A vida do tempo

Entrevista, Rebentos,

A vida do tempo

Com ilustrações de Esteban Vivaldi, o escritor baiano Alessandro Marimpietri convida os pequenos a entender as complexidades do tempo – infinito, profundo, enigmático

12ago2024
Ilustrações de Esteban Vivaldi para o livro 'Quando somos um só' (Divulgação)

“O que é o tempo?”, questionam os filósofos, físicos e escritores há uns bons milhares de anos. Mas esta também é a indagação de muitas crianças, como foi a de Lucca, filho do psicólogo e escritor baiano Alessandro Marimpietri. À época, o pai não soube responder à altura a pergunta tão filosófica, que os pequenos parecem ter o dom de elaborar com tanta facilidade. Infinito, profundo, enigmático, que se estende para todos os lados, meio inexplicável e totalmente belo, foi o que Marimpietri conseguiu dizer, em formato de livro. 

O que é o tempo? (Solisluna) dialoga sobre o tema com as crianças — e com os adultos, Albert Einstein, Alice no País das Maravilhas, o inventor do relógio e as inúmeras representações do tempo — por meio das ilustrações do artista e cineasta chileno Esteban Vivaldi, que cria personagens meio animais meio humanos para narrar a busca por essa grandeza física, que também é medida de experiência e vida. 

Em entrevista para a Quatro Cinco Um, o autor comentou sobre a relação entre tempo e infância, os caminhos para instigar a curiosidade dos pequenos e o afeto necessário para escutá-los. Marimpietri também contou sobre seu primeiro trabalho com os traços e as cores de Vivaldi, o livro Quando somos um só (Solisluna, 2021) – que aborda as ligações entre um pai e seu filho —, além de discutir sobre como a paternidade deve assumir mais responsabilidades, que são costumeiramente atreladas às mulheres. 

O autor Alessandro Marimpietri (Lígia Rizério/Divulgação)

De onde surgiu a ideia do livro? 
Surgiu de uma pergunta que meu filho me fez e que é o título do livro. Fiquei muito impressionado com a pergunta do garoto, que tinha nove anos à época. Ao mesmo tempo, não consegui responder de pronto. E na verdade, eu ainda não consigo, mas achei bonito tentar responder através de um livro que, de alguma forma, elogia esse tempo subversivo da infância, no qual perguntas assim surgem da simplicidade.

E a pergunta que não quer calar: o que é o tempo?
O livro fala do tempo em diversas camadas. Desde o tempo da infância, que não tem relação direta com a cronologia etária; passando por sua dimensão fugidia que sempre nos escapa; até os malabarismos que fazemos dentro dele, emprestando sentidos e muitos significados aos instantes vividos. O livro não pretende responder a essa pergunta, mas sim oferecer contornos e dimensões para que cada leitor faça dele muitos tipos de tempo, infinitamente.

Usar o relógio de cuco, que é uma representação mais antiga do tempo, foi uma tentativa de mostrar a infância para além das tecnologias digitais? E como o tempo e a tecnologia dialogam com os pequenos?
A ideia do cuco faz parte da genialidade de Esteban Vivaldi. Nossa ideia era sim discorrer sobre o tempo através de elementos representativos que fossem menos óbvios às infâncias contemporâneas, justamente porque acreditamos que a atualidade empresta ao infantil uma relação única com o tempo. Em geral vemos crianças aceleradas, atrasadas, apressadas e, consequentemente, excessivamente atentas a distrações e excessivamente distraídas perante a realidade que está fora das tecnologias digitais. 

Qual o impacto de escrever um livro sobre essa grandeza física, mas que também é uma medida de experiência e vida (e aquele algo a mais que nem os cientistas conseguem explicar), para crianças? 
Nossa intenção foi muito mais lançar luz sobre essa dimensão das experiências “no” e “com” o tempo, do que propriamente a sua dimensão física. Ou seja, justamente mirar nessa porção inexplicável, intangível, subjetiva e inventiva que o tempo, com suas dobras e curvas, nos oferece. Para perceber tudo isso no fundo é bem simples, basta dar voz às crianças, dentro ou fora de nós mesmos.

