Desvendando Jon Fosse

Literatura,

Desvendando Jon Fosse

O Nobel de Literatura fala ao seu tradutor brasileiro sobre os limites da palavra e a importância de se repetir para parecer consigo mesmo

31jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84

“Podemos antecipar nossa conversa para 9h30?”, escreveu Jon Fosse por e-mail dias antes do encontro agendado há meses. Não surpreendia a agenda disputada. Desde outubro, quando foi premiado com o Nobel de Literatura, mais de 150 títulos do escritor norueguês foram traduzidos para sessenta idiomas diferentes. Outros cinco inéditos foram lançados, inclusive uma breve autobiografia, espécie de prestação de contas ao Comitê do Nobel, além de reedições, audiolivros, encenações e outros desdobramentos da premiação. A agenda do dia estava apertada, entretanto, por um compromisso bem mais prosaico: o escritor precisava ir ao dentista.

“Melhor irmos naquele café pertinho da Grotten”, sugeriu ele. “Normalmente, eu sugeriria a Casa da Literatura [maior do gênero na Europa, do outro lado da rua], mas agora acho o café mais tranquilo.” Encravada no alto de um rochedo no bosque do palácio, em Oslo, daí o nome, a “Gruta” é a residência honorária vitalícia outorgada por édito real a dignitários da cultura norueguesa, erguida em 1841 para abrigar o primeiro inquilino, o poeta Henrik Wergeland. Fosse a ocupa desde 2011, apesar de um incidente no ano seguinte quase ter posto fim à sua estada. Internado em coma alcoólico depois de beber por dias a fio, por pouco não morreu. Recuperado, tornou-se abstêmio, abraçou o catolicismo e adotou um rabo de cavalo como recordação do episódio.

Foi sob inacreditáveis 29,8º Celsius, a semanas do início oficial do verão, que o escritor surgiu pela porta do terraço trazendo uma sacola de livros e um copo grande de café com leite e se abancou numa mesinha sob o sol. Apesar do calor, vestia calça jeans e blazer bege sobre camisa azul escura, desta vez sem a emblemática echarpe bordada com motivos típicos. Jon Olav Fosse completará 65 anos em 29 de setembro e exibe as marcas naturais da idade. Os olhos de um azul profundo, porém, destoam do semblante e refletem o brilho do enfant terrible que despontou na década de 80, primeiro como músico e poeta, depois como tradutor e dramaturgo e só mais tarde como romancista.

‘Na Noruega, passamos mais tempo polemizando sobre pendengas idiomáticas do que sobre sexo’

Começo perguntando o que mudou desde que a Academia Sueca chancelou um reconhecimento sobre o qual muito e há muito se especulava. “Foi bom não ter ganhado esse prêmio antes, sabe? A Septologia [a ser lançada pela Fósforo em 2025], uma das coisas mais importantes que escrevi, jamais teria vindo ao mundo, tenho certeza”, justifica. Eventos, rapapés, entrevistas e, sobretudo, assédio e aglomerações o incomodam e desconcentram. “Meus livros passaram a vender mais, é verdade, mas minha vida ficou de pernas para o ar”, disse Fosse a um mês de o rei Haroldo V condecorá-lo Cavaleiro da Grã-Cruz de Santo Olavo, mais alta comenda norueguesa. Por tudo isso ele acha que já não vem sendo tão produtivo, e no verão se recolheria a um apartamento seu, nos arredores de Viena, para descansar e retomar o ritmo de antes. Mesmo assim, na Noruega, no convívio com uma gente avessa a rompantes emotivos, a tietagem não parece ser um problema. Quem passava ao largo se limitava, quando muito, a espiar com o canto do olho o ilustre conterrâneo e só.

“Antigamente, os laureados já tinham um certo renome, mas hoje quem ganha o Nobel fica famoso por ter ganho o Nobel”, desconversa ele num assomo de modéstia. “É uma mudança de status muito estranha, que não é tão… confortável. O jeito é se adaptar, mas sem abraçar essa badalação toda, que não faz bem.”

