Literatura brasileira,
Sangue, tesoura e cola
Com Guerra – I, Beatriz Bracher escreve uma história original da Guerra do Paraguai
11dez2024 • Atualizado em: 12dez2024A Guerra do Paraguai contada na primeira pessoa. Um livro inteiramente constituído de fragmentos de 112 testemunhas da guerra, organizados em ordem cronológica, em que a autoria se dá somente pela costura de textos originais e sua edição. Em outras palavras, um espécime ficcional jamais antes visto no Brasil: um romance escrito à base de copy-paste. Como fariam William S. Burroughs e Brion Gysin, uma proeza da literatura enquanto cut-up machine, ao praticar no gênero do romance histórico as técnicas da estética da apropriação. Rara linhagem da literatura brasileira, de livros como Sessão, de Roy David Frankel (Luna Parque), reproduzindo em versos a votação do impeachment de Dilma Rousseff, e o Mez da grippe, de Valêncio Xavier (Arte & Letra), que costura com notícias e objetos gráficos uma epidemia de influenza em Curitiba. Mas contar uma guerra desaparecendo quase totalmente enquanto autora é caso único.
Para entender como alcançou a façanha — empreitada de quase dez anos —, conversamos com a paulistana Beatriz Bracher. Ex-editora da 34, que publicou todos os seus livros — como os premiados Antonio e Garimpo —, roteirista e argumentista de filmes de Sergio Bianchi e Karim Aïnouz, Bracher é hoje editora da Chão, onde garimpa histórias como as de seu Guerra — I: o grau zero da ficção, tão real que quase parece inventada. Nem Isaac Bábel, n’O exército de cavalaria, imaginaria histórias tão terríveis como o capítulo “Castigo”, em que se narra a pena de morte de um traidor, ou o tristíssimo conto do tenente que perdeu seu cavalo.
Por que falar da Guerra do Paraguai?
Comecei a pensar em pesquisar o Paraguai em 2017. É uma guerra muito envergonhada, né? Logo depois da proclamação da República já não havia muito interesse em falar dela, porque foi uma guerra que foi se esticando e gerou uma grave crise econômica no Brasil. Qualquer momento seria um momento para falar sobre a Guerra do Paraguai, pois a minha questão é que a gente lutou: brasileiros lutaram, muitos morreram, há mil histórias. Sabemos mais como os americanos lutaram no Vietnã, ou os europeus nas guerras mundiais, do que sobre esse conflito. E a guerra não é só lutar; no Paraguai, a maioria das pessoas morreu de fome, de doenças.
Tudo começou quando li as memóriasdo Afonso Taunay. Ele descreve uma cena muito impressionante — essa história vai estar na terceira fase da minha trilogia. No fim da guerra, os argentinos começaram a invadir o acampamento brasileiro para matar cavalo para comer. Tem um jovem tenente brasileiro muito ligado ao seu cavalo. Fica acordado à noite toda, com insônia, pensando: será que os argentinos vão pegar meu cavalo? Um dia matam o cavalo dele. Fica desesperado, é aquela comoção. O comandante brasileiro vai falar com o comandante argentino, que escolhe um para levar a culpa e fuzilam o sujeito na frente de todos. Daí o tenente volta para sua tenda e se mata.
Essa também é uma história do Brasil, muito violenta e muito pesada. Resolvi começar a entender
Nossa! Me deu uma sensação… de que eu também sou aquilo. Penso assim: hoje nós brasileiros somos tanto descendentes dos senhores de escravos quanto dos escravizados e dos indígenas. Essa também é uma história do Brasil, muito violenta. Resolvi começar a entender. Fui ler outros livros e o que me encantou foi a linguagem de cada pessoa. A visão de mundo de cada um, como traduzia aquele universo. É uma coisa tão cheia de vida, não podemos fingir que essa história está morta.
Você leu livros como Maldita guerra, de Francisco Doratioto?
Pesquisei só não ficção. Tem vários livros de ficção, mas me determinei a não ler nenhum. Só peguei um romance que cita a história da mulher do guia que esteve na retirada de Laguna, porque enfatizei a presença das mulheres na guerra, bem como de crianças, pessoas negras e indígenas. Sobre a guerra mesmo, li muito pouco. Claro, li algo para me localizar historicamente. Mas busquei o detalhe, por isso só tem o ponto de vista dos brasileiros. Não queria saber do ponto de vista argentino, dos paraguaios, dos uruguaios, porque isso iria me atrapalhar. Queria saber a história que os brasileiros nos contaram.
Mais Lidas
Como você se sente autora de um livro que é fundamentalmente um trabalho de edição?
