A vida íntima de Carla Madeira

Literatura brasileira,

A vida íntima de Carla Madeira

Brasileira mais vendida no país e convidada da Flip, a escritora mineira escreve seu quarto romance dividida entre a introspecção e a liberdade

27set2024 | Edição #86 out
A escritora mineira Carla Madeira (Marcia Charnizon/Divulgação)

Carla Madeira tem perseguido o silêncio para harmonizar a polifonia de vozes com as quais convive desde o início da escrita de seu novo romance. Tudo começou pela fala insistente de uma voz, a quem a autora passou a dar atenção durante o adoecimento de Simone Moreira, sua amiga e sócia na agência de publicidade Lápis Raro. 

Próximas há mais de duas décadas, as duas deram à luz suas filhas, Ana e Luiza, no mesmo 21 de janeiro de 2000. Quando as bebês eram recém-nascidas, a parceira teve de fazer uma viagem a trabalho e a escritora amamentou as meninas. 

Seguiram próximas até fevereiro de 2023, quando Simone Moreira morreu em decorrência de um câncer no pâncreas. “Levei um ano me recusando a ouvir a história que estava em minha cabeça. No auge da minha dor, quando perdi Simone, passei a escrever, pensando em como uma criança lidaria com a morte”, diz Carla.

Assim surgiu o menino Dom, protagonista da obra em que a autora recupera temáticas como a maternidade, as relações familiares, a irreversibilidade de determinadas situações (e suas consequências). Na forma, no entanto, difere de Tudo é rio, A natureza da mordida e Véspera. Carla compara seu quarto trabalho a uma “corrida de bastão”, em que vozes de narrador e personagens se confundem.

Não foi sob a pressão do meio literário que ela escolheu os caminhos que sua escrita percorreria

“Não sou uma autora de composição. Não tenho caderno nem nada mapeado. Deixo a história fermentar dentro de mim e, na medida em que escrevo, aprendo sobre cada personagem. Apesar disso, tenho uma lógica matemática. Na polifonia deste novo livro, há vezes em que uma fala se impõe e eu escrevo um trecho que nem sempre está no ponto que deveria, o que faz com que ainda existam coisas em aberto na estrutura. Mas já sei qual será o ‘acontecimento’”, diz ela.

A essa provocação, soma-se a turbulência da disciplina autoimposta de escrita diária, afetada pelas muitas demandas que a mineira cumpre desde 2021, quando Tudo é rio se tornou um fenômeno. 

Com quase 840 mil exemplares vendidos de suas três publicações, Carla é a escritora brasileira mais lida do país e também uma das mais requisitadas. A participação na Flip, Festa Literária Internacional de Paraty — numa mesa com Silvana Tavano e Mariana Salomão Carrara, mediada pela jornalista Adriana Couto, na manhã de domingo (13/10) — é o que faltava para cingir três anos de celebração.

Mas a glória cobra. Fama e exposição vêm acompanhadas de expectativas, críticas e comparações. Carla frustrou-se, por exemplo, ao ter sua obra reduzida a possíveis fórmulas de sucesso — como sugere o título “O caminho do best-seller”, que acompanhou um perfil da autora publicado no início de 2023, na revista piauí.

“No Brasil, isso é quase uma insinuação de que há alguma coisa errada: se tanta gente está lendo, tem algum problema, né?”, questiona. “Sei da qualidade literária dos meus livros. Quando Tudo é rio estourou, eu estava finalizando Véspera. Acho que é machismo. Você leu alguma matéria falando sobre Torto arado dessa maneira? Por que o livro [de Itamar Vieira Junior] é intelectual e o meu, não? Mas não quero prestar atenção nisso.”

Experiências

Se há mesmo uma fórmula a pautar o êxito de Carla Madeira, poderia ser definida pela soma de sua habilidade com as palavras, personalidade inquieta e uma genuína inclinação a experimentar em todas as searas artísticas. Além de escrever, Carla compõe, toca violão, canta, já teve banda, e as paredes de sua casa são cobertas por telas pintadas por ela.

A despeito de Tudo é rio ter feito sucesso desde seu lançamento pela editora independente Quixote+Do, em 2014 — com 10 mil cópias vendidas antes de ser reeditado pela Record, sete anos depois —, seus três livros estavam prontos quando o romance se tornou um fenômeno com repercussão nacional. Não foi, portanto, sob a pressão do meio literário que Carla escolheu os caminhos que sua escrita percorreria em cada obra.

Tudo é rio começou por uma sonoridade, como um exercício de forma e de linguagem”, diz Carla. “Queria tratar de assuntos complexos sem usar nenhuma palavra que qualquer pessoa desconhecesse. Tem a ver com um timbre que percebi no interior de Minas, onde imaginei tudo aquilo acontecendo.”

