Coluna

Monica Baumgarten de Bolle

Sem água

Livro reflete sobre a escassez de água e as exclusões que ela produz, do acesso facilitado ao que é necessário para sobreviver

26jan2021 | Edição #42

Recipientes de plástico grandes o bastante para matar a sede, pequenos o suficiente para que humanos os carreguem. Brancos ou em cores vibrantes, nas mãos, na cabeça, diante ou ao lado das pessoas fotografadas, esses recipientes aparecem como coprotagonistas nas imagens capturadas pelas lentes do fotógrafo Érico Hiller em seu livro Água, recém-publicado pela editora Vento Leste. Folheei-o nas festas como uma história visual de falta e abundância: sobra humanidade, em figuras plurais e detalhes supérfluos; falta o que os recipientes simbolizam. Por que falo isso? Eles evocam os galões de gasolina que portamos ao posto quando nos falta combustível. O livro de Hiller nos incita a pensar, a partir de imagens, sobre a escassez de água e as exclusões que ela produz, do acesso facilitado ao que é necessário para sobreviver. É relato e manifesto.

Morrem mais pessoas em decorrência da falta de saneamento básico do que de violência armada

Hiller andou por dez países para esse trabalho. Além de imagens, também colheu impressões e testemunhos, que ele narra tecendo reflexões. Suas fotografias fazem ver a falta do direito ao acesso à água potável, ao saneamento básico. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), morrem mais pessoas em decorrência da falta de saneamento básico e do consumo de água repleta de dejetos de todos os tipos do que de violência armada, mesmo em países conflagrados, como são muitos daqueles que o fotógrafo percorreu. Doenças contagiosas se propagam pela água suja, a única disponível para saciar a sede e as necessidades fisiológicas de mais de 2 bilhões de pessoas no mundo. É essa a conta do desperdício e das desigualdades dentro dos países e entre eles.

Há muitas fotografias impactantes no livro. Na foto de capa, um menino de cerca de doze anos sobe uma escada de ferro em direção à luz do dia do que parece ser um local de coleta de esgoto. Com uma mão, equilibra-se na escada; com a outra, carrega o recipiente cheio de água — suja, imagino. O recipiente é grande para o tamanho de seu portador, cujo rosto estampa o esforço de carregar aquilo sem o que ele e sua família não podem sobreviver. A foto imprime na infância a marca das necessidades que governos não atendem. Em tempos em que as crianças são sagradas para muitos fins, estranha que não se cogite modificar estruturas de ganhos e acúmulos em seu nome. 

Outra foto de tirar o fôlego é a que ilustra esta coluna. Uma mulher em pé. A mulher com uma vestimenta islâmica discretamente estampada, em variações do amarelo-claro ao marrom, espera, esboça um sorriso. O cômodo com quatro manchas vermelhas na parede, a disposição de seu corpo e a vestimenta sugerem que a foto registra um momento da vida cotidiana. Os dois galões que jazem adiante são parte dela. Um pouco fora de foco, um dos braços da mulher, suspenso, palma da mão para cima, sugere que ela fala com alguém além da janela pela qual passa a luz que emoldura a cena. Em contraste com o menino, pequeno, a mulher parece grande demais para carregar os recipientes. Embora, segundo a OMS, meninas e mulheres tenham mais obrigações relacionadas à coleta d’água, a da foto talvez conte com ajuda. E se apresenta digna, central na imagem, contrastando com a escassez de recurso vital. 

A fotografia, que apresenta a escassez e faz pensar nas desigualdades, é bela. O fotógrafo conta que a protagonista se chama Um Khaldoun e a descreve como uma mulher sorridente. Ela tem onze filhos e, na foto, está grávida do décimo segundo. Khaldoun, diz Hiller, reclama não da falta de água, mas das cobras que surgiram em ninhos próximos à sua casa. 

Dignidade

Fitei o retrato dessa mulher ao longo de vários dias antes de ler o registro do fotógrafo, e a foto dá a ver o que o testemunho de Hiller comunica: “Ela me dá uma discreta ideia do que seria viver naquelas condições”. Aí também reside, penso eu, a dignidade de Khaldoun. 

É Khaldoun do Quênia, mas poderia ser uma mulher brasileira habitante das comunidades cariocas, das periferias das grandes cidades brasileiras ou das regiões mais pobres do país. Por um lado, sua imagem e suas palavras fazem pensar que nós dificilmente chegamos a saber pelo que o outro é oprimido se não o ouvimos. Por outro, tenho a impressão de que é impossível fechar o livro sem perceber que a desigualdade e a escassez podem ser violentas. A dignidade daquela mulher nos convida a imaginar um mundo em que ela não precise sobreviver nas piores condições. Sem água. Sem assistência. Sem acesso à saúde. Sem acesso.

Quem escreveu esse texto

Monica Baumgarten de Bolle

É autora de Como matar a borboleta-azul: uma crônica da era Dilma (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.