Entrevista, Trechos,
Doze horas com Susan Sontag
A entrevista completa de uma das escritoras e intelectuais mais influentes do século 20, realizada por Jonathan Cott para a Rolling Stone
16dez2024 • Atualizado em: 14jan2025Quando Jonathan Cott, jornalista da Rolling Stone, entrevistou Susan Sontag em 1978, apenas uma parte das doze horas de conversa entrou na revista. Mas as falas não publicadas na época não estão perdidas por aí: o novo lançamento da Bazar do Tempo apresenta a entrevista completa da escritora e crítica cultural, morta em 28 de dezembro de 2004 e considerada uma das mais influentes pensadoras do século 20. A tradução do volume é de Paula Carvalho.
Com prefácio do próprio autor, Susan Sontag: a entrevista completa para a revista Rolling Stone, expõe os pensamentos da escritora sobre os temas que ela mais tratou em vida, como o câncer, o feminismo e a escrita.
Nos diálogos com Cott, Sontag revela os livros e autores que a inspiraram como escritora, suas perspectivas sobre a luta das mulheres, sua experiência após receber o diagnóstico de câncer de mama, entre outros assuntos, além de discorrer sobre suas próprias obras e compartilhar experiências de vida.
As respostas às perguntas de Cott formam um retrato daquilo que Sontag deixou como legado, especialmente na literatura. Sua “atenção total ao mundo”, seu fascínio pelas coisas pequenas e sua vontade de mudar a si mesma por meio da escrita são algumas das suas citações destacadas no livro.
Leia um trecho a seguir:
Trecho de ʽSusan Sontag: a entrevista completa para a revista Rolling Stoneʼ
Antes, você chegou a dizer que existe uma sintonia entre pessoas doentes, assim
Mais Lidas
como os idosos. Você falou também sobre a polaridade masculino-feminino como uma espécie de prisão, então por que uma mulher, que sente estar presa a esses conceitos, desejaria alinhar-se a um certo tipo de feminismo?
Não sou contra isso, mas me entristeceria se a escrita começasse a ser segregada sexualmente. Já estive nessa posição. Digamos que um filme meu tenha sido selecionado para participar de um festival de cinema voltado para cineastas mulheres. Não recusaria enviar o filme – pelo contrário, fico muito contente de exibir meus filmes, mas isso só está acontecendo nesse caso porque sou uma mulher. Mas, no que concerne ao meu trabalho como cineasta, não acho que tenha alguma relação com o fato de eu ser mulher – tem a ver comigo, e uma das coisas sobre mim é que sou uma mulher.
Uma resposta feminista seria a de que você toma atitudes como se a batalha já tivesse sido ganha.
Não acho que fizemos a revolução, mas entendo a importância de as mulheres participarem de estruturas e empreitadas internacionais, demonstrarem que são competentes e que podem ser pilotas de aviões, diretoras de bancos e generais, e muito mais coisas que não quero ser e que não vejo com bons olhos. Mas é muito bom que as mulheres se arrisquem ao assumir essas funções. A tentativa de criar uma cultura separada é uma forma de não buscar o poder, e acho que as mulheres precisam ir atrás do poder. Como já disse no passado, não acho que a emancipação feminina esteja ligada à igualdade de direitos. É uma questão de ter igualdade de poder, e como as mulheres terão isso se não participarem das estruturas que já estão aí?
Sou extremamente leal às mulheres, o que não significa oferecer o meu trabalho apenas a revistas feministas, porque também sou bastante leal à cultura ocidental. Apesar de estar profundamente comprometida e corrompida pelo sexismo, é tudo o que temos por enquanto, e temos que trabalhar com isso, mesmo sendo mulheres, e corrigir e transformar o que for necessário.
