História,
Cuidadora de histórias
Saidiya Hartman fala de seu método de pesquisa e escrita e de suas impressões sobre o Brasil
01jan2023 | Edição #65Professora de literatura comparada na Universidade Columbia e pesquisadora de história cultural e estudos afrodiaspóricos, Saidiya Hartman nasceu e cresceu no Brooklyn, em Nova York, nos anos 60. A família por parte de mãe veio do Alabama.
Na infância e juventude, chamava-se Valarie Hartman; nos anos de faculdade (ela se graduou em Yale), mudou o nome para Saidiya. A palavra de origem suaíli vem da raiz “ajudar” ou “cuidar”. Hartman cuida das histórias escondidas de homens negros e mulheres negras — principalmente as destas últimas.
Para escrever sobre essa história mal documentada e pouco contada, Hartman desenvolveu seu método de fabulação crítica, no qual a pesquisa histórica rigorosa se une à imaginação (também baseada em fatos) da vida íntima de pessoas esquecidas, preenchendo as lacunas da história oficial e seus documentos.
Mesmo antes de adotar plenamente esse método, Hartman já mudava a forma de contar a história. No ensaio “A sedução e as artimanhas do poder”, publicado em 1996 e agora lançado pela Crocodilo conjuntamente com “O ventre do mundo: uma nota sobre o trabalho das mulheres negras”, de 2016, tudo é baseado em documentos de arquivo. Mas Hartman conta essas histórias de outra forma. A narrativa coloca a perspectiva na voz das escravizadas, e parece, mas não é, ficção.
A poética histórica que a escritora norte-americana diz fazer cada vez mais fala muito ao Brasil
A poética histórica que a intelectual norte-americana diz fazer cada vez mais fala muito ao Brasil, que vê crescer uma “onda Hartman”. Nos últimos dois anos, teve livros e ensaios lançados por aqui. Perder a mãe : uma jornada pela rota atlântica da escravidão saiu pela Bazar do Tempo, e Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (Fósforo) foi eleito o melhor livro de não ficção de 2022 pelos colaboradores da Quatro Cinco Um. Na Flip 2022, participou de uma mesa com a antropóloga Rita Segato e o escritor e crítico literário Luiz Mauricio Azeved. Também no final do ano passado, em sua passagem pelo Brasil, participou de debates e conversas com pensadores e autores brasileiros, como a escritora Eliana Alves Cruz, no Museu do Amanhã, no Rio. Em 2023, teremos mais Saidiya Hartman por aqui: ela é uma das referências do coletivo curatorial da 35ª Bienal de Arte São Paulo e vai colaborar com uma das artistas convidadas, como conta nesta entrevista para a revista dos livros, realizada em dezembro, em São Paulo.
No Brasil, temos o mito da democracia racial, que vem à cabeça na leitura de A sedução e as artimanhas do poder. Como vê as convergências e as distinções entre os contextos brasileiro e norte-americano?
Há convergências e diferenças. Há um discurso nas Américas sobre a intimidade e o paternalismo do senhor de escravizados. A mulher escravizada é o ponto central ao se pensar sobre essas questões de diferença e hierarquia racial, um território complicado. No caso dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, o grande estadista e pensador iluminista, escreveu Notes on the State of Virginia, um estudo de história natural no qual faz descrições horrendas de mulheres escravizadas, fala sobre espécies inferiores e superiores. Esse é o texto oficial. Aí temos o outro texto, que é a vida de Jefferson, envolvido em uma complicada relação “íntima” — como é geralmente descrita — e de longa duração com uma mulher escravizada com quem teve filhos, que ele criou. Esse também é um nó confuso.
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A sexualidade no contexto da escravidão é caracterizada por violência e dominação e, mesmo assim, as mulheres escravizadas tentaram utilizar suas relações íntimas com homens brancos poderosos e donos de escravos com o objetivo de obter sua liberdade e a de seus filhos. Na maior parte dos casos, isso não acontecia; mas, quando ocorria, de fato os escravizados alforriados por seus senhores costumavam ser pessoas próximas, como suas esposas ou seus filhos. Podemos ver nos documentos de manumissão [alforria] nas Américas.