Foi um trabalho bem cansativo. A parte mais chata é que a cada fragmento você precisa pôr o nome do autor, a página em que está, a data, o lugar em que vai ficar… Em outros livros meus já trabalhei com edição, como em Anatomia do Paraíso, que tem partes de outros livros. No final, eu coloco a fonte de tudo. A autoria fica em sentir que a voz de determinado autor é também a minha voz — não exatamente as palavras, e sim a maneira como a voz está colocada. Parece um trabalho cerebral, mas é muito emocionante, tem horas em que dá um tesão você ir juntando os fragmentos, sabe, vai pegando o ritmo, essa frase aqui casa com essa outra… É muito autoral. Quando você edita um livro de um autor, você fica de fora, mantém um respeito. Mas este é um trabalho completamente diferente. Aqui, tive de achar a minha voz nas vozes deles.
Alguns exemplos?
Teve um diário de um oficial que veio do Pará, Albuquerque Belo, em que ele expressa um pouco de subjetividade. Ele era muito orgulhoso do batalhão dele. Quando ele chega no Sul, percebe um clima muito frio, não tem roupas, não se acostumam com a comida, muitos começam a morrer de cólera, de diarreia, aí no fim dissolvem o batalhão. É uma história muito comovente, porque é narrada muito de perto. Tem uma outra história. Falam muito mal dos hospitais, os estudantes de medicina não eram bons nem caridosos. Achei uma gazeta médica com vários relatos de médicos. Um deles diz: não tem enfermeiro, não tem remédio, como vou curar as pessoas? Ele vai no mato colher beladona, gasta todo o próprio dinheiro, inclusive moedas raras… Tem um que veio do Maranhão e diz que as fardas encantavam muito as famílias do Rio Grande do Sul, então os pais abriam a casa para os oficiais para que suas filhas conhecessem e arrumassem um bom marido. Nesse volume tem mais histórias dessa expectativa, não tem os grandes combates ainda. Tem a invasão do Paraguai no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul e as atrocidades que os paraguaios fizeram, e os brasileiros se defendem muito mal.
Você se atém somente a testemunhos de brasileiros.
Às vezes tem alguma citação de um brasileiro citando um paraguaio. Não é um livro sobre a guerra, é um livro da guerra em primeira pessoa.
É um livro escrito a quente.
Mesmo aqueles que não foram escritos a quente estão muito comprometidos, pois são histórias narradas a partir de testemunhos diretos.
Diz-se que em uma guerra a primeira vítima é a verdade. Você encontrou verdades inconvenientes sobre o caráter brasileiro nessa pesquisa?
Para 95% dos brasileiros, tudo deve ser novidade. Na escola, a gente não aprende nada sobre essa guerra. Por outro lado, há muitas teses e livros. Para historiadores, nada do que eu fiz é novidade. Uma coisa interessante que descobri: diz-se que era um exército de ex-escravizados. Na verdade, foram no máximo 10%. Mas em essência, era um exército de não brancos: negros, pardos, descendentes de indígenas. E os paraguaios nos chamavam de macaquitos. Pedro II era retratado como um macaco grande com uma coroa.
Tem também aquela história de “fui no Itororó beber água e não achei”: a batalha ali foi tão sanguinária, morreu muita gente, que a musiquinha que a gente aprende é porque a água do Itororó estava tão vermelha de sangue que não era mais água. O Caxias escreve uma carta ao ministro da Guerra, narrando essa batalha, e diz que “por conta da indisciplina do nosso exército, sempre tento entrar com um número muito maior de soldados do que o inimigo. E isso se deve à presença do ‘elemento servil’, que continua achando que é escravo, só mudou de dono e não tem a noção de pátria”. Uma acusação moral que não tem cabimento nenhum.
Para 95% dos brasileiros, tudo deve ser novidade. Na escola a gente não aprende nada sobre essa guerra
Fiquei muito impressionada com as mortes por doenças. E também a grande quantidade de mulheres que acompanham o exército. Mulheres esposas, amantes, profissionais do sexo. É uma marcha que vai levando muita gente consigo. As máquinas de guerra são muito pesadas, então eles têm de ir no ritmo daquelas máquinas. Me impressionaram essas condições físicas extremas.
Tem cartas de ex-escravizados?
Não, esse é um livro de homens brancos em geral, jovens oficiais e voluntários. Conforme vão chegando no Rio de Janeiro os inválidos, aleijados e mutilados, as pessoas não querem mais se alistar, então acontece o recrutamento à força. A maioria dos soldados não sabe escrever. O maior contingente de alferes que escrevem são de descendentes de alemães do Rio Grande do Sul.
Você está agora imersa na criação desse segundo volume?
