ler em voz alta assim é importante. Também acho que é útil para as crianças verem adultos lendo livros por prazer, então passar tempo juntos, cada um lendo seu próprio livro, também é bom.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.