As mulheres deveriam se orgulhar e se identificar com outras que atingiram níveis de excelência nas suas ocupações, e não as criticar por não expressar uma sensibilidade ou sensualidade femininas. Minha ideia é acabar com a segregação. Sou um tipo de feminista que é antissegregacionista. Isso não quer dizer que acho que vencemos a batalha. Acho bom que coletivos de mulheres estejam fazendo coisas, mas não acredito que o objetivo seja a criação
ou a defesa de valores femininos. O objetivo é metade da questão. Não estabeleceria nem desmantelaria um princípio de cultura, sensibilidade ou sensualidade feminina.
Seria interessante se os homens fossem mais femininos e as mulheres mais masculinas. Para mim, esse seria um mundo mais atraente.
Como Ray Davies cantou na música “Lola”, de The Kinks: “Garotas serão garotos garotos serão garotas/ É um mundo confuso, desorganizado e agitado.”
Não conheci nenhuma mulher inteligente, independente, ativa e apaixonada que não quis ser um menino na infância. Elas desejavam ter nascido meninos porque, com isso, poderiam subir em árvores, quando crescer poderiam ser marinheiros… ou qualquer outra coisa. Sempre dizem
para as meninas pequenas que elas não podem fazer várias coisas, e por isso querem fazer parte do sexo que parece viver com mais liberdade.
A maioria dos garotos não quer ser menina porque entende, a partir dos dezesseis meses de idade, que é melhor ser menino. As crianças querem ser ativas, e os meninos são encorajados a se movimentar – sujar suas roupas, brincar de modo intenso, tudo isso é reprimido nas meninas. Quando ficam um pouco mais velhos, entendem que a sociedade está estruturada em “isso ou aquilo”, que hoje apresenta nomes descolados como “andrógino” ou “androginia”. Não acho que seja preciso rotular nada porque daí essa característica se torna a propriedade de um único grupo de polemistas.
E as pessoas que sentem que nasceram no corpo errado?
Voltando a falar de ciência, uma das suas maiores conquistas é que, pela primeira vez na história do planeta, pode-se mudar de sexo. O caso famoso de Jan Morris é interessante porque temos a primeira pessoa que mudou de sexo que já era bem articulada antes da operação. Com isso, pode-se comparar o modo como escrevia antes e depois dessa alteração. Temos um relato dessa pessoa culta e inteligente sobre o significado da mudança de sexo.
Com certeza haverá outros relatos desse tipo no futuro, mas o que se destacou na mudança de sexo de Jan Morris foi a sua identificação com uma ideia bastante convencional de feminilidade – quando James Morris pensou em como gostaria de se tornar Jan Morris, foi desta maneira: vou me vestir assim, agir dessa forma, sentir desse outro modo, seguindo estereótipos culturais bem convencionais.
Na edição atual da revista Encounter, há um artigo de Jan Morris sobre uma viagem que fez recentemente a Veneza. [O texto “New Eyes in Venice” [Novos olhos em Veneza] foi publicado na edição de junho de 1978 da revista.] James Morris já havia escrito um livro maravilhoso sobre a cidade há 25 anos, e agora temos Jan Morris em Veneza com seus dois filhos mais novos, de quem antes era pai. É fantástico comparar o artigo e o livro. Estive em
Veneza há apenas duas semanas e quando vou para lá – sempre visito a cidade – levo um kit com três ou quatro livros que gosto de ler quando estou lá. Sempre levo o livro de James Morris sobre Veneza, e o reli – está muito fresco na minha memória. Quando voltei a Paris e comprei essa da Encounter, havia o texto de Jan Morris. É um texto claramente escrito por uma mulher. Não conseguia acreditar que a mudança de sexo tivesse produzido essa mudança de ponto de vista – é uma mudança cultural que essa pessoa, ao mudar de sexo, aceitou.
Porque você leu Entrevista | Trechos
Fogo-cruzado no Harlem
Em As regras da trapaça, Colson Whitehead continua a retratar o frenesi de lutas, culturas e crimes no Harlem dos anos 70 que permeiam romance anterior do autor
JANEIRO, 2025