Literatura,

Viagens com Jon Fosse

Romance e novela são pontos de partida para conhecer o trabalho do norueguês ganhador do Nobel

06dez2023 | Edição #77

O efeito mais positivo do Nobel de Literatura costuma ser a oportunidade de conhecer autores que, sem o prêmio, dificilmente seriam traduzidos e editados por aqui. Foi o que aconteceu, em anos recentes, com Louise Glück e Abdulrazak Gurnah. Outras vezes, o prêmio revitaliza uma recepção que havia sido tímida e restrita — foi o caso com Patrick Modiano e Olga Tokarczuk. Em proporções menores, é o que acontece também com o mais recente laureado, o norueguês Jon Fosse.

    
É a Ales e Brancura, de Jon Fosse

Seu romance Melancolia apareceu no Brasil em 2015, lançado pela Tordesilhas vinte anos depois da publicação original. Até este ano, esse era o único livro de Fosse disponível no país, e até hoje é o mais denso e complexo (ajuda o fato de ter 400 páginas) e a obra em que melhor se percebe a envergadura do projeto estético do autor, feito do arranjo meticuloso de camadas temporais e presenças discursivas — um romance maiúsculo na linha de Virginia Woolf, Hermann Broch e Thomas Mann. O livro, contudo, está fora de catálogo.

Para suprir essa falta e dar conta do afã do Nobel, dois breves romances de Fosse foram recentemente lançadas no Brasil: É a Ales, de 2004, pela Companhia das Letras, e Brancura, livro mais recente de Fosse, de 2023, pela Fósforo.

Entre um título e outro, o autor se dedicou àquele que talvez tenha sido, até o momento, seu empreendimento literário mais exigente: a Septologia, uma série de sete romances, que já tem edições em diversos países e sairá pela Fósforo em 2025. Fosse é um escritor bastante ativo, atuando em diferentes gêneros — não só o romance, mas também a poesia, a literatura infantil e o teatro — desde o início dos anos 80, quando fez sua estreia literária.

Atmosfera rarefeita

É a Ales é um breve romance profundamente ancorado na fala de seus personagens: 

O Asle morreu, diz Kristoffer, O Asle está vivo, diz Brita, Não diga uma coisa dessas, Kristoffer, não diga que ele morreu, ela diz, O Asle se foi, diz Kristoffer, Ele morreu, ele diz.

A história gira ao redor do desaparecimento de Asle no mar, em 1979, acontecimento evocado, na narrativa, por sua esposa, Signe, em 2002: 

Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde. 

Ela “simplesmente está aqui”, escreve o narrador, “porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou […] nada mais foi o mesmo”. Signe se lança ao passado em busca de imagens de Asle, olhando o mar pela janela; ao mesmo tempo, espera seu retorno e, por isso, também vive em direção ao futuro, visando e ansiando o dia da chegada do marido (nem que seja seu fantasma, sua aparição mágica ou algo do tipo). Essa delicada heterogeneidade temporal é intensificada quando Fosse insere na história um terceiro componente: o ano de 1897, quando surge um menino chamado Asle, parente distante desse Asle que já conhecemos, desaparecido no mar.

Nas narrativas do autor, importa mais a sensação de ‘estar’ do que o desejo de ‘chegar’

O entrelaçamento desses eventos separados no tempo é feito com maestria por Fosse. Nada parece abrupto ou gratuito, pois é a própria força do estilo do autor que constrói esse regime excepcional de possibilidades. O leitor entra e sai das mentes e memórias dos personagens, deslizando por uma atmosfera narrativa rarefeita, percebendo aos poucos as conexões, apreendendo paulatinamente a lógica peculiar que rege esse universo de Fosse. “Agora ela precisa ir para casa”, escreve o narrador sobre Signe, invadindo seus pensamentos:

Agora ela precisa ir para a Antiga Casa onde mora e cuidar do calor, porque a estufa não pode se apagar, quando ele voltar molhado e gelado do Fiorde a casa precisa estar quente, a Antiga Casa onde eles moram, a bela estufa antiga na Antiga Casa onde moram.

Em Fosse, não importa tanto a direção para a qual se encaminha a narrativa — é mais importante o espaço específico que a linguagem funda a cada momento de sua ocorrência (importa mais a sensação de “estar” do que o desejo de “chegar”).

Bordas do sublime

Brancura, por sua vez, é um livro mais direto, não tão complexo como É a Ales — muito por conta de sua breve extensão, algo entre o conto e a novela. Um homem dirige seu carro sem saber a razão, respondendo a um impulso inexplicável, até parar diante de uma floresta. Ele sai do carro e, apesar da neve e do frio, segue caminhando floresta adentro. “Que diabos eu vim fazer nesse lugar”, ele se pergunta.

Por que eu tinha que inventar isso. Por que motivo agi assim. Nenhum motivo. Nenhum. E por que dirigi até essa estrada no meio da floresta. Por puro acaso, talvez.

Enquanto caminha, tornando cada vez mais irreversível seu impulso, o narrador tenta encontrar justificativas para o que faz: recorre ao absurdo, ao acaso, à gratuidade, à força das entidades invisíveis que regulam a vida dos seres humanos (“Provavelmente, se apenas seguirmos em frente, nos encontraremos, isto é, se todos, eu e eles, seguirmos em frente”). 

O clímax da narrativa é quando a “brancura” se revela, uma aparição que não é explicada, que sofre metamorfoses e que leva o narrador ao que parece a conclusão de seu percurso. É nesse ponto que reside a margem de manobra de cada leitor: Fosse não declara com todas as letras do que se trata, confia que a experiência do leitor dará conta de suprir as lacunas desse relato que está em algum lugar entre o onírico, o fantástico, o sobrenatural, ou mesmo o religioso.

A voz diz: você tem que ir para casa. Eu digo: mas não consigo encontrar o caminho de casa. A voz diz: você se perdeu. Eu digo: sim, pelo jeito, sim. A voz diz: e é por isso que viemos ajudá-lo.

Em contraste com É a Ales, o manejo de Fosse em Brancura é consideravelmente menos sutil, mais brusco e abrupto. Isso se deve em parte à dimensão mais plana do relato, fundado apenas sobre a consciência do motorista que se funde à floresta. A “brancura”, entidade mista e incerta que leva o narrador às bordas do sublime, não tem a força evocativa dos “fantasmas” dos antepassados de É a Ales, que dá a impressão de um trabalho feito com maior dedicação e medida. A possível sublimidade de Brancura é imposta, como um fato narrativo que vem de fora para dentro, e não conquistada.

Local e universal

Uma questão recorrente no debate sobre literatura e seus temas aparece nos dois livros de Fosse: as relações entre o local e o global, entre as condições de vida específicas de certa comunidade e a descrição de sentimentos ou estados de ânimo que seriam, potencialmente, “universais”. No caso de Fosse, o Nobel age como uma sorte de carta coringa, possibilitando a eliminação momentânea desse esforço de mediação entre o contexto de surgimento da obra e o contexto de recepção. 

É provável que qualquer pessoa, ao folhear os livros, consiga identificar neles uma série de elementos que podem ser definidos, de forma aproximativa, como noruegueses: as florestas escuras, a neve, os nomes, a geografia, certos detalhes da alimentação, certo ritmo denso — quase pastoso — da existência. Sem falar no fato de Fosse ser um dos poucos autores de seu país que usa uma variante minoritária da língua, o nynorsk, compilação de dialetos falados especialmente na costa da Noruega. 

O Nobel de Fosse é mais um triunfo para a conta de Thomas Bernhard, que não chegou a ser premiado

Essa atmosfera inegavelmente norueguesa é contrabalançada por um trabalho narrativo que elabora temas de ampla ressonância, de certa forma transversais ao tempo e ao espaço. Em É a Ales, encontramos as relações familiares que se fazem e desfazem ao longo das gerações, mediadas por paisagens, objetos, nomes próprios e sobrenomes passados adiante, celebrações e tragédias. Em Brancura, o desamparo da solidão, a consciência de que, muitas vezes, os piores medos de um indivíduo são projeções de traumas internos, cujas manifestações são inesperadas e, com frequência, violentas (“Posso descansar já que estou tão cansado, e como tenho que encontrar um caminho para sair da floresta não posso estar tão cansado.”). 

A obra de Fosse, em toda sua extensão, está envolvida nessa dinâmica delicada que leva do específico ao universal, e vice-versa, algo que é intensificado quando se observa a difusão de seus livros em vários países. Cada contexto de recepção acrescenta um ponto a esse debate, enquanto encontram um consenso: os autores do passado vistos como influências diretas no estilo e na atmosfera dos livros de Fosse — Samuel Beckett e Thomas Bernhard. 

Aliás, é possível dizer que o Nobel de Fosse é mais um triunfo para a conta de Bernhard, que não chegou a receber o prêmio, mas foi responsável por uma obra cuja inédita força estética foi determinante para o estilo de vários laureados. W. G. Sebald, que morreu antes de receber a honraria que todos tomavam como certa, não existiria sem sua influência. E ao menos quatro laureados do Nobel são epígonos diretos de Thomas Bernhard: Imre Kertész (que recebeu o prêmio em 2002), Elfriede Jelinek (2004), Herta Müller (2009) e, agora, Jon Fosse. A esperança é que, em um futuro não muito distante, tenhamos uma amostra substancial de seu trabalho — É a Ales e Brancura são ótimos pontos de partida, mas mal arranham a superfície.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.