Em A sedução e as artimanhas do poder tentei mostrar que não dá para falar de relações consensuais sob o regime da escravidão. É uma dominação violenta. Também procurei apresentar mulheres escravizadas, como Harriet Jacobs, narrando suas tentativas de obter a sua liberdade e a de seus filhos por meio de uma relação sexual íntima com um homem branco poderoso. Esse plano fracassou, pois o pai dos filhos dela não os libertou. Ela conseguiu sua liberdade tornando-se uma fugitiva.
Harriet Jacobs inicia seu texto com a esperança de que esse poderia ser um meio de manipular as coisas, mas a ordem racial criava a ideia da branquitude como uma categoria muito restrita nos Estados Unidos. Sete dos seus oito bisavôs poderiam ser brancos, mas se tivesse um oitavo de sangue negro, você era considerado negro. Era a lei de uma gota de sangue. É por isso que há um antagonismo e uma separação bem maior entre brancos e negros no país. Isso foi diferente no Brasil.
Nos Estados Unidos, também houve um aparato legal que trouxe um potencial maior para uma transformação radical depois da Guerra Civil e da Reconstrução: quando a escravidão acabou, os donos de escravos — ao contrário do que aconteceu em qualquer outro lugar do mundo — não receberam nenhuma reparação pela perda da sua propriedade escravizada. Houve uma tentativa, fracassada, de reescrever a Constituição e criar uma outra sociedade, e emergiu uma nova ordem racial que não foi derrotada legalmente até os anos 60. Já no Brasil foi possível manter essa hierarquia racial sem isso ser ditado pela lei.
Isso explicaria a sobrevida da escravidão no capitalismo tardio?
Em termos estruturais, sim. A escravidão e os processos de acumulação de capital no Sul global são mais característicos de modelos de não liberdade que Marx descreveria como exploração da classe trabalhadora. Já nos Estados Unidos, várias formas de violência foram necessárias para manter essa ordem. Uma diferença entre o Brasil e os Estados Unidos é que lá surgiram vários colleges e universidades negras, então uma parcela negra da população consegue ter uma formação a partir do momento em que a escravidão acaba.
Há muita repressão, mas também há uma comunidade muito educada de pessoas negras. Se nos Estados Unidos tivéssemos tido que esperar pelas ações afirmativas para termos acesso à educação, as coisas seriam radicalmente diferentes. Mesmo com a segregação, havia universidades só para negros, e isso foi muito importante.
Você dá aula de literatura comparada, mas escreve lindos livros de história. Qual é a sua formação?
Fiz pós-graduação em Yale e sempre me vi como uma historiadora cultural. A história nos Estados Unidos é muito empírica. Eu me lembro de estudar para as provas da pós-graduação e conversar com meu orientador dizendo que queria fazer algo em torno da Escola de Frankfurt, e ele quase me expulsou da sala! Havia realmente uma separação entre história e teoria, enquanto a história europeia é mais conceitual, com uma maior preocupação com filosofia da história. Havia mais espaço nas letras para fazer o tipo de trabalho que eu queria fazer. Desde o começo busquei um equilíbrio entre o empírico e o teórico, era como queria trabalhar. Em todos os meus livros há muito de trabalho histórico, mas também tem uma grande parte de trabalho imaginativo.
É isso o que você chama de fabulação crítica?
Sim. E isso tornou necessário explicar o meu método para acadêmicos e historiadores. Escrevi “Vênus em dois atos” [que integra a antologia Pensamento negro radical, da Bazar do Tempo/Crocodilo] não com a intenção de apresentar um texto definitivo sobre o método, mas para explicá-lo. Havia vários termos, como fabulação crítica, história especulativa e poética histórica — que é o que acho que faço cada vez mais —, por ser um trabalho com documentos, fragmentos, objetos, mas tentando criar uma história ou uma prosa a partir deles. Estou bastante comprometida com a materialidade da prática, o objeto do documento, mas meu objetivo discursivo é radicalmente diferente.
Como o mundo acadêmico reagiu a esse tipo de trabalho? Podemos comparar sua pesquisa com a de Grada Kilomba, que disse ter sofrido restrições da academia depois de publicar Memórias da plantação?
Podemos, e trabalhos como o da historiadora Natalie Zemon Davis também são muito importantes para mim. Ou outras pessoas que trabalham com não ficção desafiando as fronteiras dessa forma, como Svetlana Aleksiévitch. Eu me sinto mais próxima de autoras como a Nathalie Léger, de autoras negras dos Estados Unidos que também forçam essa fronteira entre história e literatura. Os romances de Toni Morrison partem de muita pesquisa e isso me abriu possibilidades.