Seus admiradores por certo discordarão. O Fossefestivalen de Oslo, dedicado exclusivamente à dramaturgia, entra em 2024 na quarta edição e ganhará, até o final do ano, a companhia de outro, mais abrangente, organizado pela Biblioteca Nacional com um considerável reforço orçamentário dos ministérios da Cultura e das Relações Exteriores da Noruega. “Minha conduta diante desses eventos é me envolver o mínimo possível”, esclarece o homenageado. “Encontro alguns convidados e procuro ver montagens teatrais que ainda não vi, mas não participo nem interfiro na programação.”

Realidade linguística

Peço que elabore, para o leitor brasileiro, como é possível um país com menos de 5 milhões de habitantes, na periferia da Europa, consistindo em não muito mais do que rocha e gelo, se tornar essa superpotência literária, com quatro agraciados pelo cobiçado prêmio. “Uma das razões vem de muito tempo atrás, remonta às sagas e aos skalder [bardos] medievais, fundamentais na criação da identidade nacional. Não é por acaso que o norueguês mais conhecido no mundo é Henrik Ibsen, um escritor”, diz Fosse. “Um segundo motivo é a realidade linguística única que temos. Passamos mais tempo polemizando sobre pendengas idiomáticas do que sobre sexo”, ele ri.

Uma breve contextualização: assolada pela peste negra que dizimou metade da população, inclusive toda a realeza, no século 14, a Noruega passou séculos alternando-se sob domínio dinamarquês e sueco. O clima e o relevo hostis isolaram comunidades inteiras, sobretudo nos vales centrais e na costa oeste, cujo falar preservava resquícios do norreno, o nórdico antigo, correspondente ao islandês moderno. Esses bolsões de pescadores e fazendeiros, analfabetos e negligenciados pelos núcleos urbanos, desenvolveram centenas, talvez milhares, de formas dialetais particulares.

Em 1840, inspirado pelo nacional-romantismo e alentando um desejo de reconciliação nacional, o filólogo Ivar Aasen (1813-96) decide percorrer o território de cima a baixo a fim de investigar o fenômeno. Em vez de um dicionário ou um volume de contos folclóricos, a exemplo dos Grimm na Alemanha, Aasen achou que seria uma boa ideia codificar um outro idioma, e compilou uma “média ponderada” dessa barafunda de dialetos: quando não encontrava uma palavra comum a todos, recorria ao radical norreno e simplesmente a inventava. A esse experimento, meio nheengatu, meio esperanto, ainda teve a pachorra de chamar nynorsk (“neonorueguês”) — impregnado pela oralidade e bem mais antigo do que o bokmål, a “língua dos livros” derivada do dinamarquês —, sustentando que “todos têm seu quinhão de razão” sobre um cisma que até hoje divide a nação entre Norge e Noreg.

Em 1885, o nynorsk ganhou status oficial e o resultado é esse parque de diversões para linguistas. Cada cidadão, goste ou não, é nativamente bilíngue, mas na prática fala um dialeto que se aproxima de uma ou de outra variante, e todas as iniciativas de unificar ambas, inteligíveis sem dificuldades, com poucas diferenças estruturais dignas de nota, fracassaram miseravelmente. Como se não bastasse, falam-se ainda inglês corrente, três versões do sápmi (antigo lapão), kvensk e outros idiomas minoritários (farsi, urdu, pachto, dari, hindi, árabe, espanhol) introduzidos com as levas de imigrantes a partir dos anos 70.

‘Quem cresce num ambiente assim aprende a enxergar nuances e belezas até naquela paisagem gris’

A complexidade e o custo financeiro dessa realidade são óbvios. Seus detratores dizem que duas tragédias se abateram sobre a Noruega ao longo da história: uma foi a própria peste, a outra foi o nynorsk — isso para quem ainda teve que se haver com uma invasão nazista na Segunda Guerra. A olhos estrangeiros, chega a parecer mera teimosia ou capricho, mas a lição que fica é a de um respeito extremo às idiossincrasias e individualidades, pedra angular da sociedade local. Se o recente prestígio trazido pelo Nobel ao neonorueguês irá atenuar ou agravar essa cisão, só o tempo dirá.