Já tinha feito o segundo volume quando apareceu uma coleção enorme de livros sobre a Guerra do Paraguai. Uns 25 livros com informações que eu não tinha. Estou acabando de catalogar os fragmentos desses livros para refazer o número dois.
O terceiro tem quase tudo pronto?
Sim, é o que chamo de escrever, unir os fragmentos. O fim é a morte do Lopes. Um desses alemães conta que ele foi mutilado, nenhum outro fala isso. Tem coisas que eu sei, mas se os soldados brasileiros não me dizem, não posso contar. Sei que o Conde d’Eu mandou fuzilar uns oficiais. Mas sem os depoimentos, eu não posso pôr. Eu tenho que colocar o que o pessoal me conta. É uma coisa um pouco claustrofóbica às vezes. Por isso digo que é um romance, porque a verdade está nos depoimentos.
Você nunca quis dirigir o olhar do leitor ou fazer algum tipo de interpretação em cima dos depoimentos?
Às vezes até queria, mas eu não tinha material para fazer. Quis pegar o que era bonito, o que era forte. A lógica é de um romancista, de um roteirista, não de historiadora. Eu só pesquisei em livros que encontrei em sebos, livros em que os pesquisadores já tinham colhido cartas, diários, documentos. Realmente é um livro também de leitora.
O que do caráter brasileiro você percebeu nessa colcha de retalhos?
O José Murilo de Carvalho e o Ricardo Salles falam que a Guerra do Paraguai foi um momento inaugural da formação do sentimento de brasilidade. Nunca um brasileiro do Maranhão ou da Bahia saiu para defender o Rio Grande do Sul ou o Mato Grosso. A comoção com as mulheres que foram estupradas e as crianças degoladas pelos paraguaios atingiu o país inteiro. E você vê no livro as descrições que o pessoal do Nordeste vai fazendo dos Pampas e dos próprios gaúchos, quando conhecem os baianos. O Conde d’Eu é muito preconceituoso, mas é muito interessante. Ele faz um diário em que diz: “O Brasil se divide em dois, os gaúchos e os baianos; pro gaúcho, quem não é gaúcho é baiano” [risos].
Para o Brasil, é um momento muito importante. Tem o livro do Boris Schneiderman, Guerra em surdina, que fala sobre a união e a fraternidade. E tem essa desorganização absoluta do exército, uma coisa cruel, que faz morrer muita gente. Mas os exércitos paraguaio e uruguaio não eram muito melhores. Nitidamente é um livro de brasileiros. Você se identifica. Aquele jeito de ver o mundo é de um brasileiro. O Taunay, o Dionísio Cerqueira, parecem naturalistas. Desenham muito a natureza e os indígenas. O Taunay descreve muito lindamente a Mata Atlântica, a subida de Santos para São Paulo.
O meu partido ao escolher esses textos sempre foi o detalhe. Não é o grande, é o pequeno. Então, por isso uma descrição da Serra do Mar faz parte da história da Guerra do Paraguai, o cara ficar enamorado de uma menina do Rio Grande do Sul faz parte da guerra.
Somos não só descendentes dos escravizados, dos indígenas, mas também dos senhores de escravo.
Apesar de eu não tomar partido sobre quem tinha ou não razão nessa guerra, não posso dizer que é um livro neutro. Por exemplo, eu separei todos os trechos em que apareciam referências a mulheres, crianças, negros, indígenas, cadáveres, animais e doenças. Os livros de história falam pouco dessas pessoas, eu tentei falar mais. Quase sempre os comentários sobre o indígena são pejorativos, diz que ele é feio e traiçoeiro. Desse quadro brasileiro de tanta exploração, de relações tão desiguais desde o começo, dessa língua portuguesa e dessa mistura que nós somos, a questão do conflito de raças não aparece tanto porque se estava numa guerra. O lado da exploração aparece muito entre os oficiais e os soldados. Eu não sabia que camarada é o nome do empregado do oficial, que também é um soldado. São relações de patrão e empregado, mas também de companheirismo.
Você pode identificar o tal caráter “cordial” do brasileiro nesse livro?
Olha, a ênfase com que determinados autores falam que brasileiros cuidavam bem dos presos paraguaios me faz crer que provavelmente eles não cuidaram nada bem [risos], não devia ser bem assim…
Como é que foi o processo material de trabalhar?
Às vezes me sinto regendo uma orquestra, tem uma coisa meio de me sentir compondo uma música, vou juntando um fragmento no outro e vou vendo o que soa bem. Às vezes são mais de cem fragmentos em um único mês, por isso parti para o copy-paste manual. Não foi por amor a algo antigo, foi porque no computador eu não teria uma visão inteira.
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Sol, sombra
e boas leituras
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.