Fichamento,

Ricardo Domeneck

O poeta paulista que vive e trabalha em Berlim lança no Brasil uma antologia de seus trabalhos realizados entre 2000 e 2020

31maio2022 | Edição #58

Mesmo o silêncio gera mal-entendidos (Garupa) reúne poemas líricos, textos experimentais e visuais, contos, colaborações com músicos e textos de vídeos e performances selecionados por Ricardo Domeneck.

Qual a sua expectativa com o lançamento deste livro?
Em geral, eu tento ser bastante calmo quando meus livros são lançados, mas este é uma espécie de celebração, são vinte anos de trabalho. Na antologia, há, além de poesia, textos de performances, alguns contos, então talvez algumas pessoas interessadas em prosa cheguem à poesia. Os contos não são especificamente experimentais, são textos muito diretos, mas é uma coisa nova para mim: estou interessado num “localismo”; os contos se voltam para minha cidade pequena [Bebedouro, SP], essa coisa estranha que é o interior de São Paulo, muito diferente da capital.


Mesmo o silêncio gera mal-entendidos, de Ricardo Domeneck

Há também uma poesia muito urbana na antologia.
No começo, minha poesia era muito voltada para a cidade, São Paulo, Berlim. Para o poeta queer, homossexual, a cidade grande é um refúgio. Nossa poesia está mais interessada na loja de disco do que na montanha, no cinema do que na paisagem. Nos últimos tempos, tenho me voltado um pouco mais para a natureza, para as outras espécies.

O que mais atrai você na literatura queer?
Tenho a impressão de que escritores homossexuais, assim como escritores negros e mulheres, têm uma atenção para o corpo diferente da dos homens brancos heterossexuais. Não podemos nos dar ao luxo de abstrair o corpo; é uma questão de vida ou morte. Quando eu era jovem, meu corpo era quase um inimigo: cresci numa família super-religiosa, eu tinha pavor do inferno. O homossexual, assim como o negro, a mulher, presta atenção no corpo por vários motivos, alguns negativos. Quando nos libertamos disso, passamos a ter uma relação diferente, um período de celebração.

Meu tema são as relações humanas e, por minha lírica amorosa ser abertamente homoerótica, não tenho de me preocupar tanto com o engajamento: uma lírica homoerótica num país como o Brasil acaba tendo uma dimensão política. Esse tipo de poesia só aparece de forma escancarada com Roberto Piva, na década de 60; demorou muito para surgir no país.

Como vê a cena literária hoje no Brasil?
É patente a diferença em termos de visibilidade para outros tipos de escrita. A literatura brasileira está se tornando muito mais plural. Sim, as editoras querem vender, às vezes sinto que escritores que trabalham com muitas nuances e certa sofisticação acabam recebendo menos atenção, porque o que vende é mais direto, mas a melhor escrita do Brasil está sendo feita por gente de todo tipo, e isso é algo a ser celebrado.

E a volta da censura, a guerra cultural?
É quase inevitável numa luta como essa. Os movimentos progressistas buscam mudanças que considero melhores para todos, mas há certa resistência psicológica, além da manutenção de privilégios. Precisamos mostrar que seria bom para todos uma sociedade na qual nossas identidades fossem um pouco mais fluidas, que nos permitisse um pouco mais de jogo, diversão, liberdade. Um pouco mais de poesia.

“Sonhos hollywoodianos de poeta” é um poema seu de 2010. Quais são seus sonhos hoje?
Com sinceridade, já fui muito mais longe do que sonhei. Gostaria de continuar escrevendo e que os poetas que respeito chegassem a mais leitores.A poesia cumpre um papel republicano. É muito difícil estar vivo, e o papel da poesia, da arte em geral, é nos lembrar das belezas de estar vivo e também não nos deixar esquecer os problemas, as perdas, as mortes.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.