É, pois, esse vernáculo singular, adotado por menos de 20% da população, que Fosse reinventa para se expressar — enigmático, ambíguo, angustiante, vertiginoso. Antes dele, só Tarjei Vesaas (1897-1970) chegou a ter alguma projeção no exterior, ainda que em menor escala, escrevendo com essa forma. Ícone da poesia neonorueguesa, Olav Hauge (1908-1994) continua pouco conhecido além dos seus domínios. Os demais, de Sigrid Undset a Karl Ove Knausgård, de Knut Hamsun a Jostein Gaarder, escrevem, sem exceção, em bokmål castiço.

Mas não é só tradição, multilinguismo e favores reais. Outra razão para a Noruega ser esse expoente das letras, reconhece Fosse, é uma política de Estado eficaz, ativa e generosa, que fomenta o mercado interno e externo e se converte em ganhos geopolíticos importantes. Proteção de preço de capa, compras governamentais em larga escala — dois anátemas do neoliberalismo brasileiro —, subsídio às traduções, financiamento de eventos, uma vasta rede de bibliotecas públicas — e que bibliotecas! —, formação de novos leitores, intenso intercâmbio internacional são só algumas das facetas desse modelo único. Mesmo países com histórico e recursos semelhantes não conseguem replicá-lo à altura: ninguém no mundo hoje oferece tantas possibilidades a quem escreve, lê ou vive de literatura.

“Além disso tem também o clima. Ler e escrever é praticamente tudo que se pode fazer nesse tempinho”, ironiza ele, desconfiado do céu primaveril sem nuvens, cujo azul chegava a ser constrangedor. “Quem vai à Itália acaba impressionado pela beleza das memórias de um passado glorioso. Aqui não temos tantos tesouros culturais, mas a natureza é sublime, principalmente na Vestlandet [costa oeste]. Onde, você conhece bem, chove bastante. Mas quem cresce num ambiente assim aprende a enxergar nuances e belezas até naquela paisagem gris”, diz ele quando lhe peço para comentar o porquê do protagonismo que o elemento natural ocupa na produção literária norueguesa, até mesmo a não ficcional.

Cores, por sinal, lhe são uma fonte de inspiração muito cara, evidenciada em Poemas em coletânea, a ser lançado este mês pelo Círculo de Poemas. Como legendas de um quadro de Edvard Munch — afinal, clichês também existem para serem usados —, os matizes dramáticos dos crepúsculos das altas latitudes vão se alternando, estrofe após estrofe, com outras obsessões suas, que reverberam em sua prosa e dramaturgia: cães, anjos, o movimento, casas abandonadas e em ruínas, a aflição das pausas recalcitrantes, ondas arrebentando incessantemente, a angústia, o constrangimento, o assombro diante da morte. “Não sei por que eu escrevo sobre os entardeceres lilases, nem sobre esses outros assuntos. Ainda adolescente, tive contato com a poesia de Georg Trakl e, ao traduzir o austríaco, acho que aprendi a me referir às cores dessa maneira”, diz. “Essa abordagem ainda ressoa em tudo que escrevo.”

Torrente

Esses Leitmotiven estão insistentemente presentes em toda a sua trajetória, mas os grandes artistas por acaso não são aqueles que se reiteram? Mais que isso, a obra de Fosse — “cachoeira” ou “torrente”, em norueguês — flui e reflui: são poemas que assumem a forma de romances que se transformam em peças teatrais, até mesmo óperas, enquanto outros escritos fazem o caminho inverso. “Para mim, os bons artistas se parecem apenas consigo mesmos e com mais ninguém. Agora mesmo está em cartaz aqui [no novíssimo Museu Nacional, em Oslo] essa magnífica exposição de Mark Rothko, um artista com quem me identifico bastante, de uma maneira muito misteriosa, até. São pinturas muito distintas, mas com um fio condutor bem nítido. Todos os poemas do Trakl são um mesmo poema, por assim dizer.”

Eu argumento que Trakl, Rothko e tantos outros grandes não precisaram, necessariamente, fabricar as próprias ferramentas a que recorreram para se expressar, e pergunto de onde vem essa pulsão de refundar a própria escrita e desnortear o leitor, inventando termos, subvertendo normas gramaticais e convenções de pontuação. “A língua não só não basta, e na verdade diz muito pouco. A palavra é muito limitada. A maioria dos bons escritores desconfia delas porque a margem de manobra que lhes dão é muito estreita. Esse processo, de antes criar meu instrumento, o idioma, e depois o meu texto, me dá a liberdade de dizer coisas que, de outra maneira, eu não teria como”, explica. Valer-se de um meio tão “artesanal” quanto o neonorueguês não poderia vir mais a calhar, ele concorda. “Talvez o meu talento resida principalmente nisso.”