Quando escrevi Perder a mãe, pensei: “Ok, esse vai ser o meu fim na universidade”. Mas não me importava e fiquei surpresa com a recepção, que foi demorada, mas agora há pessoas que usam esse livro em aulas de história da escravidão atlântica, cursos de não ficção, direito, poesia, arquitetura e em vários outros lugares. Esse foi o aspecto mais recompensador: a recepção do meu trabalho em uma gama de saberes distintos.
Como é o seu processo de trabalho? Você vai atrás dos documentos ou os documentos é que te encontram?
Gostaria de poder dizer que meu trabalho é sistemático, mas, em geral, encontro os documentos por acaso. Em Vidas rebeldes, belos experimentos, houve o encontro com a fotografia que me cativou e pensei: “Preciso reler DuBois e criar um encontro entre essa garota da imagem e ele — estão ocupando o mesmo espaço e o mesmo tempo, mas qual a ponte de experiências, discursos e ideias que os conecta?”. Isso me levou a buscar casos em arquivos de organizações de caridade, formulários adormecidos.
‘Gostaria de dizer que meu trabalho é sistemático, mas, em geral, encontro os documentos por acaso’
Toda essa pesquisa é para contar as histórias dos desconhecidos. O livro todo foi uma tentativa de contar a história dessa menina e imaginar suas existências seriais. Os documentos de arquivo são muito importantes para isso. Quem escreve não ficção acredita que ela é mais estranha que a ficção. As pessoas nunca acreditariam nas coisas complexas com as quais você se depara a não ser que você diga que realmente aconteceu e mostre uma prova de que existiu. É uma relação muito intuitiva. No capítulo em que conto a história de Mattie Jackson [“Uma história íntima de escravidão e liberdade”], eu tinha um acervo com 75 arquivos e só dez desses documentos de mulheres que foram confinadas no reformatório estão no meu livro.
Em A sedução e as artimanhas do poder, há fatos documentados, mas também há partes ficcionalizadas nos relatos de vida das escravizadas? Como escolhe quando usar a ficção em seus livros?
É preciso encontrar a natureza correta da prosa, pois nesse livro tudo é baseado em documentos de arquivo. Não precisei imaginar nenhuma cena. Mas o que acontece é que há uma mudança radical na forma interpretativa de contar uma história. Para a maioria dos historiadores, há um distanciamento entre a voz analítica interpretativa do historiador e os temas sobre os quais escrevem. Sempre me interessei pelo colapso entre essas fronteiras. Isso é narrativa, contar uma história. E se for narrativa, seria ficção, mesmo sendo baseada em uma série de casos legais, relatos, histórias da escravidão? Para contar a história de mulheres escravizadas, precisamos ir por esse caminho.
Em A sedução, por exemplo, para contar a história de Celia [“Estado de Missouri vs. Celia, uma Escrava”], eu me vali da sua sentença de enforcamento para ampliar a sua voz. É muito detalhado. Sua voz em perspectiva é o que domina a página, e parece uma espécie de ficção. Porque, no geral, em trabalhos acadêmicos a hierarquia do conhecimento está sempre ali. Sou eu quem sabe e estou escrevendo sobre isso. Estou tentando contar junto com essas vozes, dando o mesmo destaque para as vozes de escravizados quanto para a de Walter Benjamin.
Você se considera conectada com a micro-história?
Sim, com o trabalho de historiadores como Carlo Ginzburg ou de histórias de vidas desconhecidas, de pessoas que tentaram recriar macroprocessos pelas lentes do comum. Isso é muito importante para mim porque não pensamos que pessoas pobres, mulheres, trabalhadores têm uma visão crítica sobre a própria existência, por causa da divisão [do trabalho]. Não é preciso teorizar o capitalismo, podemos teorizar o trabalho doméstico ou o trabalho nas fábricas, que são elementos-chave para essas histórias macro. Não quero falar apenas com acadêmicos nem ensaiar teorias ou argumentos marxistas sobre a exploração da classe trabalhadora.