De onde surgiu a ideia de escrever uma música para acompanhar a leitura? E o que é mais difícil: escrever um livro, uma música ou explicar o que é o tempo?
A ideia da música no livro conversa com o propósito das muitas dimensões e camadas do tempo e de um livro, através do qual a gente lê, olha, imagina, pensa, sente, sonha, escuta e, também, pode dançar com uma melodia. A música, que conta com as vozes dos nossos filhos no coro do rap, foi composta pelos craques Carmelito Lopes e Letícia Lopes, que compõem o grupo musical Família que Brinca. Com eles, também desenvolvemos uma contação cantada que constrói uma história sobre o livro e sobre o tempo, unindo texto, música e interação com as crianças. E sobre o processo criativo, posso dizer diretamente: nada foi difícil, tudo foi bonito e divertido!

Como foi pensar e trabalhar nas ilustrações com Esteban Vivaldi? 
Essa é minha segunda experiência com o Esteban ilustrando um trabalho meu. Nossa parceira é mais que uma honra, é de uma sinergia incrível, pois a ilustração conta uma história junto ao texto, que faz com que tudo fique onírico e muito mais interessante, digno do respeito que temos pelo infantojuvenil. Esse encontro foi possível sob a batuta cuidadosa da Valéria Pergentino, nossa editora na Solisluna, que nos uniu e concebeu coletivamente todo projeto. 

Assim como no livro anterior, Quando somos um só, vocês utilizam animais e suas características mais marcantes para descrever questões que parecem tão humanas. Quais associações quiseram fazer?
Juntos, eu e a Valéria tivemos a ideia de que os personagens deveriam ser bichos misturados com humanos, para chegar nas crianças e transmitir um encantamento de fantasia ao projeto. Foi do Esteban a ideia de escolher pinguins, dada a sua característica paternal. Também foi dele a ideia da família de navegadores, já que o texto aludia ao mar, à imensidão e desse ir e vir na relação entre pai e filho, que é próprio das ondas do mar, assim como é da vida humana. Em ambos os livros Esteban faz homenagens a personagens icônicos, através do seu traço: no primeiro, a Corto Maltese, de Hugo Pratt; e no segundo, à Alice de Lewis Carroll.

Quando somos um só descreve a relação de afeto entre um pai e um filho. Os homens têm estado mais atentos à paternidade e a assumirem responsabilidades que ainda são muito atreladas às mulheres?
Há muitos lados nessa questão. Por uma perspectiva, vemos um aumento da participação paterna ativa, responsável, que assume a paternidade e cria os filhos. Por outro lado, ainda estamos longe de testemunharmos um processo justo: o Brasil segue sendo um país com um número alarmante de pais que não registram ou assumem os filhos. E há ainda muita desigualdade entre homens e mulheres, no que se refere a quase tudo. No campo dos filhos, dos afetos, do subjetivo e do cuidado, a experiência do masculino ainda é árida. De alguma forma, o Quando somos um só enaltece essa chance única de nunca mais sermos os mesmos depois da experiência de cuidar de um rebento. É um mergulho profundo nesse oceano infinito de afeto, que nos permite navegar por coisas que não cabem em palavras. 

Que livro você gostaria de ter lido na infância?

São tantos, mas escolho o Doçura (Tibi Editora, 2022, ilustrado por Anna Cunha), de uma escritora que também é baiana, a Emília Nuñez. Vencedor do Jabuti, Doçura é um livro sem palavras que simplesmente diz tudo. Não lembro de na minha infância ter me deparado com um livro assim. Teria sido incrível!

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Com acesso. Precisamos garantir às crianças do Brasil, um país continental e desigual, o acesso ao livro ilustrado, feito com esmero, com qualidade e afeto. Os livros ilustrados compõem o manancial das primeiras experiências de formação estética, política, crítica e ética dos pequenos. Eles deveriam estar em todos os lugares e, a todo momento, ao alcance do olhar infantil curioso ou de uma pequenina mão inquieta e desejosa de abrir as janelas do mundo.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.