Talento que o relaciona a dois outros nomes que nos são mais familiares: seu colega de Nobel José Saramago e, mais ainda, Guimarães Rosa, autor que despertou a curiosidade de Fosse quando o assunto veio à tona. Embora seja sempre arriscado, senão leviano, traçar esses paralelismos, quis saber a opinião de Bård Kranstad, veterano tradutor do português para o norueguês, e ele corroborou a analogia. “Do ponto de vista formal, alinha-se a Saramago e Rosa, sem dúvida”, observa Kranstad. “No conteúdo, porém, me lembra mais [Clarice] Lispector.” Que ninguém se admire, portanto: Jon Fosse ecoa a Noruega profunda na prosódia de Portugal ou do Brasil.

‘Para mim, os bons artistas se parecem apenas consigo mesmos e com mais ninguém’

Mencionei com satisfação a Fosse que ele é o primeiro escritor norueguês do meu conhecimento a proibir expressamente o uso de inteligência artificial na tradução de suas obras, mas essa nova realidade não parece intimidá-lo tanto. “Já me deparei com traduções automáticas do alemão ao nynorsk, por exemplo, realmente impressionantes. Pode até ser um auxílio importante, como a própria internet é, mas jamais deve se transformar no cerne desse processo”, diz ele. “Um poema, por exemplo. Para ser vertido, requer uma nova voz, humana, que o conduza a um outro mundo. Uma máquina não é capaz de fazer isso. A inteligência artificial pode até reciclar muita coisa que já existe, mas não cria nada novo.”

No fim das quase quinhentas páginas dos Poemas em coletânea, um único país é nominalmente citado: “Por três noites/ minha alma esteve/ no Brasil”. Estava especialmente curioso para descobrir o que o poeta tinha em mente quando compôs as linhas iniciais desses versos sem título, mas a resposta foi tão desconcertante quanto o conjunto da sua produção: “Não tenho a menor ideia. Não sei mesmo [risos]. Tudo que sei é que aquilo que é escrito se converte no seu próprio universo. Um romance, um poema, uma peça teatral, cada qual tem regras próprias que os governam e os tornam únicos”, teoriza ele. “Quando escrevo, parto de um início que evolui obedecendo a uma força criadora independente, que dá ouvidos à própria voz e segue adiante. Nesse processo, outras coisas vão surgindo. Assim é na Septologia, por exemplo. O protagonista Asle se divide em dois. Não foi nada disso que imaginei a princípio. Eu mesmo me surpreendo com o rumo que o enredo toma. No caso desses poemas, é como se nem tivessem sido escritos por mim. Eles simplesmente aconteceram. Independentes. Com vida própria. Para mim, a criação literária moderna é isso, uma espécie de epifania.”

A propósito de epifanias, acaba de ser relançado na Noruega Mysteriet i trua [“O mistério na fé”], um diálogo franco entre Fosse e o teólogo Eskil Skjeldal esmiuçando, entre tantos outros tópicos, a conturbada relação do autor com a religião. A exemplo da seleta poética, o livro também serve como uma espécie de paratexto para melhor assimilar uma obra tão prolífica quanto desafiadora que, com certo atraso, enfim vai se tornando mais conhecida dos brasileiros. Depois de Melancolia, publicado pela Tordesilhas em 2015, em tradução indireta de Marcelo Rondinelli, se somaram recentemente Brancura e A casa de barcos, ambos pela Fósforo, com traduções minhas; É a Ales e Trilogia, estes pela Companhia das Letras na tradução de Guilherme da Silva Braga a partir do original. A editora Zain lançará em breve Manhã e noite + libreto e, além dos já citados Poemas em coletânea e Septologia, a Fósforo prepara Vai vir alguém e outras peças deste que é o dramaturgo mais encenado no mundo já há alguns anos.