Depois de um início traumático em 2000, quando engavetou o livro por mais de uma década, ao descrever uma cena de violência doméstica — “todo mundo sabe dessa história”, diz Carla —, ao retomá-lo, concentrou-se no triângulo amoroso entre a prostituta Lucy, Venâncio e Dalva, casal que protagoniza o episódio brutal que paralisou a autora.

“Quando o recomecei, escrevia diariamente, até em sets de campanhas publicitárias, em meio às filmagens”, lembra ela. “Se ficasse um ou dois dias longe do texto, perdia o fio da meada, a métrica. Nos fins de semana, passava até cinco horas seguidas no computador. Depois, relia tudo e ia puxando, igual a um rodo, sabe?”, compara Carla, em referência ao processo de edição, apurado nas formações em jornalismo e publicidade.

Enquanto Tudo é rio “saiu num jorro”, o segundo romance, A natureza da mordida (2018), resultou de extensa pesquisa para desenvolver o relacionamento e a fala das personagens Biá, psicanalista que está perdendo a memória, e Olívia, uma jovem jornalista.

‘Para mim, a literatura não é uma coisa para o outro nem uma pauta a ser cumprida’

“Experimentei um narrador onisciente, uma jornalista, com um vocabulário papo reto, quase sem adjetivos, e também muito psicanalítico”, diz Carla. “Mas como se expressa alguém que está em processo de demência? Achar a voz de Biá não foi intuitivo. Talvez, por isso, A natureza da mordida tenha sido o único que reescrevi trechos quando [a obra] foi para a Record. Para mim, ainda não estava resolvida a transferência psicanalítica entre Biá e Olivia.”

Carla acredita que a intervenção feita logo no início do livro, no encontro entre Biá e Olívia — quando a primeira questiona “o que você não tem mais que te entristece tanto?” —, funcionou. É justamente essa a passagem que repercute entre o público.

Sobre a composição da dupla, a crítica literária Letícia Malard defende, em artigo publicado no jornal Estado de Minas, que Carla está entre os poucos escritores “capazes de trabalhar bem essas marcas diferenciadoras no discurso das personagens.” “No estilo e no padrão discursivo de Olívia avultam uma narradora fluente e solta, cujo objetivo principal é narrar fatos, quase como se fosse uma jornalista produzindo uma matéria. Em contrapartida, no discurso de Biá predominam a reflexão, a citação indireta, a erudição e a experiência da psicanalista ‘avariada’”, afirma Malard no artigo.

Síntese

Esgotado desde a segunda edição, em 2019, A natureza da mordida preencheu o vazio de uma multidão sedenta pelos textos grifáveis de Carla quando foi reeditado em 2022.

Talhada por anos de atuação na comunicação — Carla também deu aulas de redação publicitária na Universidade Federal de Minas Gerais —, sua escrita conquistou leitoras por uma poética herdada da música, além de um “especial conhecimento do feminino”, como definiu a escritora Rosiska Darcy de Oliveira, em evento realizado em setembro passado, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.

Na ocasião, Carla reafirmou que “a necessidade de síntese, o trato minucioso com a textura, a obsessão pela palavra exata” vêm da publicidade, onde aprendeu a contar histórias em trinta segundos. Essas são características, acredita ela, que fazem de Véspera (2021) seu livro mais maduro, refletindo um “desejo de contenção”.

No encalço desse comedimento, Carla se permite correr outros e novos riscos. “Não sei se o que estou fazendo neste quarto romance é original do ponto de vista da história da literatura”, diz ela. “Eu própria experimentei borrar limites entre as falas de narrador e personagens em Tudo é rio, mas, agora, estou explorando isso radicalmente.”

Sob holofotes de público e crítica, e atenta aos desdobramentos de sua obra — os livros anteriores estão sendo adaptados para cinema, TV e teatro —, a escritora garante ter encontrado um espaço para “se jogar” nesse emaranhado de vozes, que vão ganhando forma nas 180 páginas já escritas.

“Outro dia, num evento, uma pessoa perguntou se precisei de coragem para escrever Tudo é rio e respondi: ‘Não, nenhuma. Não sabia que você ia ler’. Hoje, no entanto, em alguma medida, sei que qualquer livro meu será lido”, diz Carla. “Mas compreendi que consigo manter uma distância, o que é maravilhoso, porque, para mim, a literatura não é uma coisa para o outro nem uma pauta a ser cumprida. Literatura é uma introspecção, uma experiência íntima que faz parte do meu jeito de estar no mundo. Não vou deixar que as expectativas e o medo da crítica limitem minha experimentação.”

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “A vida íntima de Carla Madeira”

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