Quando estava na pós-graduação, o grande conflito era entre [o filósofo franco-argelino] Louis Althusser e [o historiador inglês] E. P. Thompson. O pensamento de nomes como Althusser e [o historiador norte-americano] Hayden White foi fundamental para mim, uma vez que estava comprometida tanto em contar a história de vida das pessoas quanto em juntar isso com a macro-história.
Se não fizermos isso, haverá lacunas na história, e só haverá a chamada “história oficial”?
Sim, só haverá a história oficial. Ou então o que muitos historiadores criticam na micro-história e na história cotidiana de que elas fazem com que se perca a perspectiva de processos históricos mais amplos. Quero entender como essa garota [de Vidas rebeldes] nesse estúdio de fotografia está conectada a processos históricos maiores, não só à história da escravidão e dos negros nos Estados Unidos, mas à história da representação da mulher como prostituta, concubina, do orientalismo.
‘As mulheres negras estão no final da cadeia alimentar, então suas vozes não são reconhecidas e autorizadas’
Estudar especificamente mulheres negras é uma forma de preencher lacunas da história?
Sim, porque, de alguma forma as mulheres negras estão no final da cadeia alimentar, então suas vozes não são reconhecidas ou autorizadas. Mesmo quando nos voltamos para a história da escravidão e dos escravizados, há poucos relatos produzidos por mulheres escravizadas. O trabalho reprodutivo das mulheres é tão importante quanto o trabalho produtivo, e é isso que quero destacar em meus livros, em meus ensaios como “O ventre do mundo”.
A literatura, em especial a mais clássica, romantiza questões como a escravidão e a sexualidade, sem um olhar crítico sobre o tema nem o uso de termos apropriados como estupro, violência, racismo. Acha que as narrativas estão mudando?
Ainda acho que certas narrativas convencionais são dominantes, e criar espaços para contar outras histórias é muito importante. Em especial no caso da diáspora negra — nas Américas, nos Estados Unidos, seja na poesia, seja no romance —, um limite fundamental foi rompido, permitindo que nós refletíssemos para além do pensamento iluminista. Não me surpreende que muitos dos nossos pensadores mais brilhantes trabalharam com vários formatos, como Aimé Césaire [Diário de um retorno ao país natal e Discurso sobre o colonialismo], C. L. R. James [Os jacobinos negros], W. E. B. DuBois, que escreveu cinco romances, dos quais um é descrito como um texto de economia política. Como um romance se torna um texto de economia política? Os formatos são flexíveis. O que é classificado como não ficção? Alguém como Hayden White [que analisou como o trabalho dos historiadores é muito mais próximo da ficção do que se pensa] é importante porque os historiadores do passado escreveram histórias da escravidão com um tom romântico. Era não ficção, mas era também um romance. Outros moldes podem romper com essa estrutura.
‘Quando estava na faculdade, li o romance ‘Amada’, de Toni Morrison; este livro abriu uma porta para mim’
Meu próprio trabalho é híbrido para desafiar criticamente como as pessoas imaginam e compreendem o mundo, e a narrativa é uma forma de fazer isso. Eu me lembro quando estava no primeiro ano em Yale e fiquei três dias na cama lendo Amada [Companhia das Letras], de Toni Morrison. Foi quando algo se iluminou na minha cabeça, porque enquanto alguns historiadores, como Pierre Nora, estavam pensando nos locais de memória, esses sentimentos de perda e melancolia que podem ser superados, havia tantas teorias de história sobre a violência, a memória do trauma, e tudo está reunido no romance de Morrison. Este livro abriu uma porta para mim. Amada é tanto um livro sobre a brutalidade da vida pós-escravidão como sobre a própria escravidão.
Esses pulos conceituais me interessam. De pessoas como [o escritor martinicano] Édouard Glissant e [a poeta canadense] M. NourbeSe Philip, que trabalham com literatura histórica e arquivística nos domínios da poesia e do romance, mas rompem com esse molde epistemológico de um modo que a maioria dos acadêmicos não consegue porque são treinados para serem obedientes e a seguir determinadas linhas. Contudo, para tornar possíveis essas outras histórias, a intrusão e a transgressão são um requisito.
Isso para romper com uma visão ainda colonialista da história?
Não pode ser mais assim. Uma grande parte de Vidas rebeldes é para contar a história dessas jovens garotas e pessoas queer, mas grande parte também é para mostrar que a segregação racial não é algo natural. Muito trabalho foi feito para produzir a segregação. O que vimos nos vinte anos seguintes à assinatura da lei dos Direitos Civis é que as favelas eram espaços onde coabitavam negros, judeus e europeus do Leste, e se tornaram um local apenas para negros. Como isso aconteceu? É importante levar isso em conta, senão as pessoas tomam como certo que as coisas sempre foram assim e esse não é o caso.
Já ouviu falar de Luiz Gama?
O abolicionista negro? Conheci em uma exposição no Museu de Arte do Rio, baseada no livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Enquanto caminhava pela exposição, vi vários paralelos entre as experiências da escravidão nos Estados Unidos e no Brasil. Soube que Gama só ficou mais conhecido no Brasil depois do filme 12 anos de escravidão, quando se buscaram narrativas de ex-escravizados brasileiros. Fico muito triste em ouvir isso! Até mesmo o debate racial no Brasil acaba sendo pautado pelos Estados Unidos.
Luiz Gama é uma figura como Frederick Douglass, pois é provável que seu pai tenha sido seu senhor. É uma história muito comum, os filhos biológicos de senhores de escravo não possuírem laços parentais com eles. Era mais a regra que a exceção. No fim da escravidão, era contra a lei ter uma relação conjugal sem estar casado — parte da razão para isso era que os brancos, antigos senhores de escravos, não seriam responsáveis pelos seus filhos negros. Era algo muito difundido.
Como foi o encontro com a escritora Eliana Alves Cruz no Museu do Amanhã?
Foi maravilhoso conhecê-la, mas como seus livros não foram traduzidos para o inglês, não consegui lê-la. Está na minha lista de coisas que quero que aconteçam em breve. Tenho um projeto de abrir uma editora nos Estados Unidos e pretendo encomendar traduções de obras escritas no Brasil. Acho que existe tanta ressonância entre os Estados Unidos e o Brasil, mas a falta de traduções é um grande obstáculo para o diálogo. Pessoas aqui leem autores de lá, mas poucos norte-americanos leem obras brasileiras porque não são traduzidas. Provavelmente a minha mesa preferida da Festa Literária Internacional de Paraty [Flip] foi a de Annie Ernaux e Geovani Martins [na Casa Folha]. Foi uma conversa fascinante sobre o que é ser da classe trabalhadora em sociedades diferentes — a universidade, como seguiram pela escrita, tudo foi radicalmente diferente. Foi muito rico ouvir esse diálogo e acho que o mesmo aconteceria entre os Estados Unidos e o Brasil. Há muitas convergências e distinções para pensarmos e lermos juntos.
Você será uma das referências da próxima Bienal de Arte de São Paulo, em 2023. Como vê a relação entre o seu trabalho e a arte?
É engraçado. Vou contar uma piada: Fernanda [Diamant, editora] me enviou uma lista com nomes de cem pessoas que eram importantes para o mundo da arte e eu estava nessa lista [risos]. Acho engraçado! Tenho muitos amigos artistas e trabalho de modo colaborativo com outros artistas. Isso tem sido muito importante para mim. Conheço duas das curadoras da Bienal, Grada Kilomba e Diane Lima. Sinto que é um momento muito rico com tantas mulheres negras pensadoras, escritoras e artistas espalhadas pelo mundo dialogando entre si. Vi Grada e Diane há um mês [em 2022] em um encontro fenomenal de oitocentas mulheres negras, que aconteceu junto com a Bienal de Veneza. O encontro foi realizado porque Simone Leigh é a primeira mulher negra a representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza. É um diálogo que já existe.
‘Tenho um projeto de abrir uma editora e pretendo encomendar traduções de obras escritas no Brasil’
Para a Bienal de São Paulo, vou colaborar com uma das artistas convidadas, Torkwase Dyson. É uma artista conceitual norte-americana que trabalha com pintura, escultura e arquitetura. Abre-se um espaço para mim que é mais uma espécie de jogo, de brincadeira, algo permitido no mundo da arte. O que é inspirador em trabalhar com artistas é que eles me lembram das várias maneiras que podemos produzir ideias. O jeito de Dyson articulá-las é muito diferente do meu. Meus amigos artistas me levam a continuar rompendo barreiras e sou muito grata por isso.
Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.
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