Catolicismo

Provoco Fosse indagando por que o “retrocesso” a uma fé que, a seu tempo, Lutero já considerava superada, numa região de pouca tradição católica desde a lenta cristianização da Escandinávia, no século 8, por Olavo II — dito santo —, um sanguinário rei viking. “Me sinto à vontade para afirmar que a igreja norueguesa, ou o luteranismo norueguês, já não representa quase nada. Essa igreja, que frequentei quando criança, nunca se apartou tanto assim do catolicismo, e até preservou alguns sacramentos. Manteve três, enquanto a igreja católica tem sete. Deus nem faria tanto empenho, eu suponho, não é por ele que existem, mas por causa dos homens. A liturgia tem uma boa dose de teatralidade que me atrai, me faz me distanciar de mim enquanto indivíduo e me sentir pertencendo a algo muito maior. É esse o mistério, que no catolicismo tem seu apogeu na eucaristia. No luteranismo, essas características foram ficando cada vez mais para trás. É o logos, a palavra, o púlpito do pastor pairando lá no alto, longe dos fiéis.” Vinda de alguém que redefiniu a palavra como suprema forma de arte, a declaração surpreende. De novo, é Fosse sendo Fosse.

Um fator determinante na sedimentação da sua crença num contexto majoritariamente ateu, ressalta ele, foi o contato com a obra de Meister Eckhart. “Imagine, um dominicano alemão do século 12! Fiquei absolutamente fascinado”, relembra. “Havia muitas coisas que o meu marxismo materialista não dava conta de explicar. A música, por exemplo. O desconhecido, sempre o mistério. A escrita, de onde ela vem? Você tem que aceitar que existe uma outra dimensão, insondável, que podemos chamar de Deus, se é que se pode dar um nome a isso”, diz ele sem nenhum laivo de proselitismo.

‘A liturgia tem uma boa dose de teatralidade que me atrai, me faz distanciar de mim enquanto indivíduo’

Pondero que é muito difícil para nós, brasileiros, cruzar uma ponte cada vez mais instável entre o mundo intelectual e o religioso. Os exemplos que temos, sejam os históricos ou os mais recentes, de um fundamentalismo tacanho que não difere Estado de Igreja e advoga a censura e até a queima de livros, não nos aproximam da Noruega, mas do Irã ou do Afeganistão. Quando Brancura foi publicado no Brasil, alguns resenhistas até enxergaram virtudes no livro em si, mas não deixaram de torcer o nariz para a “carolice” do autor, e por isso questiono se é possível conciliar ambas essas visões de mundo. “Ah, mas no passado aqui era igualzinho”, retruca Fosse candidamente. “Na década de 80, era impossível ser artista e cristão na Noruega ao mesmo tempo. Na Suécia também. O tempo passou e a coisa foi mudando. Veja o exemplo de pensadores franceses como Blanchot e Derrida, a filosofia deles é abertamente antirreligiosa. A de Martin Heidegger, idem. Só quando nos livramos desses preconceitos, os mesmos que eu tinha quando criança, é que podemos elevar o nível do debate.”

O catolicismo não é motivo de embaraço, então? “Fundamentalmente, não. A igreja católica fez muita estupidez. Para uma instituição que existe há mais de 2 mil anos, múltipla como só ela poderia ser, é natural que tenha cometido erros demais, abusos demais, exageros demais. Mas não se pode confundir isso com a própria fé.”

Cada vez mais empolgado com a conversa, Fosse acabou enveredando por outros assuntos: quis saber como eu vim estudar na sua cidade natal, Haugesund, ficou intrigado com diferenças entre o português europeu e o brasileiro e mencionou peças suas já encenadas aqui a partir das versões inglesas. Aproveitei a deixa para tentar convencê-lo a visitar o Brasil, mas ele elegantemente declinou dizendo que hoje em dia só troca Oslo pelo apartamento em Viena ou pela hytte [cabana florestal] — instituição basilar da sociedade norueguesa — que possui às margens do fiorde onde viveu na infância. O relógio já se aproximava perigosamente do meio-dia quando soei o alarme: “Ei, Jon, o dentista!”. Digressão após digressão, o homem quase perdeu a hora.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Pinto Silva

É tradutor de autores noruegueses no Brasil desde 1998, além de ter trabalhos com a literatura dinamarquesa, sueca e inglesa.

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Sol, sombra
e boas leituras

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva.